Ler o programa de governo de Jair Bolsonaro, intitulado
O Caminho da Prosperidade
, é aventurar-se pela cabeça do candidato e de sua equipe. E esse
é o lado ruim.
Assusta que um candidato apresente um projeto tão pífio para uma
campanha presidencial. Assusta que esse candidato seja o atual líder nas
pesquisas de opinião
[NR]
. Bolsonaro é uma ameaça não só para nossa
democracia, mas também para nosso desenvolvimento econômico e para
os nossos frágeis avanços sociais.
Vamos ao que interessa: a economia. O documento começa afirmando que a
área será liderada por duas instituições: o Banco
Central e o Ministério da Economia. Esse último seria resultado
da junção dos ministérios da Fazenda, do Planejamento e da
Indústria & Comércio, além da Secretaria Executiva do
Programa de Parcerias de Investimentos. As instituições
financeiras federais, diz o documento, também estarão
subordinadas ao novo Ministério.
Não é uma novidade. O Brasil já teve um Ministério
da Economia resultante da junção dessas mesmas pastas. A ideia de
Bolsonaro nada mais é que um plágio do que foi feito por Fernando
Collor de Mello durante seu breve governo (1990-1992). A ideia, tanto lá
em 1990 quanto hoje em 2018, é de sinalizar para o público que o
governo é sério, austero, evita o desperdício.
O resultado prático, porém, pode ser negativo.
Assim como Collor entregou poderes excessivos para uma economista sem qualquer
experiência na alta burocracia federal (no caso, Zélia Cardoso de
Melo), Bolsonaro promete fazer algo similar, dotando Paulo Guedes de
superpoderes. Responsável pelo Plano Collor, Zélia confiscou o
dinheiro da poupança e da conta corrente dos brasileiros, provocando uma
grave crise econômica. E falhou no combate à
hiperinflação.
Paulo Guedes é confiável e capaz de gerenciar tão amplo
espectro da administração pública? É
provável que não.
Pérsio Arida, principal economista da equipe do tucano Geraldo Alckmin,
usualmente diplomático, recentemente
classificou Guedes
como "mitômano" e afirmou: "Ele nunca produziu um
artigo de relevo. Nunca dedicou um minuto à vida pública,
não faz ideia das dificuldades".
Arida, goste-se ou não de suas ideias,
é um acadêmico de peso
e foi um dos elaboradores intelectuais do que viria a ser o Plano Real.
Também ocupou diversos cargos na burocracia federal, chegando à
presidência do Banco Central e do BNDES.
Os outros economistas por trás dos principais candidatos também
têm experiência prática: Mauro Benevides, coordenador do
projeto econômico de Ciro Gomes, além de acadêmico, tem mais
de 20 anos de experiência como Secretário de Fazenda no
Ceará. Na campanha está outro professor da Universidade Federal
do Ceará,
Flávio Atalib
a, reconhecidamente um grande estudioso da questão previdenciária
no país. Marina Silva conta com a colaboração de nomes
como
André Lara Resende
e
Ricardo Paes de Barros
, dois pesos-pesados da teoria e da política econômica nacional
há décadas.
Fernando Haddad (PT) tem na sua retaguarda gente como
Nelson Barbosa
, cuja experiência como ministro do Planejamento e da Fazenda são
importantes, além de ter começado a manter conversas com
economistas de alto nível e críticos de seu partido, como Samuel
Pessoa e Marcos Lisboa (que ocupou cargo de relevo no Ministério da
Fazenda na gestão Palocci).
O superministro de Bolsonaro, Paulo Guedes, por outro lado, ainda que seja
portador de um vistoso título de PhD pela Universidade de Chicago,
jamais desempenhou uma função de relevo na burocracia federal.
Pior ainda, sequer dedicou tempo e recursos para a elaboração de
um plano isto é, de um conjunto claro e factível de
medidas para sanear a economia brasileira.
Paulo Guedes, pelo visto, tem consciência de seu despreparo para tal
função. Talvez por isso mesmo
tenha fugido
do debate com os economistas das demais candidaturas, realizado
recentemente pela TV Cultura.
Quando tenta ir além de chavões pavorosos e sem significado algum
como "o liberalismo reduz a inflação" , o
resultado é sofrível e risível.
A campanha de Bolsonaro fala, por exemplo, em zerar o déficit
primário o prejuízo nas contas públicas em
2019 e gerar um superávit no ano seguinte. Ou seja: Em 2017, o
déficit primário foi de R$ 124 bilhões. Para 2018, a
previsão é que ele chegue a quase R$ 150 bilhões. Isso
é muito preocupante.
Como Paulo Guedes fará isso é uma gigantesca incógnita. A
única pista é quando ele diz: "Esse processo de
redução de dívida será reforçado com a
realização de ativos públicos." Em outras palavras,
venda de estatais e privatizações.
Essa é uma afirmação que faz transparecer todo o
despreparo da equipe de econômica de Bolsonaro.
Qualquer cidadão brasileiro alfabetizado sabe que, após quase 40
anos de debates em torno da necessidade de privatizações no
Brasil (algo que data pelo menos desde o governo Sarney), em apenas um ano de
mandato (supondo que ele seja democrático) não é
possível privatizar sequer o cafezinho servido nas
repartições. Que dirá uma estoque de ativos capaz de gerar
caixa da ordem de R$ 150 bilhões. Para se ter uma ideia,;
a venda de 80% da Embraer
, em julho, rendeu apenas 10% desse valor R$ 15 bilhões.
Trata-se de uma mistura assustadora de inocência e ignorância.
Mas o plano é ainda mais ousado. Fala-se em "reduzir em 20% o
volume da dívida por meio de privatizações,
concessões, venda de propriedades imobiliárias da União e
devolução de recursos em instituições financeiras
oficiais que hoje são utilizados sem um benefício claro à
população brasileira."
Pois bem: a dívida pública brasileira é de R$ 3,7
trilhões. Os 20% descritos pelo plano equivalem a R$ 740 bilhões
de reais
o dobro do valor da Petrobrás
, que costuma ocupar o posto de
maior empresa
do Brasil, para se ter uma ideia.
Não há possibilidade de se fazer um ajuste de R$ 150
bilhões no espaço de um ano através da venda de ativos da
União. Então, como último e mais óbvio recurso,
só caberá ao governo Bolsonaro (toc toc toc na madeira) reduzir
gastos.
Se assim o fizer, provavelmente produzirá a maior recessão de
nossa história.
Em uma economia mal saída da recessão como a nossa, um ajuste
fiscal tão abrupto e de tal magnitude, implicaria numa derrubada ainda
maior nos níveis de consumo e investimentos, públicos e privados,
componentes fundamentais do PIB.
O impacto para os mais pobres
Em relação à questão tributária, o programa
de Guedes-Bolsonaro fala em "simplificação e
unificação de tributos federais eliminando
distorções e aumentando a eficiência da
arrecadação". Um dos membros da equipe econômica de
Bolsonaro é o economista Adolfo Sachsida, importante e respeitado
pesquisador do IPEA.
Em
seu blog pessoal
, em agosto de 2017, Sachsida defendeu uma proposta para lá de
exótica para a questão dos impostos. Afirma ser favorável
a um sistema tributário no qual todos os indivíduos, desde
Amoêdo com seus quase R$ 500 milhões, passando por qualquer Dona
Maria que ganha um salário mínimo, paguem uma mesma quantia fixa.
O valor desse imposto fixo seria de R$ 1,2 mil por mês. Trata-se de uma
insanidade tributária completa. Na contramão inclusive do que
pregavam liberais com juízo, como Adam Smith, que, em tese, estariam
ligados a este novo momento de Bolsonaro. Mas, no caso do candidato, a
máscara de liberal é recente
e feita sob medida para agradar o "mercado".
Outro famoso economista da equipe de Bolsonaro é Marcos Cintra.
Colunista da
Folha de S.Paulo
durante décadas, gastou muita tinta em defesa da
implementação de um imposto único no Brasil. Sua
ideia é criar
um tributo tal qual a antiga CPMF, incidente sobre movimentação
financeira, com alíquota de 2,81%. O próprio Paulo Guedes falou
sobre esse novo imposto
nesta semana
.
Além dos problemas microeconômicos gerados por esse tipo de
imposto, como o estímulo ao uso de dinheiro vivo para fugir da
tributação e sua incidência "em cascata" (isto
é, incide sobre várias etapas na circulação de um
produto), ele também cria uma nova penalização para os
mais pobres, que acabam pagando a mesma taxa do que a parcela mais rica da
população.
Não é justo, nem moral, que os cidadãos paguem todos uma
mesma alíquota de imposto. Imagine que o governo fixe um imposto
único de 10% sobre os rendimentos de todos os cidadãos.
No caso de uma pessoa que ganha um salário mínimo de R$
1.000, para simplificar a conta isso significa entregar R$ 100 todos os
meses ao governo. Dinheiro que fará falta para comprar um botijão
de gás, comprar um quilo de carne, uma roupa nova e outras necessidades
básicas.
Agora imagine a pessoa que ganha R$ 10 mil por mês. Nesse caso, os R$
1.000 entregues ao governo, ainda que façam falta, não
comprometerão a subsistência do indivíduo como no primeiro
caso. Essa pessoa já pagou aluguel, já se alimentou, já se
vestiu de modo satisfatório com os R$ 9 mil que lhe restam.
O plano da equipe econômica de Bolsonaro fala ainda na
criação de um imposto de renda negativo. Essa ideia, tal qual a
implementação de um imposto fixo como proposto por Sachsida,
é curiosidade presente apenas nas páginas dos manuais de
Economia. Nenhum país do mundo jamais implementou tais medidas.
Bolsonaro ainda propõe a criação de uma carteira de
trabalho "verde e amarela", alternativa à carteira azul
tradicional. Nessa nova carteira, cuja aderência seria voluntária,
"o contrato individual prevalece sobre a CLT". O documento alerta que
seriam preservados os "direitos constitucionais" ressalva de
pouco valor, já que o general Mourão, vice da chapa, parece andar
flertando com a ideia de
escrever uma nova Constituição
.
No atual ambiente de alto desemprego, o poder de barganha dos trabalhadores
fica severamente reduzido. Por isso, temos razões para acreditar que
antes de ser a escolha do empregado, tal carteira será um
imposição dos patrões, notadamente para aqueles
trabalhadores mais pobres, menos qualificados e mais vulneráveis.
Ainda que haja muita informalidade no Brasil e que existam argumentos em favor
da modernização da legislação trabalhista, é
bom lembrar que o motor fundamental da criação de novos empregos
não é a facilidade de contratar e demitir, mas sim o estado geral
da economia. A menor taxa de desemprego registrada na região
metropolitana de São Paulo desde 1994, foi registrada em dezembro de
2011, quando chegou a 6,9%. Em junho deste ano, o valor registrado foi de
14,20%.
São muitas as propostas estranhas ou inviáveis de Bolsonaro para
a área econômica. Não se pode sequer chamar o documento de
plano de governo, ou coisa que o valha. Trata-se de um apanhado de
generalidades, de citações superficiais de documentos de
terceiros, sem uma gota de suor ou esforço próprio de sua equipe.
Os "formuladores" (permitam a liberdade poética) do plano
podem afirmar que nossas interpretações estão equivocadas,
que eles queriam dizer outra coisa. É possível. O problema
é que as propostas são tão rasas, tão
supérfluas, tão mal elaboradas, desacompanhadas de quaisquer
explicações ou números, que só podemos imaginar que
se trata de um trabalho feito às pressas, sem qualquer
preocupação com a seriedade da tarefa de governar o Brasil.
Causa surpresa que o "mercado" brasileiro, após o fracasso da
candidatura de Alckmin (PSDB) e Meirelles (MDB), tenha abraçado
Bolsonaro como um candidato sério, viável e preferível
às demais alternativas. De novo: um governo Bolsonaro implica em um
risco grave para nossas instituições políticas e
econômicas. Isso fica evidente para qualquer analista que se preste a
estudar seus atos, palavras e propostas. Não por acaso, a revista
The Economist
, que nem o mais tresloucado apoiador de Bolsonaro ousaria classificar como
"esquerdista", "petista" ou "bolivariana", o
classificou como "uma ameaça", afirmando que ele seria
"um presidente desastroso".
Oxalá que o Brasil não embarque nesse pesadelo.
20/Setembro/2018
[NR] Este artigo é anterior às eleições de 7 de
Outubro.
[*]
Licenciado em economia pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre em
economia política pela PUC-SP e doutorado em economia pela USP. É professor do
Departamento de Economia da UnB desde 2012,
alexandreandrada@gmail.com