Para onde vamos?
por Plinio Arruda Sampaio Jr.
[*]
Após inúmeros debates presenciais e milhares de
interações virtuais, a
Plataforma Vamos
, organizada pela
Frente Povo Sem Medo
, submete ao crivo da crítica os resultados preliminares de sua proposta
para a construção de um programa de esquerda para enfrentar a
crise nacional. É uma iniciativa auspiciosa. No ambiente
claustrofóbico em que estamos vivendo, toda contribuição
ao debate público é bem-vinda.
Para os militantes do PSOL o conhecimento das propostas da Vamos e de suas
consequências práticas é particularmente importante, uma
vez que elas foram aprovadas pelo VI Congresso Nacional, às escuras, sem
nenhuma discussão com a militância, como base do programa do
partido nas eleições presidenciais de 2018.
Logo em sua apresentação, a Vamos anuncia a
intenção de não esperar nenhuma solução
caída do céu e fazer a história com as próprias
mãos uma ideia que conclama todos ao exercício
cívico da política. Sem nenhuma preocupação em
apresentar uma contextualização do momento histórico, o
documento apresenta os seis eixos que compõem suas propostas para
resolver os problemas do povo brasileiro Economia; Poder;
Comunicações e Cultura; Territórios e Meio Ambiente;
Saúde e Educação; Negro, Feminista e LGBT.
As medidas são justapostas umas às outras. Não há o
cuidado de definir a relação de causa e efeito entre
diagnóstico e receituário, especificar os sujeitos coletivos das
ações, qualificar os vínculos entre
intenções, ações e mediações e
estabelecer os nexos entre as partes e o todo. A Vamos simplesmente diz o que
tem de ser feito e não perde tempo com o que considera picuinhas.
Negação da história
O principal problema das diretrizes da Vamos é ignorar a célebre
advertência de Marx na introdução de "O 18 de
Brumário", segundo a qual os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem, arbitrariamente, mas em
condições que são historicamente determinadas. Sem a
definição das bases objetivas e subjetivas que determinam a luta
de classes, o campo de oportunidades vislumbrável pelo pensamento e
alcançável pela ação torna-se indeterminado. Se o
sentido do movimento histórico é ignorado e as tendências
efetivas da luta de classes permanecem indefinidas, então, bem à
moda pós-moderna, tudo é possível e tudo é
impossível.
Na concepção abstrata e aleatória de temporalidade contida
no programa Vamos, a humanidade marcha como cabra-cega. Não há
contradições que condicionem as necessidades históricas e
que delimitem as possibilidades de sua solução. A única
referência histórica concreta mencionada no programa Vamos
é a descontinuidade econômica e política provocada pela
ascensão do governo golpista de Michel Temer um verdadeiro
divisor de águas entre um período de desenvolvimento, combate
às desigualdades e democracia e outro de crise econômica, aumento
das desigualdades sociais e regressão política. A utopia do
projeto Vamos é reconstruir o passado, destituído de suas
insuficiências, a partir da somatória da vontade de
indivíduos decididos a enfrentar a crise a partir de "consensos
pactuados".
A ausência de uma perspectiva de classe impede a
caracterização do padrão de luta de classes como uma
guerra sem trégua entre o capital e o trabalho.
O desconhecimento da especificidade histórica do Brasil, uma
formação histórica presa nas teias do capitalismo
dependente, bloqueia a possibilidade de definir as estruturas
responsáveis pelas mazelas do povo.
A falta de uma interpretação sobre a natureza do capitalismo
contemporâneo e seus impactos sobre as regiões periféricas
inviabiliza a percepção do sentido das
transformações históricas que condicionam a luta de
classes no Brasil uma formação social em
irreversível processo de reversão neocolonial que combina de
maneira inusitada riqueza e pobreza, negócio e barbárie,
desenvolvimento das forças produtivas e depredação do meio
ambiente.
A inexistência de qualquer consideração sobre a crise
econômica mundial o elemento determinante da conjuntura
implica abstração da extrema violência da
destruição criadora que caracteriza as
transformações provocadas pela crise capitalista. A
carência de uma interpretação das novas tendências da
divisão internacional do trabalho e seus efeitos devastadores sobre a
economia brasileira oblitera qualquer possibilidade de compreender as
forças tectônicas que condicionam o processo de reversão
neocolonial que rebaixa progressivamente o patamar mínimo de civilidade
alcançado a duras penas pela sociedade brasileira. Na ausência de
uma visão sobre os determinantes estruturais da crise terminal da
industrialização, as dificuldades que geraram a maior crise de
desemprego da história brasileira ficam reduzidas a problemas
conjunturais provocados pela adoção de uma política
econômica ortodoxa.
Abordada muito lateralmente, a crise política é reduzida a um
problema de caráter institucional, provocado pela presença de um
governo ilegítimo. Não há uma palavra sobre os motivos que
levaram a juventude a tomar as ruas nas Jornadas de Junho de 2013. Não
há um senão em relação à desastrosa passagem
de Lula e Dilma pelo governo federal, cuja principal evidência é
sua calamitosa herança uma crise econômica e
política sem precedentes e a ascensão da República dos
Delinquentes. Não há um posicionamento sobre os condicionantes
sistêmicos do mar de lama da política nacional. A crise terminal
da Nova República e suas consequências práticas não
são objetos da reflexão da Vamos.
A inexistência de uma avaliação das profundas
contradições que determinam a luta de classes impede o
reconhecimento de que o acirramento das contradições entre o
capital e o trabalho leva a burguesia a organizar sua dominação
como uma contrarrevolução permanente. No Brasil, uma sociedade
cindida entre ricos e pobres, a ofensiva reacionária assume a forma de
uma verdadeira guerra civil contra os trabalhadores, cuja
manifestação mais gritante é a sistemática
criminalização da luta política, o cerco militar que
coloca as periferias sob verdadeiro toque de recolher e, sua consequência
inevitável, o genocídio indiscriminado da juventude pobre.
Negação da crítica
Embora a Plataforma Vamos reivindique um protagonismo de esquerda, não
há nela nenhuma remissão às tradições do
materialismo histórico nem à rica tradição do
pensamento crítico latino-americano. Exploração, luta de
classes, proletariado, burguesia, aparelhos ideológicos do Estado,
dominação, colonialismo, imperialismo, subdesenvolvimento,
dependência, segregação social, Estado de
Exceção, Estado penal, reforma e revolução
são conceitos alheios ao documento da Vamos. Não é que
eles não sejam mencionados tais e quais, o que poderia ser uma
estratégia retórica. O problema é que tais
noções não fazem parte da filosofia que organiza as
propostas apresentadas. Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci,
José Martí, Mariátegui, Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes e tantos outros não foram convocados para compor o arsenal
teórico e ideológico da Vamos.
Diga-me com quem andas e te direi quem és. O método e o discurso
da Vamos têm outras inspirações. As propostas
econômicas alinham-se claramente com as ilusões neokeynesianas de
um capitalismo domesticado e a convicção neo-schumpeteriana da
força da concorrência intercapitalista como dínamo do
desenvolvimento capitalista. As políticas sociais combinam programas
assistencialistas idealizados pelo Banco Mundial com propostas de economia
solidária de inspiração no socialismo utópico.
As diretrizes que dizem respeito às pautas de opressões,
questões institucionais e meio ambiente seguem os princípios de
um pós-modernismo temperado pelo resgate de fórmulas dos
programas compensatórios dos governos de Lula e Dilma. Modelo de
desenvolvimento, inovação, regulação dos mercados,
sustentabilidade, governabilidade, elites, diversidade, orçamento
participativo, economia solidária, bolsa família, minha casa
minha vida são noções que alinhavam as propostas do Vamos.
O que se ganha quando negamos nossas origens e incorporamos em nossos discursos
a linguagem de nossos inimigos de classe?
A negação da transformação social
A ausência de uma perspectiva crítica não permite nenhuma
proposta que vá além do senso comum. A incapacidade de conceber
as mudanças qualitativas inscritas no movimento histórico limita
as mudanças propostas aos parâmetros do status quo. Sem a
pretensão de mudar o Estado, o novo viria através de um lento
processo de evolução institucional. A política fica,
assim, condenada ao horizonte do cretinismo parlamentar.
A preocupação em apresentar medidas tangíveis, que sejam
palpáveis dentro da correlação de forças, implica
necessariamente encontrar saídas por dentro da ordem. A possibilidade de
que a ordem não tenha solução para os problemas do povo
como de fato não tem não é nem remotamente
cogitada.
Sem colocar no horizonte a necessidade e a possibilidade de
transformações de grande envergadura não há por que
fazer aliança com os partidos políticos contra a ordem.
Não surpreende que o chamado à unidade da esquerda não
incorpore os acúmulos programáticos realizados pelas setoriais do
PSOL e ignore olimpicamente as importantes contribuições do PCB e
do PSTU. A unidade proposta é a unidade das forças que
representam a esquerda da ordem. O Vamos mira em direção ao PT.
O programa apresentado pela Frente Povo Sem Medo está a léguas de
um plano de lutas que oriente a práxis dos trabalhadores em busca de uma
saída civilizada para o impasse civilizatório em que se encontra
a sociedade brasileira. Circunscrita à miséria do
possível, passa ao largo dos problemas reais dos trabalhadores
brasileiros o avanço da barbárie em todas as
dimensões da vida. As questões que provocam uma
reação mais virulenta do status quo permanecem na penumbra.
Como conquistar a autonomia nacional sem romper com o imperialismo? Como
melhorar o nível tradicional de vida dos trabalhadores sem dar empregos
bem remunerados à grande massa da força de trabalho que permanece
no subemprego? Como superar a pobreza sem eliminar a riqueza? Como combater a
desigualdade social sem questionar o padrão de acumulação
baseado na cópia dos estilos de vida e padrões de consumo das
economias centrais? Como interromper a catástrofe ambiental sem colocar
em questão o automóvel, a mineração, o
agronegócio? Como modificar a orientação da
política econômica sem colocar em questão o papel
estratégico da Dívida Pública como centro nervoso da
política econômica? A lista das omissões seria
interminável. A Vamos fica na superfície da realidade. Ao ocultar
os determinantes estruturais da miséria brasileira, a Vamos se
atém a administrar a barbárie.
O resultado prático das diretrizes apresentadas é desastroso. O
desejo de resolver as mazelas do povo sem enfrentar suas causas é uma
quadratura do círculo. Ao negar as contradições como
móvel da luta de classes e a crítica como base para a
constituição da classe trabalhadora como sujeito político,
a Vamos renuncia a qualquer possibilidade de transformação da
ordem econômica e social. Os problemas que tornam infernal a vida dos
trabalhadores são atribuídos a fatores alheios às
estruturas da sociedade que poderiam ser corrigidos com mudanças
institucionais e políticas econômicas e sociais.
As propostas
a) No que toca à Economia, as medidas propostas para recuperar o
crescimento e voltar a economia para o mercado interno são insuficientes
para romper o bloqueio institucional que submete a política
econômica à lógica do grande capital internacional e
nacional. A intenção de formular um "projeto
econômico" compatível com o combate às desigualdades
esbarra na falta de qualquer medida para combater as causas do
subdesenvolvimento e da dependência a segregação
social, o controle do capital internacional sobre a economia brasileira, a
modernização baseada na cópia dos estilos de vida das
economias centrais;
b) Em relação às questões agrupadas em Poder, a
Vamos ignora a questão central a crise terminal da Nova
República e a necessidade de organizar a resposta dos trabalhadores
à ofensiva da contrarrevolução burguesa;
c) Em Comunicações e Cultura, as propostas não questionam
o colonialismo cultural e os mecanismos perversos de controle da opinião
pública pelas grandes corporações que controlam os meios
de comunicação e a indústria cultural;
d) No tópico sobre Territórios e Meio Ambiente, o "novo
modelo de desenvolvimento" não passa de um baú de velhas
novidades, pois a falta de política para combater o agronegócio,
a especulação imobiliária e a catástrofe ambiental
bloqueia qualquer possibilidade de uma efetiva reforma agrária e urbana,
bem como a interrupção da catástrofe ambiental;
e) As medidas propostas em Educação e Saúde pecam pela
inexistência de qualquer crítica à crônica
penúria de recursos para as políticas sociais, a
segregação social, o colonialismo cultural, a indústria da
educação e o grande negócio em que se transformou a
saúde no Brasil; e, por fim,
f) As propostas que defendem a diversidade cultural contidas em Negros,
Feministas e LGBT destacam-se pelo absoluto desconhecimento da
relação umbilical entre opressões e
exploração.
Ao longo das próximas semanas teremos a oportunidade de fundamentar mais
detalhadamente cada uma das críticas aqui esboçadas.
Numa conjuntura histórica em que não existe a menor possibilidade
de melhorar as condições de vida dos trabalhadores sem
transformações de grande envergadura que apontem para o
socialismo, a ilusão de soluções dentro da ordem só
alimenta a frustração com a democracia e o desalento dos
trabalhadores com a política.
Com pânico de despertar a fúria da contrarrevolução
(que já está nas ruas), acaba-se na mais completa e
desmoralizante capitulação ideológica e política.
À avassaladora ofensiva do capital contra o trabalho, a Vamos responde
com uma versão recauchutada do "melhorismo" lulista. O que
ontem resultou numa tragédia, hoje começa com farsa. Desse jeito,
vamos de mal a pior. É preciso olhar para o futuro e organizar a
esperança de uma sociedade baseada na igualdade substantiva.
31/Janeiro/2018
[*]
Economista, autor do livro
Crítica à Economia Política de Lula e Dilma.
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