Outubro ou nada
Uma família de nobres
voltava a São Petersburgo com seus inúmeros filhos e malas
volumosas. Havia-se retirado em fevereiro para fugir dos acontecimentos
trágicos que haviam derrubado o Czar e não havia acompanhado o
desenvolvimento político que levara os trabalhadores ao poder em
outubro. Pateticamente parada na plataforma e acostumada com um servilismo
milenar, esperava que algum carregador implorasse para levar as bagagens da
família em troca de alguns míseros copeques.
Depois de esperar em vão
por um bom tempo, um criado (nobres não se dignavam a falar com pobres)
vai buscar informações e ouve a seguinte resposta: "agora
somos livres, se quiser carregue suas malas"!
Era a grande
revolução de Outubro que emergia lá de onde costuma vir as
coisas dos explorados, da periferia, das sombras esquecidas sob a ofuscante
aparência de riqueza das sociedades opulentas, dos cantos obscuros que o
olhar hipócrita quer esquecer ou incorpora como normal. Em meio à
tragédia da guerra, a barbárie em sua forma mais didática,
a vida resistia e se levantava contra a fome e a morte.
A Revolução Russa
marcou de forma definitiva a história do século XX em muitas
áreas (ver a coletânea organizada por Milton Pinheiro
Outubro e as experiências socialistas do século XX
Salvador: Quarteto, 2010), como acontecimento político, como
experiência histórica de um Estado Proletário, como base de
transformações econômicas fundadas na
socialização dos meios de produção, nas
práticas do planejamento, como influência política direta
nos rumos do movimento comunista internacional e a formação de
estratégias e táticas do movimento revolucionário mundial.
Não podemos esquecer sua
importância no desenvolvimento da cultura (é só pensar em
Vladimir Maiakoviski na poesia e Sergei Eisenstein para o cinema), o ulterior
desenvolvimento da música (Prokofiev, Stravinski) e dança, das
ciências (Luria, Vigotski, Bakthin, e tantos outros), o desenvolvimento
técnico e científico (Sakharov, Andréi Kolmogórov,
etc.). No entanto, quisera me deter numa outra dimensão.
Certos acontecimentos
históricos despertam algo um pouco mais intangível que suas
manifestações econômicas, políticas, culturais e
técnico-científicas. A revolução russa se espalhou
pelo mundo, sem internet e televisão, numa velocidade que precisa ser
compreendida. Não apenas se expandiu enquanto processo
revolucionário que em menos de seis meses havia saído da Europa
oriental e chegado ao mar do Japão, se alastrado como fogo em palha pelo
antigo império czarista, como atravessou o oceano e incendiou o
coração e as esperanças dos trabalhadores das partes mais
distantes do globo.
Em uma foto de grevistas em um
porto nos EUA na mesma época pode-se ver ao fundo uma faixa na qual se
lê: "façamos como nossos irmãos russos". No
Brasil as greves operárias se alastravam até a greve geral de
1917 e a Revolução russa foi saudada pelo movimento
anarco-sindicalista como expressão da revolução
libertária enquanto emissários eram mandados para lá para
colher informações e prestar solidariedade. Poucos anos depois,
nos anos vinte, quando o caráter marxista da experiência
soviética se torna evidente, distanciando-se, portanto, dos
princípios anarquistas, forma-se um movimento comunista que não
tem paralelo com nenhum outro por sua escala mundial, sua forma de
organização e sua ação.
Partidos Comunistas são
formados em toda a América Latina, assim como em quase todos os mais
distantes rincões do planeta, dos EUA até a China. Evidente que a
formação da União Soviética e da III Internacional
Comunista explicam a iniciativa e mais, a necessidade, de uma
organização internacional, mas não sua
aceitação e rápido desenvolvimento. Há elementos
objetivos e subjetivos que precisam ser levados em conta.
Os objetivos são por
demais conhecidos e podem ser resumidos na própria
internacionalização do modo de produção capitalista
e sua transformação em imperialismo, mas não podemos
compreender a dimensão desse fenômeno sem entender que a
revolução soviética foi um evento catalisador de
esperanças de todos os explorados.
Como nos dizia Marx para que se forje uma classe revolucionária é
necessário que se manifeste uma classe que se apresente como um entrave
de caráter universal, ao mesmo tempo em que outra consiga expressar
através de sua particularidade os contornos de uma
emancipação universal. Falando da Alemanha, Marx afirmava que
faltava: "grandeza de alma, que, por um momento apenas, os identificaria
com a alma popular, a genialidade que instiga a força material ao poder
político, a audácia revolucionária que arremessa ao
adversário a frase provocadora:
Nada sou e serei tudo.
" (Marx, K. Crítica à filosofia do Direito de Hegel.
São Paulo, Boitempo: 2005: 154).
Não se trata de nenhum
deslize idealista, mas de exata combinação de fatores que dada
certas condições materiais, que sem dúvida a guerra
mundial propiciava, cria uma equação na qual uma classe encontra
as condições de sua fusão enquanto classe. Imersa na
cotidianidade reificadora, submetida às condições da
exploração os trabalhadores vivem seu destino como uma
condição inescapável. Ainda que submetidos as mesmas
condições que seus companheiros, não vivem estas
condições como base para uma consciência e
ação comuns, mas como uma serialidade, nos termos de Sartre. A
vida é assim e é impossível mudá-la.
Em certas
condições, no entanto, se produz uma situação na
qual a realidade se impõe de tal forma que se torna impossível
manter a impossibilidade de mudá-la, nas palavras de Sartre: "A
transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é
ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um acontecimento
sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de
viver" (Sartre, J. Crítica de la razón dialéctica.
Buenos Aires: Losada, 1979, v. 2, p.14). O pensador francês tem em mente
os acontecimentos da crise da monarquia absoluta que levou a eclosão da
Revolução Francesa, mas vemos claramente esses elementos na crise
do czarismo nas condições da guerra.
Interessa-nos, no entanto,
outra dimensão desse fenômeno. Da mesma forma que um acontecimento
sintético pode levar à fusão da classe e a
superação de sua situação de serialidade,
encontrando na ação do grupo as condições para
abrir a possibilidade de superar o campo prático inerte, devemos supor
que uma ação particular da magnitude de um processo
revolucionário como o russo, provoca um efeito sobre os trabalhadores,
mesmo aqueles que não estavam envolvidos direta e presencialmente nos
acontecimentos.
Ernesto Che Guevara denominava
isso de "consciência da possibilidade da vitória" e
inclui entre as condições objetivas que torna possível uma
revolução. Quando os trabalhadores vêem os
revolucionários russos varrerem seus tiranos, quebra-se a
impressão de naturalização e inevitabilidade com as quais
revestiam suas condições de existência. É
possível mudar, nada somos, mas podemos ser tudo.
Em um belo poema
soviético é descrita a cena na qual uma camponesa que agora tinha
acesso aos museus e suas obras de arte se detêm diante de um quadro a
admirá-lo. A autora do poema então conclui: "mal sabia que
ali era uma obra de arte a admirar outra". Operários assumem as
fábricas, as terras são entregues aos comitês
agrários para serem repartidas. Soldados, operários, camponeses,
marinheiros, lotam os teatros antes privativos da nobreza russa, para ouvir
Maiakóviski recitar os poemas que retira dos bolsos de seu enorme casaco
e de seu coração ainda maior.
Suspendemos por um instante as
enormes dificuldades que viriam, a guerra civil, o isolamento, a
burocratização e a degeneração que culminaria no
desfecho histórico de 1989. Naquele momento de maravilhoso caos, a vida
fluía não como processo que aprisiona os seres humanos nas
cadeias do estranhamento, mas como livre fluir de uma práxis
transformadora. Tudo pode ser mudado. Podemos criar as crianças de uma
nova forma, e já vemos Makarenko e seu enorme coração
abrigando os órfãos da guerra e reinventando a pedagogia,
trabalhadores organizando as comissões de fábrica e Alexandra
Kollontai olhando o mundo com os olhos de mulheres emancipadas.
Enquanto o mundo capitalista
preparava-se para esmagar a experiência revolucionária russa (a
república dos trabalhadores seria atacada em 1918 por dez
potências estrangeiras), o generoso coração da classe
trabalhadora acolhe esta experiência como sua e a defende, sem
conhecê-la profundamente, sem que a compreenda de todo, mas por que nela
se reconhece.
Paz, terra, pão e sonhos voavam pelo mundo que o capital havia tornado
um só e mãos calejadas, duras como a terra que trabalham, os
seguram e se alimentam da esperança dos que se levantaram contra seus
opressores. Corpos exauridos pela chacina diária das fábricas
caminham pelas ruas e olham em frente, levantam seus punhos e cantam a
canção que os unia: se nada somos em tal mundo, sejamos tudo,
ó produtores!
Em tempos como os nossos, de hipocrisia deliberada, em tempos de humanidade
desumanizada, de cotidianidade reificada, a consciência da possibilidade
da vitória se reverte em seu contrário e se manifesta novamente
como uma consciência da impossibilidade da mudança. Brecht nos
alerta: nada deve parecer natural, porque nada deve parecer impossível
de mudar e completa em outro poema: até quando o mundo será
governado por tiranos? Até quando iremos suportá-los?
Presos à nova serialidade, fragmentados e divididos, submetidos
às novas cadeias de impossibilidades, escolhendo a cada quatro anos quem
irá comandar sua exploração, nossa classe nem se lembra
que teve um outubro e que fizemos a terra tremer e que os poderosos perderam o
sono diante da iminência de seu juízo final.
Diante da realidade do capital internacional que ameaça a humanidade,
diante da barbárie diária que ameaça minha classe,
gestam-se novas impossibilidades de manter os limites do possível,
crises didáticas transformam em pó certezas neo e pós
liberais arcaicos/modernos e suas irracionalidades racionais. O pólo da
negatividade humana se reapresenta arrogante e prepotente. Muitos são os
que se levantam ainda sem rumo, não importa, que se levantem e gritem,
resistam e lutem. Mas, em sua marcha olhando para o futuro, resistindo contra
as mazelas do presente desumano do capital, olhem por um momento para
trás, vejam como já marchavam à nossa frente nossos
camaradas russos, vejam como iam decididos e corajosos abrindo caminho em
direção ao amanhã.
Marchemos para frente, tiremos nossa poesia do futuro, basta de anacronias e
cópias do passado, mas não nos esqueçamos nunca que
tivemos um Outubro, e foi nosso, e foi um grande Outubro vermelho e
proletário, e foi tão grande que foi planetário, e foi
tão generoso e fraterno que nele se irmaram todos os trabalhadores do
mundo e chegaram a acreditar que tudo podia mudar e, por um momento, mudaram
tudo que podiam.
Viva a revolução Soviética de 1917. Outubro... ou nada!
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do
PCB
. É autor do
livro
O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência
(Boitempo, 2002). Colabora para o
Blog da Boitempo
mensalmente, às quartas.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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