Pombas no monturo: evangélicos, obras faraônicas e favelas
Noite de sexta-feira no morro do Timbau, na megafavela da Maré, a uns
duzentos metros da populosa avenida Brasil, sempre saturada de ônibus e
automóveis. Um pequeno grupo de seis pessoas conversa frente a um
minúsculo comércio que oferece cervejas artesanais. Pela rua
estreita que faz parte do labirinto urbano, se apressam motos, carros e
transeuntes que sobem e descem quase esbarrando nas cadeiras e calçadas.
A música dos frequentadores que se concentram na ruela é
tão potente que conversamos gritando.
"A música alta incomoda as classes médias quando vêm
à favela", comenta Timo, com um sorriso irônico e um olhar
que pretende nos incluir na provocação. Mas a
distinção de classes é mais complexa, já que, nos
últimos anos, todos os seus amigos favelados estão cursando as
universidades federais ou estaduais. Entre os condutores de carros e motos,
despontam armas, algumas de cano longo, que portam com indiferença, como
um acessório qualquer. Ninguém se altera, nem sequer quando um
menino faz corcovear a moto numa finta improvável pelo parco
espaço.
O ambiente é de festa, como todos os dias no Timbau. Ninguém
poderia dizer que existe a menor preocupação pela
ascensão de Jair Bolsonaro. Só os que compartilhamos a
mesa falamos de política, os demais se movem no ritmo lento e pesaroso
da favela.
Subindo o morro, aparece um grupo de pessoas, homens e mulheres,
mestiços e negros, ao redor dos 30 anos, bem vestidos mas não
elegantes, que distribuem panfletos em todos os comércios. Amavelmente,
explicam que estão nos convidando para um "congresso de
jovens" no enorme espaço da Assembleia de Deus, três quadras
abaixo. O panfleto é pequeno, mas está muito bem impresso, em
cores, com fotos das cerimônias religiosas e pouco texto.
"Um grande coro de 200 jovens e uma bela orquestra estarão adorando
Deus com lindos hinos", pode-se ler no verso. "Você é
nosso convidado e será um enorme prazer receber sua visita". Logo
abaixo, o endereço e os horários das missas diárias, que,
invariavelmente, são às 7 da noite, quando as pessoas voltam do
trabalho.
Impossível não se pôr a pensar no silêncio e no
respeito que inspiram. As igrejas evangélicas e pentecostais
estão muito enraizadas na favela, ao ponto de que, no caminho até
a casa de Timo, apenas cem metros morro acima, reparamos que, no trajeto,
há três igrejas pequenas, do tamanho de uma garagem, onde meia
dúzia de vizinhos ouvem música e conversam. Contrastam com as
igrejas grandes, enormes galpões capazes de abrigar milhares de
fiéis.
Em algum momento, alguém oferece outro panfleto, com o dobro do tamanho
daquele dos evangélicos. Uma sopa de letras em branco e preto, com um
discurso ideologizado. "Democracia = participação do
povo." "Bolsonaro = defende a ditadura = povo não participa =
trabalhador sem direitos", reza o escrito abaixo de um cabeçalho
onde se lê: "A Maré de Trabalhadores, que vota na
democracia". Nenhum partido o assina, mas é evidente que se trata
de propaganda do PT.
O complexo de favelas batizado Maré (já que está numa
área inundável da baía da Guanabara) está formado
por 15 bairros ou favelas na zona norte do Rio de Janeiro e conta com 150 mil
habitantes. Timbau foi o primeiro bairro a ser povoado, por volta de 1940, por
estar numa área não inundável, e tem certa altura da qual
se divisam as demais favelas.
Complexo do Alemão
O menino de uns sete anos foge correndo sob a sombra do edifício
abandonado que se ergue, imponente, como um monumento ao nada. Se escutam
foguetes, ou tiros, a curta distância, e o menino chora, desconsolado.
Alguns vizinhos dizem a ele que vá para sua casa, mas seus amigos
continuam brincando, imperturbáveis.
O Morro da Baiana tem uma vista estupenda de todo o Complexo do Alemão,
mas também das favelas vizinhas, como a Maré, mais povoada e
extensa. A Baiana é um dos 16 bairros desse complexo de favelas sulcadas
por cinco morros unidos por um teleférico que não funciona mais.
Com 100 mil habitantes, é o segundo conjunto de favelas mais importante
da região norte da cidade. Segundo dados oficiais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, o Alemão é a
região mais pobre do Rio. E a mais violenta.
Quem nos acompanha é Leo, um jovem de tez escura que faz parte do
coletivo Ocupa Alemão, em sintonia com o Occupy Wall Street, mas em
versão pobre e afro. Explica que a região é muito
tranquila e só se alvoroça quando há guerra entre as
quadrilhas de narcotraficantes que disputam o território. Caminhando
entre excrementos de cães e monturos onde ciscam as pombas, num ambiente
de abandono e cinzenta tristeza, comenta a história do
teleférico, que parece uma narrativa extraída do realismo
fantástico.
O teleférico foi um dos projetos-estrela dos governos do PT e faz parte
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do estado do Rio
de Janeiro promovido por Dilma Rousseff, o que lhe valeu a alcunha de
"mãe do PAC". Para construir cada uma das seis
estações, um edifício de um quarteirão no alto dos
morros, foi preciso demolir centenas de moradias em cada lugar, deixando
várias centenas de famílias desalojadas.
O teleférico foi inaugurado em julho de 2011. Os Jogos Olímpicos
terminaram em agosto de 2016, e, em outubro, o teleférico deixou de
funcionar. As instalações estão se deteriorando e o
material de rodagem se converte rapidamente em sucata: mais de 200
milhões de reais (uns 80 milhões de dólares) jogados no
lixo. Quando Dilma Rousseff o inaugurou em 2011, junto ao governador
Sérgio Cabral, do MDB, hoje preso no âmbito da
operação Lava Jato, disse que o sistema transportaria 30 mil
pessoas por dia. Nunca passou de 10 mil, apenas 10% da população
do Alemão.
Foi tão mal planejado que não pode funcionar sem
subvenções. Cada viagem tem um custo de R$ 6,70 (mais de dois
dólares), o dobro do metrô e dos ônibus, que percorrem
trajetos muito mais longos que os três quilômetros do
teleférico. Leo se pergunta se não teria sido melhor investir em
saneamento ou em obras de urbanização, apontando para as
montanhas de lixo onde se alimentam hordas de pombos.
"Aqui, estava previsto investir em moradia, em saneamento integrado com
redes de abastecimento de água potável, espaços
esportivos, escolas e creches que nunca foram construídas", diz a
Brecha
o militante do Ocupa Alemão. O que continua funcionando ao lado da
estação Baiana é uma Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), o fracassado projeto de levar os fardados para dar
"segurança" aos favelados.
Até os edifícios abandonados do teleférico foram ocupados
pela Polícia Militar, para "evitar que sejam ocupados por outras
pessoas", diz Leo, referindo-se aos milhares de moradores que sobrevivem
em habitações muito precárias.
O outro teleférico, o do Morro da Providência, a primeira favela
da cidade maravilhosa, formada por ex-combatentes da guerra de Canudos (no
final no século XIX), fechou no mesmo ano, apenas dois meses após
o do Alemão. Foi construído para os turistas, para ligar o Porto
Maravilha e o Sambódromo à Estação Central.
Deixaram em pé uma das vigas de sustentação, que invadiu
completamente o único espaço público com que contava o
morro.
As obras como os teleféricos produziram desalojados urbanos, assim como
todas as realizadas para a infraestrutura do Mundial de 2014 e das
Olimpíadas de 2016, ou as faraônicas, como as centrais
hidroelétricas concebidas para alimentar o desenvolvimento. Um estudo do
Instituto Igarapé sobre os desalojados à força entre 2000
e 2017 chega à alucinante conclusão de que, no Brasil
progressista, houve quase 9 milhões de pobres forçados a mudar
seus locais de residência.
O estudo, intitulado "Migrantes invisíveis. A crise do deslocamento
forçado no Brasil", revelou a existência de pelo menos 8,8
milhões de pessoas que foram obrigadas a se mudar. A enorme maioria
delas, cerca de 6,4 milhões, tiveram que deixar seus lares por desastres
naturais provocados por outros seres humanos, incêndios ou rompimento de
barragens. Os projetos de desenvolvimento, como as estradas e represas,
deslocaram mais de 1,2 milhão de pessoas, e a violência rural nos
marcos da expansão do agronegócio, 1,1 milhão
[1]
. Ninguém menciona estas cifras quando se avaliam os impactos do
progressismo. O Brasil é líder, na América Latina, em
quantidade de desalojados dentro de seu território, e supera inclusive a
Colômbia, que sofreu uma guerra de seis décadas.
Acelerar a corrupção
Na verdade, a construção de teleféricos inúteis
não deve surpreender, já que boa parte das obras do PAC foram
desastrosas e os empresários e políticos que tomaram parte nelas
estão envolvidos em tramas de corrupção.
O relatório "Modernização Fracassada", publicado
como livro, aponta que as dez maiores obras desse programa desenvolvimentista
adotado em 2007 foram um rotundo fracasso. Apenas uma está em
funcionamento, duas foram abandonadas ou interrompidas e as demais funcionam
com restrições ou de forma irregular
[2]
.
Por exemplo, a construção do Complexo Petroquímico do Rio
de Janeiro (Comperj), uma obra de importância estratégica para
ampliar a capacidade de refinação e processar o extraído
das ricas jazidas de petróleo e gás das bacias de Santos e
Campos, foi interrompida apesar de já ter recebido a astronômica
cifra de 13 mil milhões de dólares. Outras obras grandiosas e
desnecessárias, como a central hidroelétrica de Belo Monte, nunca
produzirão o estimado, apesar do brutal dano ambiental e social que
provocaram.
Seria preciso ouvir os "refugiados de Belo Monte", como os denomina a
jornalista Eliane Brum, as pessoas desalojadas de suas casas e deslocadas para
a periferia da cidade de Altamira em condições precárias,
que valeram à central o nome de "Belo Monstro" (
El País,
edição brasileira, 16/05/18). A quarta hidroelétrica do
mundo só beneficiou o ego dos governantes e os bolsos das grandes
construtoras (Camargo, Correa, Odebrecht, Andrade Gutiérrez, entre as
mais conhecidas).
O que o governo não diz é que, na temporada de seca do rio Xingu,
a produção de energia cai drasticamente", aponta Brum.
Nesses momentos, produzirá menos da metade de seu potencial, "o que
a coloca como uma das hidroelétricas menos produtivas em
relação à capacidade instalada".
Favela-crime
Uma reportagem da
Folha de São Paulo
revela que o mesmo crime, cometido por um habitante de uma favela, implica uma
pena muito mais dura que se for cometido por alguém que vive num bairro
de classe média. O jornal fez uma investigação baseada em
dados do Banco Nacional de Ordens de Prisão, criado pelo Conselho
Nacional de Justiça. No Rio de Janeiro, em 41% das 82 mil ordens de
prisão por tráfico de drogas, "o réu foi acusado ou
condenado também por associação para o
tráfico", enquanto a média nacional é de 12% e, em
São Paulo, de 10 (
Folha de São Paulo,
27/04/18).
Desse modo, quatro de cada dez pessoas flagradas com drogas receberam uma pena
mais alta pelo "crime" de viver em favelas. O coordenador da defesa
criminal do Rio, Emanuel Queiroz, disse ao jornal paulista que "o
Ministério Público pergunta à polícia: Essa
área é dominada pelo tráfico? 'Sim.' Isso já
é suficiente para impor três anos a mais de pena, por considerar o
réu associado para o tráfico. É rotina".
Segundo Queiroz, a dupla acusação é uma estratégia
da Polícia Civil e do Ministério Público para
"inviabilizar pedidos de liberdade provisória, já que as
penas superiores a oito anos se cumprem em regime fechado".
Um estudo da Defensoria Pública do Rio analizou 3.475
acusações por trático de drogas entre 2014 e 2015 e
concluiu que, em 75% deles, se aplicou uma dupla pena pelo lugar onde a pessoa
foi detida. O mais grave é que, para a justiça, o depoimento de
um policial é suficiente para condenar alguém. Em vários
casos analisados pela
Folha,
os policiais ouvidos no processo deram "declarações
idênticas, usando as mesmas palavras". Para alguns advogados, a lei
de drogas aprovada em 2006 "criou um salvo-conduto para a arbitrariedade
na periferia, começando pela distinção entre
usuários e traficantes". Os primeiros são de classe
média, os segundos são pobres.
E voltando aos evangélicos: "O que incomoda de parte dos gays e
lésbicas é a ostentação pública de
identidade. Não sua condição, porque na favela, sempre
houve muita tolerância", explica Leo, tentando decifrar as
razões pelas quais seus vizinhos se inclinaram pelos pentecostais e
evangélicos.
Não é tão difícil entender. Tendo nas mãos a
Folha Universal,
o semanário em cores da Igreja Universal, do qual se distribuem quase
2 milhões de exemplares, as coisas acabam se encaixando. Na capa,
meninos e meninas sorrindo. Nas páginas internas, se sucedem os
assuntos: família, alimentação saudável, atraso
escolar, esporte infantil, uma seção dedicada ao mioma uterino e
outra a combater os ciúmes como sinal de fraqueza.
Para além dos discursos, quem se ocupa dos mais pobres? Os
empresários e os governos fizeram seus negócios, como mostra o
desastre do teleférico, dando prioridade ao turismo acima de
necessidades tão urgentes como a saúde e o saneamento, que
não estão atendidas em nenhuma favela. Os evangélicos
estão perto do povo. São parte da favela. Não pude ver
nenhum comitê de partidos de esquerda nas favelas que visitei, em
várias ocasiões, nos últimos anos. As igrejas pentecostais
continuam crescendo e continuarão até que as esquerdas deixem de
lado os discursos e voltem a pisar na lama.
[1] As informações constam de "Migrantes
Invisíveis", do
Instituto Igarapé
, março de 2018.
[2] Jacob Binsztok e Jorge Luiz Barbosa, "Modernização
Fracassada", Consequência. Rio de Janeiro, 2018.
[*]
Jornalista, uruguaio.
O original encontra-se em
brecha.com.uy/palomas-en-el-basural/
. Tradução de Henrique Júdice Magalhães.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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