O mundo, a América Latina e o Brasil
por Ivan Pinheiro
[*]
entrevistado por Portal PCB/SC
PCB/SC: Vamos começar falando sobre a conjuntura mundial. Como
você tem observado o conflito entre os Estados Unidos e a China?
Há uma nova configuração do imperialismo no atual momento
histórico?
Ivan: O conflito entre os Estados Unidos e a China, na atualidade em forma de
acirradas disputas geopolíticas e econômicas, é a
expressão maior do agravamento das contradições
interimperialistas com o fim do mundo unipolar que, a partir da
contrarrevolução na União Soviética (1991)
garantira aos Estados Unidos uma hegemonia absoluta em todos os aspectos, por
cerca de duas décadas.
O fator mais perigoso desta acirrada disputa multipolar, em que, a grosso modo,
polarizam Estados Unidos/União Europeia e China/Rússia, é
a volta da corrida armamentista, que pode levar a conflitos militares de
enormes proporções. Grandes guerras sempre foram
inevitáveis em todos os momentos da história marcados por
mudanças na hegemonia mundial, como este em que vivemos na atualidade,
ainda mais dramatizado pela crise sistêmica do capitalismo.
Esse quadro nos coloca novamente diante da questão da paz e da guerra.
Para os revolucionários, volta à ordem do dia a luta contra as
guerras imperialistas, pela paz entre os povos, não entre as classes.
A crise mundial do capitalismo acirra as disputas entre os grandes
monopólios por matérias primas, tecnologia, mercados, rotas e
territórios e, entre os principais países e blocos imperialistas,
por hegemonia nos campos econômico, político, cultural e militar.
Sem pretender aqui alimentar qualquer ilusão de que essa multipolaridade
torne a ONU "democrática" e "progressista" e muito
menos que favoreça as revoluções socialistas, considero
que seu aspecto positivo é que o imperialismo estadunidense já
não pode mais tomar atitudes unilaterais, como ocorreu em suas covardes
agressões ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, em
aliança com potências europeias (OTAN), sempre precedidas de
mentiras e manipulações para satanizar os governos locais e tendo
como objetivos a venda de mais armas, a ocupação de
territórios estratégicos, o saque das riquezas naturais dos povos.
Na sua última aventura militar, os EUA já não puderam mais
se valer do até então silêncio cúmplice e
conciliador da Rússia e da China, no Conselho de Segurança da
ONU. A Síria deve sua sobrevivência como país à
mudança de atitude dessas duas potências, cujos interesses
geopolíticos estavam sendo ameaçados, sobretudo no Oriente
Médio.
Tendo sofrido na Síria uma grande derrota política e militar, o
imperialismo estadunidense volta agora as armas de suas guerras híbridas
contra países que não abrem mão de sua soberania e
dispõem de imensas reservas de petróleo, como o Irã e a
Venezuela.
É inegável que a ação da Rússia e da China,
cada qual à sua maneira, tem sido fundamental para confrontar e, em
alguns casos, conter o ímpeto do imperialismo estadunidense, como foi o
caso de sua postura de recuo frente à Coreia do Norte. Devemos saudar
este fato, mas sem ilusões, pois o motor desta ação
são os interesses econômicos e geopolíticos destas duas
grandes potências, também imperialistas, e não o
exercício do internacionalismo proletário! Nesse contexto, cabe
aos comunistas saber aproveitar as contradições
interimperialistas para avançar o processo revolucionário em cada
país.
PCB/SC: Um dos fenômenos que observamos como consequência da crise
capitalista originada em 2007/08 é que a burguesia passou a apostar em
alternativas capitaneadas pela extrema-direita como saída para os seus
problemas. Como você observa esse processo no contexto internacional?
Ivan: Para enfrentar os efeitos da crise, que impactam negativamente a taxa de
lucro e a reprodução do capital, as burguesias vêm
adotando medidas que afetam de forma dramática os interesses dos
trabalhadores e das camadas populares, como o arrocho salarial, a
destruição de direitos trabalhistas, previdenciários e
sociais, o saque ao orçamento e ao patrimônio público, uma
pauta que acirra as contradições entre o capital e o trabalho e,
por conseguinte, a luta de classes.
É duro termos de reconhecer que, em âmbito mundial, essa ofensiva
se dá num momento em que o reformismo predomina em relação
às forças revolucionárias e que a hegemonia do capital
é de tal ordem que sua máquina de propaganda chega a convencer
parcelas da classe trabalhadora a aceitar o discurso da "responsabilidade
fiscal" como forma de garantir seus empregos, atuais ou futuros, ainda que
com menos direitos.
Para tentar levar a efeito essas medidas, o estado burguês precisa
restringir as liberdades democráticas conquistadas e fortalecer seu
aparato de repressão, a fim de intimidar e conter as lutas em defesa dos
direitos ameaçados. Medidas e leis repressivas vêm sendo adotadas
na maioria dos países, em graus diferenciados, a depender das
necessidades e possibilidades das suas classes dominantes, da cultura
política do país e da correlação de forças.
Entretanto, nem sempre a burguesia precisa se valer de alternativas de
extrema-direita, simplesmente porque já exerce uma confortável
hegemonia política e cultural em todos os principais poderes e
instituições, estatais ou sociais, de fato e de direito. Na
grande maioria de países, a melhor forma de dominação
continua sendo a velha e ilusória democracia burguesa, um instrumento
flexível para administrar a vigência e o grau das chamadas
liberdades democráticas e cuja principal arma são as
eleições periódicas, que lhe conferem legitimidade e
legalidade.
Arrisco dizer que os atuais governos mais notórios de extrema direita
não eram as opções prioritárias dos setores
hegemônicos das respectivas classes dominantes. Venceram na margem de
erro de cada eleição. Na Itália, Polônia e Hungria,
exemplos mais visíveis, o que pesou mais na eleição de
candidatos de extrema-direita foi o discurso contra os imigrantes, alimentado
por um nacionalismo xenófobo. O mesmo fator resultou num crescimento da
ultradireita nas recentes eleições do Parlamento Europeu. No
Brasil, Bolsonaro só passou a ser apoiado pelo capital depois que ficou
claro que nenhum dos seus candidatos mais confiáveis (Alckmin,
Meirelles, Amoedo) iria para o segundo turno, pois o objetivo, em razão
da crise, era descartar a conciliação de classe petista.
PCB/SC: Na América Latina, governos de direita e extrema-direita
ganharam força nos últimos anos. No entanto, a Venezuela tem
conseguido manter a denominada Revolução Bolivariana resistindo
à ofensiva de um forte ataque externo, capitaneado pelos EUA. Como
você analisa esse cenário?
Ivan: A América Latina, considerada o quintal dos fundos do imperialismo
estadunidense, em que com a gloriosa exceção de Cuba
Socialista todas as aspirações e possibilidades de
soberania e progresso social foram sufocadas pelos Estados Unidos, torna-se
hoje um fator importante na cena mundial e um dos palcos das disputas
interimperialistas. O resultado da ofensiva que os Estados Unidos movem contra
a Venezuela terá importante impacto na correlação de
forças mundial e sobretudo na América Latina. Por isso,
independentemente de qualquer restrição que possamos fazer aos
rumos atuais do processo bolivariano, nossa solidariedade não pode
faltar ao povo venezuelano, em especial às suas
organizações revolucionárias.
Muitos motivos levam os EUA a não desistir da tentativa de derrubar o
governo do PSUV, hoje encabeçado por Maduro, e entregá-lo aos
setores da oligarquia venezuelana que lhes são servis. Tentam isso desde
2002, quando sequestraram Hugo Chávez e o levaram para uma base militar
e as massas ganharam as ruas exigindo sua libertação e sua volta
ao governo. Nunca deixaram de conspirar, provocar ações
violentas, satanizar o processo e suas lideranças e, principalmente,
boicotar a economia venezuelana, de todas as formas possíveis, para
jogar o povo e a opinião pública mundial contra o governo. Mas
agora a instabilidade se agravou e estamos às vésperas de um
desfecho. Nesse sentido, devemos denunciar as tentativas de golpe de Estado do
imperialismo estadunidense e das classes dominantes venezuelanas para derrubar
o Governo Maduro.
Além de ser palco do processo de mudanças que mais avançou
em termos sociais e políticos na região, o país
dispõe de uma das maiores reservas de petróleo (próximas
ao território norte-americano), é uma referência para os
povos latino-americanos, desenvolve intensas relações bilaterais
de colaboração com Cuba e, além do mais, é a
principal porta de entrada de capitais russos e chineses na América
Latina.
Como dissemos anteriormente, não podemos subestimar o respaldo que a
Venezuela bolivariana vem recebendo da Rússia e da China, sem o qual o
Conselho de Segurança da ONU já poderia ter autorizado uma
intervenção militar dos Estados Unidos, com o respaldo de
países sul-americanos governados pela direita, que compõem o
chamado Grupo de Lima. Mas não se pode confiar cegamente em
potências estrangeiras, cujos interesses estratégicos podem
levá-las a mover suas peças no tabuleiro global.
Não podemos subestimar também o apoio, até aqui
determinante, das Forças Armadas venezuelanas, mas sem deixar de levar
em conta a possibilidade de um eventual agravamento da crise econômica e
social, que torne o país ingovernável, levá-las a outros
caminhos, inclusive próprios.
As forças revolucionárias venezuelanas exigem corretamente que o
socialismo deixe de ser apenas fonte de discursos e promessas e comece a ser
construído de fato, com a formação de uma frente
revolucionária e a adoção de medidas como a urgente
estatização do sistema financeiro e dos monopólios
privados e a industrialização do país, sob controle dos
trabalhadores, para garantir a substituição de
importações e pôr fim à dependência exclusiva
do petróleo, geradora do rentismo parasitário da burguesia,
incluindo sua parcela incrustada no governo, principal fator de
contenção de novos avanços e de práticas de
corrupção, inerente ao sistema capitalista, ainda vigente no
país. Só é possível enfrentar a grave crise
(agravada pelo imperialismo e as oligarquias locais), com medidas socializantes
e não com paternalismo e as políticas compensatórias que
têm prevalecido.
Definitivamente, o fator decisivo será a capacidade do processo de
mudanças radicalizar, no sentido da revolução socialista e
da tomada do poder do estado burguês.
Vítima de guerra econômica que provoca desabastecimento, queda na
qualidade nos serviços públicos e inflação
galopante e tendo sofrido neste ano apagões elétricos e
tentativas de golpe a "ajuda humanitária" nas
fronteiras com Brasil e Colômbia e a "sublevação
militar" em Altamira e em meio a uma correlação de
forças na América Latina altamente desfavorável, o
bolivarianismo ainda sobrevive porque os trabalhadores e as camadas populares
valorizam as conquistas reais que tiveram, sobretudo nas áreas da
saúde, habitação, educação. Mas, neste
momento complexo e decisivo, o apoio popular só será garantido
com a radicalização do processo.
Se não for superada a crise política, social e econômica,
não podemos subestimar a possibilidade de um retrocesso político
na Venezuela, seja através de algum novo golpe de direita mais forte ou
da conciliação em torno de um pacto de "união
nacional" com a oposição, como sugerem os diálogos
mediados pela Noruega, mas que podem também ser rompidos em razão
da oposição que vêm gerando nos setores mais radicalizados
dos dois lados, ou seja, à esquerda de Maduro e à direita do
fantoche ianque Guaidó, o que poria fim à trégua
tácita e instável que assistimos hoje.
Não se pode descartar também a possibilidade de uma
insurreição ou mesmo guerra civil, levando-se em conta que
há setores organizados e armados tanto nas classes dominadas como nas
dominantes. Sejam quais forem os desdobramentos da crise venezuelana,
jogará um papel significativo o principal legado do chavismo: a
conscientização do proletariado e a grande rede de
organizações de massa, os coletivos, brigadas e comunas, uns
criados de cima para baixo e outros de forma independente, a partir das bases.
Apesar de tudo, a heroica sobrevivência do processo de mudanças na
Venezuela bolivariana a despeito de seus limites é uma
referência importante para refletirmos sobre as razões das
recentes derrotas de governos classificados como progressistas em nosso
continente, alguns em processos eleitorais e outros por variadas formas de
golpes, todos exatamente por não terem promovido as mudanças que
haviam prometido.
Na Venezuela bolivariana não se trata apenas de governos
"progressistas", como os que administram o capitalismo prometendo
humanizá-lo e que caem porque essa é uma tarefa
impossível. Trata-se de um processo de mudanças radicalizado, com
acentuado viés anti-imperialista, e que resultou em conquistas reais a
favor das camadas populares, no fim do monopólio da mídia
burguesa, no avanço da conscientização e da
organização das massas.
PCB/SC: Fale então um pouco mais sobre o aparente esgotamento do ciclo
dos chamados governos "progressistas" na América Latina.
Ivan: Além do Brasil, que merece uma reflexão específica,
em dois outros países do nosso continente governos progressistas foram
derrubados por golpes de estado: Honduras (2009) e Paraguai (2012). Nas duas
ocasiões, estive pessoalmente em missão de solidariedade, em nome
do PCB.
Como em todos os golpes de estado na América Latina, o imperialismo
norte-americano teve papel determinante nestes episódios, em
aliança com as oligarquias locais. Em Honduras, essa presença foi
às claras. Manuel Zelaya, um burguês progressista e nacionalista
que havia se aproximado de Hugo Chávez e da ALBA, foi retirado à
força da sede do governo por militares e levado preso a uma base dos EUA
no próprio território hondurenho. A resistência popular foi
massiva e aguerrida, mas acabou derrotada por violenta repressão e,
não podemos deixar de registrar, pela falta de uma vanguarda
revolucionária que conduzisse a luta para além do
espontaneísmo. Pelas mesmas razões, uma possível
insurreição popular foi derrotada em Honduras recentemente.
No Paraguai, o golpe parlamentar que derrubou Fernando Lugo foi rápido e
sem muita resistência. Apesar de seu governo ter gerado grandes
mobilizações populares e uma inédita frente
política e social de esquerda, o próprio Presidente, humanista e
pacifista, que fora Bispo da Igreja Católica, acatou publicamente a
decisão do Senado pelo seu impedimento, em um processo forjado que
tramitou a toque de caixa, em menos de uma semana.
Em outros países, governos tidos como progressistas assumiram e
caíram através de eleições e ouso aqui
levantar uma hipótese muitos deles poderão voltar ao
governo pela mesma via, provavelmente menos progressistas, pagando
preços mais altos em termos de alianças com setores da burguesia
para tentar garantir a governabilidade institucional, inclusive podendo aplicar
certas políticas de "austeridade fiscal", de forma menos
rápida e profunda, em comparação a governos de direita.
Ocorre que, no quadro da crise sistêmica do capitalismo, vem se
consolidando em muitos países uma bipolaridade política entre
forças que administram o capital. Numa época em que
caracterizações políticas precisam ser relativizadas,
podemos usar um vasto cardápio para classificar essa bipolaridade em
cada país, tais como centro-esquerda, socialdemocratas, reformistas ou
progressistas X direita, centro-direita, neoliberais ou conservadores. O certo
é que as diferenças entre estes polos vêm diminuindo. Por
vezes, mudam os nomes de candidatos e mesmo os de partidos ou frentes. Mas
não mudam o fato de que são duas alternativas que cabem
perfeitamente nos limites da democracia burguesa e do capitalismo e que tendem
a se revezar, na chamada "alternância do poder", que prefiro
chamar de alternância de governo, já que, através de
eleições, nunca está em jogo o poder do estado
burguês.
Essa alternância se dá porque, em geral, o governo de turno
é derrotado em eleição seguinte, por não ter podido
cumprir as promessas que fez em campanha para superar o desemprego, a pobreza,
a insegurança, os péssimos serviços públicos.
No Chile, a alternância tem se dado de forma monótona, com os
mesmos personagens e partidos, a quatro eleições seguidas:
Bachelet (2006), Piñera (2010), Bachelet (2014) e Piñera (2018).
Michelle Bachelet é um bom exemplo de outro fenômeno: a
degeneração ideológica e a cooptação ao
sistema que gera o exercício da administração do
capitalismo. Depois de dois mandatos como Presidente, o segundo menos
progressista que o primeiro, tornou-se Alta Comissária da ONU para
Direitos Humanos e acaba de divulgar um relatório parcial e mentiroso
sobre a situação na Venezuela, prestando um relevante
serviço ao imperialismo norte-americano.
Na Argentina, o revezamento deve se dar nas eleições agora em
outubro. Cristina Kirchner despontava como favorita em todas as pesquisas. No
entanto, satanizada como progressista radical, decidiu formar uma chapa que
sugere moderação, em que ela vem como vice de Alberto
Fernández (bem aceito pelo "mercado"), na denominada Frente de
Todos. Ao que tudo indica, o ultraliberal Macri poderá ser derrotado,
porque não aconteceu o "milagre econômico" que havia
prometido. Nesse caso, o próximo governo argentino tende a ser mais
pragmático e menos progressista que os dos Kirchners (Néstor e
Cristina).
No Equador, a alternância se deu de maneira surpreendente. Rafael Correa,
em seu primeiro mandato como Presidente (2007/2012), convocou uma Constituinte
soberana, promoveu algumas mudanças e desafiou o imperialismo
norte-americano, despejando-o da base militar de Manta, a maior da
América Latina. Após um segundo mandato (2012/2017) em que
não deu continuidade às mudanças nem preparou um sucessor
progressista e sem poder legalmente candidatar-se a uma segunda
reeleição Correa se viu obrigado a apoiar a candidatura de
Lenin Moreno, que havia sido seu Vice-Presidente, numa aliança com
setores burgueses. Depois de eleito e empossado, em 2018, Lenin (que ironia!)
devolveu a base de Manta aos EUA, juntou-se aos governos de direita da
região contra a Venezuela bolivariana e atualmente se soma a uma
campanha de criminalização de Rafael Correa, para que este, como
Lula, não possa ser candidato às próximas
eleições. Qualquer semelhança com Michel Temer, que era o
vice de Dilma Rousseff, não é mera coincidência!
Em razão do desgaste e da acomodação política
causados pelos limites da administração do capitalismo,
até mesmo dois governos progressistas longevos Uruguai (desde
2005) e Bolívia (desde 2006) estão às voltas com as
mais difíceis eleições que disputaram e que
ocorrerão este ano. Ambos já procuram parecer mais moderados. No
caso do Uruguai, o ex-Presidente Pepe Mujica e o novo candidato da progressista
Frente Ampla (Daniel Martínez) vêm declarando publicamente que o
governo Maduro é uma ditadura! No caso da Bolívia, que
avançou positivamente em muitas mudanças políticas e
sociais e resistiu com o povo nas ruas a várias tentativas golpistas,
Evo Morales tem adotado atitudes regressivas, como prestigiar pessoalmente a
posse de Bolsonaro, aceitar a redução do preço do
gás que a Bolívia vende ao Brasil e negar asilo político a
Cesare Battisti, o que obviamente resultou na sua entrega à
polícia brasileira e sua extradição para a Itália,
onde cumpre prisão perpétua.
No México, a eleição do progressista López Obrador
reforça a tese da alternância de governo. Esse fenômeno
ultrapassa as fronteiras da América Latina. Para ficar entre os
países sobre os quais temos mais informações, esse
revezamento bipolar da administração do capitalismo vem
acontecendo na França, Espanha, Portugal, Itália e na
Grécia, onde o socialdemocrata Syriza acaba de ser derrotado pela
centro-direita, depois de ter implantado as políticas de austeridade
fiscal ditadas pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão
Europeia).
É evidente que a esquerda revolucionária não prefere um
governo de direita, na lógica do "quanto pior, melhor", na
suposição de que "acentua as contradições e
abre caminho para a revolução socialista". Em qualquer
circunstância, o que pode levar à revolução
socialista é a conscientização, organização
e capacidade de luta do proletariado e a presença de uma consistente
vanguarda revolucionária.
Por outro lado, mesmo não sendo prioridade, não devemos
subestimar os processos eleitorais, momentos importantes para fazer o trabalho
político e ideológico junto aos trabalhadores, apresentar nossas
propostas, táticas e estratégicas, denunciar a
exploração capitalista e o jogo marcado da democracia burguesa,
objetivos que recomendam nossa participação com identidade
própria, mesmo que em coligação com outras forças.
Se as circunstâncias nos levarem a apoiar um candidato que signifique um
"mal menor", não podemos deixar de dizer aos trabalhadores,
com todas as letras, que se trata do "menos ruim"!
PCB/SC: Você não falou da Colômbia. Como vê a
situação por lá, após o acordo de paz assinado
pelas FARC-EP?
Ivan: Pois é, camaradas. Estávamos tratando de alternância
de governo, que na história da Colômbia só se deu
até hoje entre facções da oligarquia, entre a direita e a
ultradireita.
Mesmo para quem acompanhou relativamente de perto os Diálogos de Havana,
é difícil entender e fazer um juízo de valor sobre a
abrupta decisão das FARC-EP de aceitar a exigência de entrega
prévia das armas para assinar o "acordo de paz". Essa
alterativa nunca foi aventada em toda a história invicta deste partido
comunista em armas. Uma hipótese que pode justificar esta decisão
é a de que houvesse um risco iminente de derrota militar, em
função de um certo desequilíbrio que vinha causando o uso
de novas tecnologias (mísseis "inteligentes", drones, chips
etc) por parte de um poderoso aparato militar, treinado e armado pelo
imperialismo norte-americano, que dispõe de nove bases no país.
Agora membro associado da OTAN, a Colômbia é uma cabeça de
ponte dos EUA, localizada estrategicamente entre as Américas do Sul e
Central e de frente para o Caribe, uma espécie de Israel em nosso
continente.
A dissidência que se cristaliza entre os antigos comandantes
guerrilheiros, e que vai se tornando pública, certamente em algum
momento jogará luz sobre as circunstâncias políticas em que
se deu aquela decisão, que surpreendeu a todos, inclusive às
forças políticas solidárias. Há a hipótese
também de alguma influência das ideias reformistas e
socialdemocratas que grassam na esquerda mundial, inclusive em parte do
movimento comunista, nomeadamente as ilusões eleitorais e institucionais.
Independente das razões que levaram a este desfecho, penso que esta foi
a pior derrota que tivemos na América Latina nos últimos tempos.
Diferentemente de derrotas eleitorais, que sempre podem ser revertidas, esta
é uma derrota política e ideológica de longo alcance, para
além da Colômbia. Uma das consequências foi deixar
desguarnecida a extensa fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, onde
era muito forte a presença militar das FARC, o que pode facilitar a
infiltração de paramilitares ou soldados regulares colombianos,
uma das alternativas dos EUA contra a Venezuela bolivariana.
Alguns dos antigos comandantes têm se pronunciado publicamente de forma
autocrítica. Iván Márquez recentemente classificou como
inocência política a forma da entrega das armas e a
desmobilização, enquanto Jésus Santrich, vítima de
uma farsa judicial com tentativa de extradição aos EUA, vinha
denunciando o extermínio de ex-guerrilheiros e militantes sociais, tendo
aconselhado publicamente o ELN (Exército de Libertação
Nacional) a não entregar suas armas nos marcos das
negociações que mantém com o governo colombiano,
atualmente suspensas por este. Encontrando-se na mira do estado colombiano,
correndo iminente risco de vida, há notícias de que ambos se
encontram foragidos.
É preciso deixar claro que a crítica aqui não é por
considerar que as FARC-EP deveriam manter a mesma forma de luta armada
até à vitória final, a que jamais chegariam por esta
única via, ou seja, se não contassem com um amplo e combativo
movimento de massas e uma vanguarda revolucionária nas grandes cidades e
entre o campesinato. Foi correto compor a mesa de diálogos com o
governo, para a busca de uma "solução política do
conflito", no conceito da insurgência, que sempre evitou a
expressão "acordo de paz" (usada pelo governo), já que
não há paz na luta de classes, ainda mais num estado terrorista
como o colombiano. Foi correto buscar uma solução para o conflito
que durante toda a sua história de mais de 50 anos custou a vida apenas
de filhos do proletariado, nos dois lados em armas. Durante os diálogos
em Havana, houve um extraordinário crescimento do movimento de massas,
já que as FARC-EP haviam se transformado em porta-voz das
reivindicações populares, muitas delas contempladas no documento
assinado entre as partes, mas em sua maioria tornadas letras mortas.
O açodamento e principalmente a forma da desmobilização da
insurgência abriram espaço para o governo descumprir e
inviabilizar a aplicação dos principais pontos acordados, o que
provocou desilusão e descrédito no povo colombiano e o
consequente refluxo do movimento de massas. Tratou-se de uma cilada, uma paz de
cemitérios. Ao invés da idealizada conciliação
nacional, assistimos hoje ao recrudescimento do terrorismo de estado. Desde a
desmobilização, já foram assassinados centenas de
militantes sociais e mais de 140 ex-guerrilheiros, enquanto o Estado lava as
mãos, atribuindo os crimes ao paramilitarismo.
Não serviu de exemplo o comportamento histórico da oligarquia
colombiana, que descumpriu todos os compromissos assumidos com diversas
guerrilhas, inclusive com as próprias FARC, que, após um acordo
com o governo Belisário Bitencourt, se desmobilizaram parcialmente e, em
1985, juntamente com o Partido Comunista Colombiano, criaram um partido legal,
a União Patriótica. Após as eleições de
1986, em que a UP teve um bom desempenho, elegendo 5 senadores e 14 deputados,
além de prefeitos e vereadores, começou um extermínio,
atribuído a grupos paramilitares, que resultou no assassinato de 4.000
militantes, no episódio que a oligarquia batizou cinicamente de El Baile
Rojo.
PCB/SC: E sobre Cuba? Como vai enfrentando as sanções e
ameaças do governo Trump? Qual a importância da ilha na atualidade?
Ivan: A Revolução Cubana segue sendo um grande exemplo para todos
os povos do mundo. Cuba é o único país em que me sinto
pessoalmente seguro de dizer que mantém uma experiência de
construção do socialismo.
Apesar de 60 anos de um cruel e desumano bloqueio levado a efeito pela maior
potência mundial, a poucas milhas de seu território, Cuba segue
soberana. Apesar do fim da União Soviética, que sempre lhe deu
suporte político, econômico e militar, o socialismo sobreviveu em
Cuba, com muito sacrifício, ao chamado período especial que se
seguiu, num momento em que o fim do socialismo no país era estimado em
dias, meses ou em poucos anos. Apesar das dificuldades de construir o
socialismo praticamente em um só país, uma pequena ilha, Cuba
continua revolucionária, internacionalista e anti-imperialista.
Mas não podemos deixar de reconhecer e compreender que a
Revolução Cubana, por conta de todas essas dificuldades,
sobretudo econômicas, não achou outra alternativa senão a
adoção de algumas mudanças que vêm abrindo
espaço à iniciativa privada, para poder manter alguns dos mais
importantes princípios da Revolução: as garantias de
trabalho e de gratuidade em todos os níveis da educação e
em todos os serviços de saúde. Uma das soluções
encontradas foi um plano de demissão voluntária de servidores
públicos em áreas com grande excesso de pessoal, em troca do
direito de empreender alguma atividade que lhes gerasse rendimento com seu
trabalho e de pessoas de sua família, num sistema que ficou conhecido
como
contapropismo.
Entretanto, na busca por mais valor (e confirmando a inescapável lei da
acumulação capitalista), alguns desses empreendimentos, sobretudo
na diversificada e importante área do turismo, se desenvolveram e
passaram a utilizar mão de obra informal de terceiros. Esse tema foi
objeto de amplo debate no recente processo de revisão da
Constituição Cubana, que envolveu praticamente toda a
população. O anteprojeto que resultou desta consulta foi
submetido a um referendo nacional, sendo aprovado por 87% dos cubanos, com
comparecimento às urnas de 90% dos eleitores. Entre as principais
mudanças constitucionais estão medidas para conter a
expansão do setor privado na economia, com regras rígidas para
coibir a exploração de mão de obra, o aumento de
preços dos produtos de consumo popular, a evasão de impostos,
além de vários ajustes e correções de rumo para
resolver os principais problemas do país, dentro de um contexto de
reafirmação da construção do socialismo.
Já com relação às manobras,
provocações e agressões do imperialismo norte-americano
que nunca deu trégua nos 60 anos de Revolução
Socialista a atual crise na Venezuela suscitou uma nova onda de
ameaças e sanções específicas contra Cuba, mas que
na realidade têm o objetivo de tentar "matar dois coelhos com uma
só cajadada", ou seja, atingir e tentar fragilizar esses dois
países que não se submetem aos seus desígnios, procurando
debilitar uma relação bilateral que beneficia os dois povos. Com
este objetivo, o governo Trump mente descaradamente para apertar o cerco
econômico contra a Ilha, afirmando que há tropas cubanas na
Venezuela.
Baseada na famigerada Lei Helms-Burton, de 1996 (governo Clinton), a ofensiva
atual ataca exatamente as duas necessidades fundamentais para a
solução dos problemas econômicos cubanos: os investimentos
estrangeiros e o setor do turismo, suas principais fontes de receitas em moedas
estrangeiras e de geração de emprego e rendimento. Para afastar
investimentos, usando seu arbitrário poder extraterritorial, o governo
dos EUA resolveu impor sanções às empresas que tenham
alguma relação comercial em imóveis nacionalizados
há décadas pela Revolução Cubana e, para estancar o
crescente fluxo de turistas estrangeiros na ilha caribenha (4 milhões,
em 2018), estabeleceu fortes restrições a viagens de
cidadãos estadunidense a Cuba.
Mas a Revolução Cubana tem como uma de suas principais marcas a
superação de obstáculos, que não têm sido
poucos nem fáceis de vencer. Nunca se entregou! E mais uma vez
vencerá!
Por conta desta história de resistência invicta, da mística
revolucionária de Fidel, Che, Camilo Cienfuegos e seus camaradas da
Sierra Maestra, de sua determinação de criar uma sociedade sem
opressores nem oprimidos, por ser na atualidade o único país,
povo e governo do mundo a praticar o internacionalismo proletário, nunca
lhe faltou nem faltará a solidariedade vinda de todas as partes do
mundo, sobretudo de todas as expressões políticas e sociais
comprometidas com a construção de um mundo sem guerras, sem fome
nem miséria, onde todos possamos compartilhar os mesmos direitos e
deveres e, como em Cuba, nos chamarmos de companheiros.
PCB/SC: Vivemos o esgotamento do ciclo lulista, que foi derrotado pelo Golpe de
2016, que culminou com a prisão de Lula e a derrota de Haddad nas
eleições de 2018. O que levou à crise e à derrota
desse projeto? Por que, mesmo com o desgaste do projeto petista, a esquerda
socialista não conseguiu se apresentar como uma alternativa real para a
classe trabalhadora brasileira?
Ivan: O golpe contra Dilma foi consequência do agravamento no Brasil da
crise mundial do capitalismo, que levou a burguesia a prescindir da
conciliação de classes dos governos petistas que, enquanto a
economia ia bem (favorecida pelo "boom das commodities"), garantiam
a expansão e os lucros do capital e, ao mesmo tempo, amaciavam a luta de
classes com políticas compensatórias, a cooptação e
o apassivamento do movimento sindical e popular.
Enquanto os efeitos mais graves da crise não chegavam aqui, os governos
petistas se mantiveram de pé, sem muitos sobressaltos, por três
mandatos consecutivos (2003/2014). A governabilidade petista neste
período era garantida por uma ampla aliança com partidos
burgueses, que assegurava folgada maioria no parlamento, ao custo da
impossibilidade de promover qualquer mudança estrutural. Uma das
consequências foi não ter sido feito absolutamente nada ao menos
para mitigar o monopólio da mídia burguesa. Pelo
contrário, os governos petistas tentavam, em vão,
neutralizá-la com robustas verbas públicas. Há um PT na
oposição e outro no governo. Com a posse de Lula em 2003, seu
partido, que havia liderado a luta pela reestatização da Vale do
Rio Doce, privatizada no governo FHC, calou-se e não moveu uma palha a
respeito.
Quando a crise econômica atingiu em cheio o final do primeiro mandato de
Dilma, os governos petistas se tornaram anacrônicos para o sistema, pois
não podiam mais sustentar a conciliação de classes (como
se viu a partir das manifestações de 2013) nem assegurar, de
forma rápida e intensa, as contrarreformas de que o capital necessita
para sair da crise às custas dos trabalhadores. A burguesia precisava de
um governo para chamar de seu. Dilma ainda tentou agradar o capital, com a
nomeação de um ministro da Fazenda de absoluta confiança
do mercado. Mas sua sorte já estava lançada.
As medidas adotadas pelo governo Temer deixam bem claro que as razões do
impedimento da Presidente Dilma não foram as "pedaladas
fiscais", pretexto que até hoje pouca gente sabe do que se trata.
Mesmo com um índice de rejeição popular recorde e enredado
em graves denúncias de corrupção, Temer conseguiu, em seu
breve mandato, aprovar a contrarreforma trabalhista, a
generalização das terceirizações, o "teto de
gastos públicos" por 20 anos, sem que nem as imagens de uma mala
com 500 mil reais carregada por assessor de sua confiança lhe
ameaçassem o mandato.
O golpe parlamentar, judicial e midiático contra Dilma só foi
possível porque os trabalhadores e as camadas populares diferente
do que vem ocorrendo na Venezuela não atenderam ao chamado para
defendê-la, exatamente porque não havia conquistas significativas
nem mudanças estruturais a preservar. E foi facilitado pela
conciliação dos governos petistas: pela campanha de
satanização da mídia que não combateram, pelo
oportunismo dos Ministros do STF que nomearam e pela traição do
Vice-Presidente e dos partidos burgueses com os quais se coligaram. Em resumo:
o PT foi vítima da sua própria conciliação!
Apesar desta derrota, considero um erro a teoria do "esgotamento do ciclo
petista", surgida em nosso meio após as manifestações
de 2013 e reforçada depois do golpe contra Dilma. Essa teoria induziu ao
voluntarismo de achar que o PT estaria morrendo e que chegara a hora e a vez de
as forças da esquerda revolucionária dirigirem um novo ciclo de
lutas, no qual o reformismo não teria mais espaço, o que é
outra ilusão. Mesmo que o PT tivesse desaparecido, o reformismo migraria
para outro partido socialdemocrata, pois esta é uma ideologia
predominante na pequena-burguesia. Por sinal, o PSOL já vem se
beneficiando do desgaste do PT.
Se levarmos em conta que o sistema teve que prender Lula para ele não
vencer as eleições de 2018 e que a despeito de toda a
satanização dele e do PT (como se tivessem inventado a
corrupção no Brasil) Haddad ainda assim foi para o segundo
turno e o PT elegeu novamente a maior bancada de Deputados Federais, temos que
reconhecer que o petismo sofreu um grande desgaste, mas não se esgotou,
inclusive no movimento sindical, em que ainda é a maior força. O
PT pode até voltar ao governo pelo voto em 2022, já que a crise
econômica dá sinais de que pode agravar-se. Nesta hipótese,
não podemos descartar que essa eventual volta ao governo se dê com
o apoio no primeiro ou segundo turno de setores das classes
dominantes que deverão ser prejudicados pela contrarreforma da
previdência (que deverá provocar a retração do
consumo das camadas médias e populares), pela
desindustrialização, que se aprofundará com o acordo
Mercosul/União Europeia, e com o alinhamento incondicional aos EUA, que
afasta mercados importantes para os produtos brasileiros. Ainda mais se as
revelações dos bastidores da "Operação Lava
Jato" forem mais fundo e deixarem evidentes a parcialidade e a
politização do julgamento de Lula.
A esquerda socialista não se tornou alternativa ao desgaste do petismo
por várias razões. Uma delas foi que a mídia transformou o
PT em sinônimo de esquerda, de socialismo e até de comunismo. Mas
há outros fatores que pesam, como a débil inserção
na classe operária e nos setores populares, a incapacidade de forjar
frentes de luta unitária para além de eleições, o
movimentismo e o identitarismo que predominam na grande maioria das correntes
que reivindicam a esquerda socialista. Muitas delas se movimentam tendo como
bússola a sua performance nas próximas eleições. A
mais de um ano das eleições municipais de outubro de 2020
e em plena tramitação da contrarreforma da previdência
os partidos reformistas já começam a tratar como
prioridade o debate sobre coligações e candidaturas a prefeitos e
vereadores. Nas sábias palavras de um camarada, nos anos ímpares
esta esquerda se prepara para as eleições, que se dão nos
anos pares!
PCB/SC: Qual a sua avaliação sobre os primeiros meses do governo
Bolsonaro? Como analisa a crise interna do governo e as consequências do
vazamento dos bastidores da Lava Jato? Nesse cenário o que deve ser
defendido pelas esquerdas? Como os movimentos sociais e populares podem
interferir nesse processo? Qual a alternativa para a classe trabalhadora mudar
uma conjuntura tão adversa?
Ivan: O governo Bolsonaro só não conseguiu ser pior, do nosso
ponto de vista, em função das trapalhadas diárias que
cria, das crises e conspirações urdidas por seus filhos, seu
ideólogo Olavo de Carvalho e seus ministros, que atrasam o ritmo do seu
próprio projeto de destruição do que resta do estado
social, dos direitos trabalhistas, civis e políticos e da própria
soberania nacional. Mas o retrocesso já é muito grande, em todos
os aspectos.
Pelo que se observa na mídia hegemônica a fonte mais
reveladora dos humores das classes dominantes há entre elas um
desconforto com as asneiras e destemperos diários do
inacreditável presidente que elegeram. Suas propostas preconceituosas e
ultraconservadoras e suas declarações histriônicas, algumas
de inspiração fascista, dificultam a pressa da imensa maioria de
direita no parlamento em implantar as reformas neoliberais que dependem de
iniciativa legislativa. A burguesia está preocupada com medidas a seu
favor para a superação da crise econômica, não com o
"marxismo cultural", a "ideologia de gênero" e outras
bizarrices.
A crise do momento, em que se destacam os bastidores da Lava Jato (que acirram
o conflito entre o STF e o MPF) e as declarações torpes e
mentirosas do Presidente sobre a prisão e o assassinato de Fernando
Santa Cruz pela ditadura burguesa sob a forma militar, se desenrola exatamente
no reinício da tramitação no parlamento da contrarreforma
da previdência, considerada pelo "mercado" como a mãe de
todas as chamadas reformas estruturantes a favor do capital.
Entretanto, ao menos no curto prazo, tudo indica que não haverá
qualquer iniciativa no andar de cima com vistas a uma campanha pelo impedimento
do Presidente. Motivos não faltariam: as fake news nas
eleições, a relação íntima do clã com
as milícias no Rio de Janeiro, o possível envolvimento no
assassinato de Marielle Franco, o esquema de lavagem de dinheiro de
Flávio Bolsonaro, as evidentes manobras para impedir a candidatura de
Lula.
A razão principal desta sustentação política, ainda
que constrangida, é que, bem ou mal, a agenda das reformas que
interessam ao capital começou a andar no parlamento e também em
matérias que são da alçada do executivo, como foi a
privatização em tempo recorde da BR Distribuidora [de
combustíveis], aliás, com respaldo do STF. É bom lembrar
que a mídia e os três poderes estatais estão perfeitamente
afinados com o projeto do capital e só colocam obstáculos a
propostas estapafúrdias do executivo, que extrapolem limites do que
consideram civilizado, como a liberação da posse e do porte de
armas e o afrouxamento das multas de trânsito.
Para garantir seu mandato, Bolsonaro tende a adotar cada vez mais iniciativas
que satisfaçam o apetite do capital por extrair mais valor. É o
caso da recente Medida Provisória 881/2019, apresentada pelo governo com
o esperto título de "MP da Liberdade Econômica" mas que,
a pretexto de desburocratizar as empresas, amplia os efeitos perversos da
contrarreforma trabalhista de Temer, estabelecendo o aumento da jornada de
trabalho de várias categorias, a permissão de trabalho aos
domingos e feriados sem negociação coletiva, a suspensão
de normas sobre saúde e segurança do trabalho, inclusive a
possibilidade de extinção das Comissões Internas de
Prevenção de Acidentes, entre outras perdas de direitos
trabalhistas
Outra razão importante que vem garantindo a governabilidade é que
Bolsonaro ainda possui uma sólida base social, radicalizada e
idiotizada, que venderia caro uma tentativa de seu impedimento, contando com o
apoio das igrejas neopentecostais, da maioria do comando e principalmente das
bases das forças armadas, das polícias de todos os âmbitos
e esferas, do agronegócio, dos caminhoneiros (que podem parar o
país) e de milícias e organizações de ultra direita
que podem transformar em episódios sangrentos a defesa do seu
"mito".
A burguesia só recorrerá ao processo de impedimento contra
Bolsonaro se não houver mais condições de administrar as
constantes crises que ele gera e se aprofundarem-se o seu isolamento
político, inclusive entre seus fiadores militares, e o desgaste em sua
base social, a ponto de ele passar a não dispor mais de meios
razoáveis para tentar um autogolpe.
Enquanto isso, a burguesia, que não pode esperar, já arranjou uma
maneira informal, provisória ou não (a depender dos
desdobramentos), de levar à frente sua pauta no legislativo, sem
precisar contar com Bolsonaro e, em alguns casos, apesar dele. Dispondo de uma
bancada parlamentar de centro-direita maior do que a soma das bancadas da
oposição de centro-esquerda e do partido de extrema-direita de
Bolsonaro, forjou-se um parlamentarismo de fato, sob a liderança de
Rodrigo Maia, alçado à condição de primeiro
ministro de fato e, quiçá, de próximo candidato a
Presidente da República da maioria das classes dominantes, expressando
um campo de centro-direita, neoliberal na economia e
"democrático" na política e nos costumes. Essa
articulação chamou para si a contrarreforma da previdência
e já se prepara para conduzir outras reformas de interesse do capital, a
começar pela tributária.
Já no campo da oposição dita de esquerda e do movimento
popular há muitas apostas em soluções institucionais que
em nada alterariam a atual correlação de forças
desfavorável.
Há os que torcem para Bolsonaro ficar na presidência até o
fim do mandato, considerando que ele complica os projetos da burguesia e
chegaria desgastado às eleições de 2022, facilitando a
vitória de Lula ou de outro candidato progressista. Já os que
torcem por Mourão (e, portanto, pelo impedimento do Presidente)
iludem-se com a maquiagem que o general vem fazendo em sua imagem, contrapondo
suas opiniões às do Presidente. Acham que ele não causaria
tantos retrocessos e estaria aberto ao diálogo.
É preciso acabar com essas ilusões. Um processo de impedimento
antes das principais reformas neoliberais e do aprofundamento do desgaste de
Bolsonaro atrasaria mais os planos das classes dominantes do que a diarreia
verbal incontinente do Presidente e ainda poderia trazer instabilidade
política e social. Por outro lado, os militares ainda apoiam e
participam do governo Bolsonaro. Não são democratas nem
nacionalistas. Vários dos seus expoentes, inclusive os generais
Mourão, Heleno e Vilas-Boas, pronunciaram-se publicamente a favor do
golpe contra Dilma e contra a libertação de Lula, chantageando a
opinião pública, o parlamento e o poder judiciário, e
não levantaram uma só palavra contra a entrega da Embraer
à Boeing e da base de Alcântara aos EUA e tampouco a sanha
privatizante do governo. Humilhados pela fritura de alguns de seus generais e
sem conseguir cumprir o papel moderador que imaginavam, os militares
sairão desmoralizados por sua participação neste governo.
Doces ilusões! Não podemos nos comportar como torcedores, na
expectativa de soluções vindas de cima que pareçam
"menos ruins". Só a conscientização, a
organização e a luta dos trabalhadores e das camadas populares,
com independência de classe, poderão evitar a
destruição dos direitos trabalhistas, sociais, civis e
políticos e avançar em outras conquistas. Essa é a nossa
tarefa principal, não pensando apenas na atual conjuntura, mas em
qualquer cenário, qualquer correlação de forças, a
qualquer tempo. Não podemos subestimar as divisões e
contradições interburguesas, que são inerentes ao
capitalismo; quando possível, devemos aproveitá-las a nosso
favor. Mas sem ilusões! Não há divergências
inconciliáveis nas classes dominantes sobre a pauta que as levaram a
apoiar Bolsonaro. Muito menos no governo, onde as diferenças são
de forma e estilo, não de conteúdo!
Um outro entrave ao movimento de massas é o fato de o campo petista
privilegiar o "Lula Livre!" como a bandeira principal, em detrimento
da luta contra a ofensiva do capital. Essa prioridade debilita o movimento de
massas, estimulando a ilusão de que só com eleições
e a volta de Lula ao governo podemos assegurar nossos direitos. Não se
trata aqui de negar a justeza desta bandeira. O julgamento de Lula foi
político e seletivo, um novo golpe para evitar sua candidatura em 2018.
Devemos prestar nossa solidariedade ao ex-Presidente, participando de algumas
iniciativas específicas da campanha por sua libertação,
mas sem priorizar esta bandeira nem abrir mão das necessárias
críticas à conciliação dos governos petistas.
É preciso também combater as ilusões de classe
disseminadas por setores da socialdemocracia "de esquerda", que
enganam e desmobilizam as massas com a vã esperança de
derrotarmos ou mitigarmos os planos do capital no parlamento ou na
justiça (instituições do estado burguês), como vimos
durante a fase da luta contra a "reforma" da previdência
anterior à votação em primeiro turno na Câmara dos
Deputados, onde, por sinal, os reformistas negociam e conciliam com o seu
Presidente, cacifando ainda mais este líder emergente da centro-direita,
queridinho da mídia e do "mercado". Os deputados do PcdoB, por
exemplo, votaram nele para Presidente da Câmara, já no primeiro
turno, mesmo havendo um candidato da bancada de esquerda!
Outra questão é a caracterização do governo
Bolsonaro. Apesar de declarações e atitudes de
inspiração fascista da parte dele e de seu entorno
político mais próximo, não me parece correto definir o
governo como fascista ou neofascista e nem exagerarmos os riscos do advento de
uma ditadura aberta. Isso nos levaria ao erro de privilegiar os esforços
por uma gelatinosa frente democrática policlassista e não pela
necessária unidade na ação com a esquerda socialista e os
movimentos sindicais e populares. Significaria privilegiar a luta em defesa da
democracia burguesa, em detrimento dos direitos trabalhistas e sociais.
Apesar de Bolsonaro, o chamado "estado democrático de direito"
funciona normalmente nestes sete meses de governo, embora com viés
autoritário. O fato de haver neofascistas no governo não
significa que estejamos sob o fascismo. Seria o mesmo que caracterizar os
governos petistas como socialistas ou comunistas só porque deles
participavam partidos que ainda mantêm nos seus nomes esses conceitos.
Não há qualquer indício de que as classes dominantes em
nosso país apoiariam, nos dias de hoje, uma ditadura aberta ou um
processo de fascistização, alternativas a que recorreram, em
1964, quando viram ameaças concretas de mudanças estruturais, com
o avanço do movimento de massas que empurrava o governo João
Goulart para a esquerda. Isso se deu no auge da União Soviética e
em plena Guerra Fria, na época das revoluções socialistas
e de libertação nacional e numa América Latina rebelde,
onde a Revolução Cubana inspirava movimentos
revolucionários, o que levou o imperialismo a apoiar e articular
ditaduras burguesas fascistizantes em quase todo o nosso continente.
Nos dias de hoje, o rompimento do "estado democrático de
direito", além de anacrônico e absolutamente
desnecessário para o sistema, seria um tiro no pé dos interesses
das classes dominantes, exatamente quando clamam de joelhos por investimentos
estrangeiros, que dependem de segurança jurídica e estabilidade
política. Além do mais, desde a chamada
"transição democrática" lenta, gradual e
segura, como convinha aos interesses das classes dominantes nunca houve
uma correlação de forças tão favorável para
assegurar os interesses do capital.
Isso não significa que a democracia burguesa (em verdade uma ditadura de
classe) não possa recrudescer seu lado repressor. Ela é
flexível, em função das necessidades do capital e da
correlação de forças. Por isso sem nos desviarmos
da centralidade da luta contra a ofensiva do capital em relação
aos direitos trabalhistas e sociais , não podemos perder de vista
a defesa das liberdades democráticas, entendidas como o conjunto de
direitos políticos conquistados, nomeadamente os de expressão,
organização e manifestação. Nesse sentido,
não podemos descuidar do diálogo, de forma pontual e
independente, com as forças reformistas de centro-esquerda nem das
necessárias precauções ligadas à segurança e
autodefesa. Quanto mais se desgasta o governo e ficam evidentes as barreiras
aos seus delírios, mais radicalizados e ousados ficarão seus
fiéis apoiadores.
Se fizermos um balanço realista da atual correlação de
forças em nossa sociedade, infelizmente teremos que reconhecer que a
disputa pelo poder não é entre esquerda e direita, como aqui em
1964 ou na Venezuela na atualidade, mas entre a direita e a centro-direita, de
cujos embates é que podem surgir aventuras golpistas e
autoritárias. De certa forma, ainda pagando o preço dos governos
petistas de conciliação de classe e do reformismo que hegemoniza
o que chamamos de esquerda, temos influído pouco na conjuntura, sendo
mais expectadores da cena política do que atores.
Para reverter essa correlação de forças
desfavorável e avançar na luta é necessário
combater as ilusões em soluções institucionais, jogar toda
a energia militante na conscientização, organização
e mobilização dos trabalhadores e das camadas populares e
promover, no campo da esquerda socialista, um urgente debate com o objetivo de
unificar e politizar a luta comum. Nesse sentido, seria fundamental a
realização de um encontro nacional das centrais e correntes
sindicais e dos movimentos, entidades e coletivos populares classistas, com
vistas a unificar as bandeiras políticas, a pauta comum e uma
articulação nacional, superando a fragmentação dos
recentes dias nacionais de luta, que têm sido convocados de forma
setorial, ora apenas pelas centrais sindicais ora por entidades de estudantes
ou de professores para a defesa de pautas específicas.
Quanto à ação dos comunistas revolucionários (com
perdão da necessária redundância), a crise mundial do
capitalismo e o consequente aprofundamento da exploração e da
barbárie nos propiciam melhores argumentos e condições
para esclarecer as massas sobre a natureza da luta de classes e do estado
burguês, favorecendo a agitação e a propaganda do
socialismo e do comunismo e, portanto, as nossas possibilidades de
inserção entre o proletariado e as camadas populares, fator
indispensável para o crescimento qualitativo do partido
revolucionário e para o acerto da linha política, nos
princípios do marxismo-leninismo.
Nosso principal desafio é avançar na construção
revolucionária do partido, girando a militância para
atuação nas lutas do movimento sindical e operário e da
juventude proletária, promovendo atividades próprias e
autônomas em relação a outras forças e praticando
uma política de alianças com independência e identidade
própria.
07/Agosto/2019
[*]
Membro do Comité Central do PCB.
O original encontra-se em
pcbsc.wordpress.com/...
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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