Proletariado digital, serviços e valor
A explosão do trabalho intermitente
As mais distintas modalidades de trabalho presentes no capitalismo
informacional-digital-financeiro, ao contrário de tornarem inoperante a
lei do valor, vêm ampliando suas formas de vigência, ainda que
frequentemente sob a
aparência do não-valor.
Um valor torna-se um
não-
valor para criar
mais-valor.
Impossibilitado de se valorizar sem realizar alguma forma de
interação entre
trabalho vivo
e
trabalho morto,
o capital procura aumentar sua produtividade do trabalho, ampliando os
mecanismos de extração do mais-valor mediante a expansão
do trabalho morto corporificado no maquinário
tecnocientífico-informacional e também pela
intensificação e diversificação do trabalho vivo,
recriando novas formas de exploração e mesmo de
superexploração da força de trabalho (Antunes, 2009 e
2018; Sotelo Valencia, 2012).
Nesse movimento, todos os espaços possíveis tornam-se
potencialmente geradores de mais-valor, uma vez que os serviços que
foram privatizados fizeram florescer novos mecanismos utilizados pelo capital,
mecanismos estes desempenhados pelos trabalhadores e trabalhadoras
(contemplando sempre a dimensão de gênero) que atuam nas
tecnologias de informação e comunicação (TIC),
call center,
telemarketing, hotelaria, limpeza, comércio,
fast-food,
hipermercados, trabalho de
care
(cuidados) etc., que frequentemente realizam trabalhos intermitentes,
temporários, informais, autônomos, desregulamentados, à
margem da legislação social protetora do trabalho.
Um exemplo recente dessas "novas" formas de exploração
do trabalho é encontrado na Itália, onde se desenvolveu uma
modalidade de trabalho ocasional e intermitente, o trabalho pago a
voucher
pelas horas efetivamente trabalhadas. Uma vez que o trabalho pago por
voucher
obrigava o empresariado italiano a pagá-lo pelo salário
mínimo legal (por hora trabalhada), esse mesmo empresariado não
poucas vezes oferecia mais horas de trabalho excedentes, porém por um
valor abaixo do mínimo obrigatório, o que significa uma
precarização e uma superexploração ainda maiores do
trabalho ocasional e intermitente. Os trabalhadores imigrantes foram, por
certo, intensamente atingidos por essa pragmática nefasta que finalmente
foi derrotada pelo sindicalismo italiano. Podemos citar também o exemplo
do
zero hour contract,
forma de trabalho que se desenvolveu no Reino Unido e hoje se encontra em
praticamente todos os países, ainda que com denominações
diferenciadas. Nesse tipo de contrato, não há
determinação prévia de horas de trabalho, pois o
trabalhador fica à disposição do empresário,
esperando sua chamada, independentemente do tempo que permaneça ocioso.
E, quando é chamado para realizar alguma atividade (predominantemente de
serviços), recebe estritamente pelo que fez e nada pelo tempo que ficou
ocioso. E os capitais informáticos globais criaram, assim, uma nova
forma de
escravidão digital,
que não para de se expandir. É por isso que a
flexibilização total do mercado de trabalho é por eles
exigida.
O caso mais emblemático é o da Uber, em que trabalhadores e
trabalhadoras com automóveis próprios (seus instrumentos de
trabalho) arcam com despesas de previdência, manutenção dos
carros, alimentação etc., configurando-se como um assalariamento
disfarçado de trabalho "autônomo". E, ao fazê-lo
desse modo, as empresas se eximem dos direitos trabalhistas, burlando
abertamente a legislação social em diversos países onde
atuam. Com o
trabalho on-line,
que gera uma forte ampliação do tempo disponível para o
trabalho, amplia-se ainda mais o que venho denominando
escravidão moderna na era digital
(Antunes, 2018).
Por que, então, essas modalidades de trabalho da era digital deixaram de
ser a exceção para se tornar a regra no capitalismo da era
digital-informacional? Como veremos, esse conjunto de mudanças no
universo dos serviços fez com que, em grande parte, estes deixassem de
ser improdutivos para o capital e se tornassem geradores de valor e de
mais-valor.
O trabalho nos serviços, produção imaterial e valor
Devemos a Marx a distinção seminal entre produção
material e produção imaterial, particularmente quando o autor
apresenta sua hipótese de que, para ser produtivo,
não é mais necessário trabalhar manualmente, mas ser parte
de um órgão do conjunto do trabalho produtivo, executando
qualquer uma de suas funções.
Acrescenta ainda que, se a
predominância da produção material é válida
para o conjunto da produção coletiva,
ela
não é mais válida para o trabalho tomado isoladamente
(Marx, 2013, p. 577).
A proposição marxiana acrescenta que
só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor
para o capitalista, isto é,
aquele que participa do processo de valorização do capital.
Marx cita o exemplo do professor, cuja atividade se encontra fora da esfera
da produção material: o professor de uma escola privada é
também produtivo, quando atua sob o comando direto do capitalista, dono
da "fábrica de ensino". E lembra que o mesmo professor, quando
atua na escola pública, é improdutivo, pois cria somente um
valor de uso,
ao contrário do primeiro, que gera
valor de troca.
E isso ocorre porque o professor da escola privada se insere em uma
relação social voltada prioritariamente para a
valorização do capital (Marx, 2013, p. 578).
Com isso queremos enfatizar que Marx reconhece a existência de atividades
não materiais ou imateriais necessárias para a
valorização do capital, mesmo sabendo que a
produção material é a forma dominante de
produção no capitalismo.
Isso remete a um outro ponto central, referente aos significados de trabalho
produtivo e improdutivo.
Em nossa leitura de Marx, o trabalho produtivo
1) ocorre quando cria mais-valor e valoriza o capital;
2) é a modalidade de trabalho paga por capital-dinheiro, e não
por renda. Ao contrário, o pagamento por renda é aquele que
caracteriza o trabalho improdutivo, que cria valores de uso, e não
valores de troca;
3) é aquele que resulta do trabalho coletivo, social e complexo, e
não mais individual. É por isso que Marx afirma que não
é o operário individual que se converte no agente real do
processo de trabalho em seu conjunto, mas, sim, uma capacidade de trabalho
socialmente combinada;
4) é aquele que valoriza o capital, não importando se o resultado
de seu produto é material ou imaterial;
5) depende de sua relação social e da forma social como se insere
na criação e valorização do capital. É por
isso que trabalhos idênticos quanto à sua natureza concreta podem
ser produtivos ou improdutivos, dependendo da relação com a
criação do valor;
6) tende a ser assalariado, mas o inverso não é verdadeiro, isto
é, nem todo trabalho assalariado é produtivo.
Em contrapartida, o trabalho é improdutivo quando cria bens úteis
e não está voltado para a produção de valores de
troca. É por isso que o capital suprime todo trabalho improdutivo que
é desnecessário, além de realizar a fusão entre
atividades produtivas e improdutivas, sempre que possível.
No Livro II de
O capital,
Marx indicou importantes hipóteses para compreender as atividades de
produção imateriais, especialmente em alguns setores de
serviços. Sua principal indicação aparece quando, ao
analisar a "indústria de transporte", o autor demonstra que
há nessa atividade o desenvolvimento de um "processo de
produção
dentro
do processo de circulação" (Marx, 2014, p. 231). E essa
indicação é central para que ocorra uma melhor
intelecção dos serviços (parte deles) como geradores de
valor. Como Marx tem uma
concepção ampliada de indústria,
que inclui vários setores dos chamados serviços, torna-se
possível compreender por que há um "processo de
produção" no ramo do transporte, armazenamento,
indústria do gás, ferrovias, navegação,
comunicações etc., mesmo que essas atividades sejam geradoras de
produção imaterial. A indústria de transportes,
constituindo-se em uma forma de produção imaterial que atua na
esfera da circulação, além de ser imprescindível
para a concretização da produção material e da
efetivação do mais-valor na produção de alimentos,
faz vicejar dentro dela um "processo de produção" sem
que nada de material seja efetivamente produzido.
Sabemos que esses exemplos não significam que o
mais-valor seja criada fora da produção.
Mas, no Livro II de
O capital,
Marx indica claramente que a produção não se limita
à sua esfera material (ainda que esta seja dominante). É por isso
que a formulação marxiana também destaca que uma coisa
é gerar lucro, outra é criar mais-valor. Ao tratar do
comércio no Livro III, Marx desenvolveu a tese de que a atividade
comercial, embora seja necessária para a venda do que foi produzido,
não gera mais-valor, sendo por isso improdutiva (Marx, 2017, em especial
cap. 17, "O lucro comercial"). Ela se apropria de parte do mais-valor
gerado na indústria, mas não é responsável por sua
criação. Por isso Marx afirma que os trabalhadores do
comércio têm similitudes com os demais trabalhadores: é um
assalariado como qualquer outro, comprado como
capital variável
pela burguesia comercial, e não
como renda
(Marx, 2017, p. 334). Mas acrescenta que há uma diferença
fundamental a mesma existente entre o capitalista industrial e o
comercial. Isso porque o proletariado industrial gera mais-valor, o que
não ocorre com o assalariado do comércio (Marx, 2017, p. 334).
Em pleno século XXI, dadas as profundas mutações
vivenciadas pelo capitalismo da era digital-informacional-financeira, é
decisivo que se ofereça uma intelecção atualizada acerca
do papel do trabalho nos serviços para a criação de
mais-valor. Já indicamos anteriormente que estamos verificando o
nascimento de novas formas de extração de mais-valor,
especialmente nos setores de serviços e de produção
não material que se expandem contemporaneamente. Isso porque a
transformação mais notável da empresa flexível
não foi a conversão da ciência em principal força
produtiva
(Habermas, 1975), mas, sim,
a imbricação progressiva entre trabalho e ciência,
imaterialidade e materialidade, trabalho produtivo e improdutivo
(Antunes, 2018; Antunes e Praun, 2015; Vinícius Santos, 2013; Lojkine,
1995; Mészáros, 2004).
O crescimento do fenômeno social que Ursula Huws denominou
cybertariado
(Huws, 2003) e Ruy Braga e eu concebemos como
infoproletariado
(Antunes e Braga, 2009) é um forte exemplo da ampliação
das atividades de serviços, que vêm participando crescentemente do
processo de valorização do capital. Cada vez mais integradas nas
cadeias produtivas de valor, convertem-se em partícipes decisivos do
processo de geração do valor do capitalismo de nosso tempo. Tanto
os trabalhos materiais quanto os imateriais, estando cada vez mais
inter-relacionados nas cadeias produtivas, tornam-se parte integrante e
subordinada à forma-mercadoria (Tosel, 1995; Lojkine, 1995; Antunes,
2018).
Outro exemplo dessa ampliação da lei do valor nas esferas
anteriormente consideradas improdutivas evidencia-se na tendência global
de expansão da
terceirização
em todos os ramos da produção e
em particular nos serviços.
Isso porque a
terceirização
é um dos mecanismos vitais do capitalismo para intensificar a
exploração do mais-valor e, desse modo, aumentar a
valorização do capital em setores que, no passado, eram
desprezados. A expansão global de empresas terceirizadas que oferecem
amplos "serviços industriais" é exemplar.
A Foxconn, por exemplo, é uma fábrica do setor de
informática e tecnologias de comunicação que vem se
expandindo na China e segue o modelo do Electronic Contract Manufacturing, isto
é, trata-se de uma empresa terceirizada global que monta produtos
eletrônicos para a Apple, Nokia e várias outras transnacionais. Na
unidade de Longhua (Shenzhen), onde são montados os iPhones, desde 2010
aumentou muito o número de trabalhadores que cometem suicídio, em
sua maioria denunciando a intensa exploração do trabalho a que
estão submetidos (Ngai e Chan, 2012; Antunes, 2018).
Se a hipótese aqui apresentada é pertinente, as
consequências
sociais e políticas
da proletarização no setor de serviços assume grande
relevância. Podemos resumi-las na seguinte indagação: os
trabalhadores e as trabalhadoras dos serviços são, em
última instância, da classe média emergente, são
expressão do chamado precariado ou fazem parte do que denominamos o novo
proletariado de serviços? É o que veremos a seguir.
Classe média, precariado ou novo proletariado de serviços?
Entendemos que os trabalhadores e as trabalhadoras do setor de serviços (
call centers
, telemarketing, indústria de software e tecnologias de
informação e comunicação, hotelaria, shopping
centers, hipermercados,
fast-food,
grande comércio, entre tantos outros) encontram-se cada vez mais
distantes das modalidades de trabalho intelectual que particularizam as classes
médias e estão cada vez próximos do que denominamos novo
proletariado de serviços.
Se os segmentos mais tradicionais das classes médias são
definidos por sua inserção na produção, na qual
realizam trabalho predominantemente intelectual
e trabalho não manual (como os médicos, os advogados e outros
profissionais liberais), estamos presenciando uma expansão significativa
dos assalariados médios, de que são exemplo os bancários,
os professores, os assalariados de comércio, supermercados,
fast-food, call centers,
tecnologias de informação e comunicação etc., e
eles vêm sofrendo um crescente processo de proletarização,
aprofundando a formulação pioneira de Braverman (1977).
Como as classes médias, dadas suas oscilações estruturais
típicas, se definem também por seus ideários e valores
culturais, simbólicos, de consumo (Bourdieu, 2007), seus segmentos mais
altos se distinguem da classe média baixa e se aproximam, no plano
valorativo, das classes proprietárias. Mas seus estratos mais baixos, ao
contrário, tendem, no plano da objetividade, a se aproximar da classe
trabalhadora. É por isso que a consciência das classes
médias aparece frequentemente como a consciência de uma não
classe, ora mais próxima das classes proprietárias (como é
o caso de gestores de médio e alto escalão, administradores,
engenheiros, médicos, advogados), ora mais próxima das
condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, quando
tomamos os segmentos mais pauperizados.
Assim, esses contingentes mais proletarizados, especialmente no setor de
serviços, participam cada vez mais (direta ou indiretamente) do processo
de valorização do capital. Os assalariados de
call centers,
telemarketing, hipermercados,
fast-food,
grande comércio, escritórios, hotéis e restaurantes
encontram-se muito mais próximos desse novo proletariado que se expande
em escala global e que tem sido responsável pela
deflagração de várias lutas sociais,
manifestações e greves no mundo atual.
Entretanto, se essa constatação nos diferencia daqueles que
tendem a caracterizar esses trabalhadores como parte da classe média,
também nos separa daqueles que os concebem como parte de uma suposta
"nova classe", a "classe do precariado" (Standing, 2011).
Nosso trabalho anterior vem enfatizando que, desde a eclosão da crise
estrutural do capital (Mészáros, 2002; Chesnais, 1996), amplia-se
significativamente o processo de precarização estrutural do
trabalho. O aumento da exploração do trabalho, que passou cada
vez mais a se configurar como
superexploração
da força de trabalho, além de aumentar o desemprego, vem
ampliando enormemente a informalidade, a terceirização e a
precarização, em um processo que atinge não só os
países do Sul mas também os países do Norte (Antunes,
2018; Sotelo Valencia, 2016).
Foi nesse contexto que o cenário social se alterou sobremaneira. Em
Portugal, por exemplo, essas lutas se tornaram emblemáticas: em
março de 2011, explodiu o descontentamento da
"geração à rasca". Milhares de manifestantes,
jovens e imigrantes, homens e mulheres precarizados, desempregados e
desempregadas expressaram sua revolta através do movimento
Precári@s Inflexíveis.
Na Espanha deflagrou-se o movimento dos Indignados, jovens que lutam contra as
altas taxas de desemprego e a completa ausência de perspectiva de vida:
estudando ou não, os jovens são candidatos ao desemprego ou, na
melhor das hipóteses, ao trabalho precário.
Na Inglaterra, ocorreu um forte levante social que se iniciou depois que um
taxista negro foi assassinado pela polícia. Jovens pobres, negros,
imigrantes e desempregados se revoltaram e, em poucos dias, o levante atingiu
várias cidades. Foi a primeira grande explosão social na
Inglaterra (e em partes do Reino Unido) depois da revolta contra o Poll Tax,
que selou o fim do governo Thatcher.
Nos Estados Unidos, floresceu o movimento de massas Occupy Wall Street, que
denuncia a hegemonia dos interesses do capital financeiro e suas nefastas
consequências sociais: o aumento do desemprego e do trabalho precarizado,
que atingiu ainda mais duramente as condições de vida das
mulheres, dos negros e dos imigrantes.
Na Itália, ocorreu o avanço dos novos movimentos de
representação do precariado, com a eclosão em
Milão, em 2001, do MayDay, que luta pelos direitos e por uma
representação autônoma desse amplo e heterogêneo
conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, jovens, imigrantes, qualificados e
não qualificados
[2]
.
Esses exemplos, dentre tantos outros, constituíram a base de um amplo
debate, especialmente nos países do Norte, acerca da emergência
desse novo contingente da classe trabalhadora. E, dentro desse debate, o mais
polêmico foi o que vislumbrou o advento de uma "nova classe", o
precariat
(Standing, 2011). Segundo Standing, o precariado é uma classe distinta
daquela que se formou durante o capitalismo industrial, herdeiro da era
taylorista-fordista. Ele se aproximaria, então, de uma nova classe mais
desorganizada, ideologicamente difusa e facilmente atraída por
"políticas populistas", suscetíveis até mesmo
aos apelos "neofascistas". Com esse desenho crítico
ainda que a descrição do autor tenha informações
relevantes , essa nova classe assume contornos de "uma classe
perigosa", em si e para si diferenciada da classe trabalhadora (Standing,
2011, p. 1-25)
[3]
.
Nossa formulação caminha em direção oposta
àquelas que concebem o precariado como uma nova classe. Entendemos que a
classe-que-vive-do-trabalho, em sua nova morfologia, compreende vários e
distintos segmentos diferenciação que não é
novidade na história da classe trabalhadora, sempre clivada por
questões como gênero, geração, etnia, nacionalidade,
migração, qualificação etc. Ao contrário,
portanto, de se constituir como uma nova classe, o precariado é um setor
diferenciado da classe trabalhadora, em suas heterogeneidades,
diferenciações e fragmentações. Nos países
capitalistas avançados, os mais precarizados, sejam jovens, imigrantes,
negros etc., que compõem o
precariat,
já nascem sob o signo da corrosão dos direitos e lutam de todos
os modos para conquistá-los.
Por outro lado, os setores da classe trabalhadora mais tradicionais, herdeiros
do
welfare State,
lutam para impedir o desmoronamento ainda maior de suas
condições de trabalho. Esses dois polos fundamentais da mesma
classe-que-vive-do-trabalho, em sua aparente contradição, parecem
ter seu futuro indelevelmente ligado: o jovem precariado, em suas lutas, quer o
fim da precarização completa que o avassala e sonha com um mundo
melhor. Os trabalhadores mais tradicionais, mais organizados sindical e
politicamente, herdeiros do
welfare State,
por sua vez, querem evitar uma degradação ainda maior e se
recusam a converter-se nos novos precarizados do mundo.
Como a lógica destrutiva do capital é múltipla em sua
aparência, mas una em sua essência, esses polos vitais do mundo do
trabalho sofrerão uma derrota ainda maior, se não forem capazes
de se conectar solidária e organicamente. Como entendemos a
precarização como um processo, que pode tanto se ampliar como se
reduzir, ela será resultado da capacidade de resistência,
organização e confrontação da classe trabalhadora.
Se esses dois segmentos forem capazes de construir laços de
solidariedade e sentido de pertencimento de classe (Bihr, 1998), conjugando
suas lutas cotidianas, eles poderão se contrapor com mais força e
organização à lógica do capital, que é
profundamente adversa ao trabalho.
E aqui o papel do novo proletariado de serviços é
emblemático. Sua aglutinação como parte constitutiva e
crescente da classe trabalhadora ampliada, como parte integrante de suas lutas,
de seus embates e resistências, terá grande importância nas
lutas do conjunto da classe trabalhadora.
Por fim, dada a conformação desigual e combinada da (nova)
divisão internacional do trabalho, são necessárias algumas
mediações, quando se trata de definir o precariado. E a primeira
delas é dada pela clivagem Norte e Sul. Na periferia, o proletariado
nasceu eivado da condição de precariedade. Basta lembrar que, no
Brasil e em vários outros países da América Latina (para
não falar dos Estados Unidos), cuja história é marcada
pela existência do escravismo colonial, o proletariado floresceu a partir
da abolição do trabalho escravo, de modo que sua
condição de precariedade não é a
exceção, mas um traço constante desde a origem.
Como no Sul não se desenvolveu nenhum tipo persistente de aristocracia
operária, o proletariado sempre se confundiu com a
condição de precariedade, e suas diferenças internas nunca
foram tão acentuadas como no Norte. Aqui, ao contrário,
historicamente se desenvolveu a aristocracia operária e posteriormente o
proletariado herdeiro do
welfare State.
O advento recente do precariado tornou-se um traço expressivo de
diferenciação que, entretanto, não encontra simetria com o
proletariado do Sul. Na periferia, as clivagens dentro da classe trabalhadora
não têm a intensidade dos países centrais, de modo que
falar em "uma nova classe" torna-se um equívoco ainda maior.
Se parece plausível, então, reconhecer empiricamente a
emergência recente do precariado como um dos polos mais precarizados da
classe trabalhadora nos países centrais, na periferia ele é algo
diferenciado, uma vez que é parte constitutiva do operariado desde suas
origens, ainda que, no presente, ganhe novas configurações. Seja
denominado precariado, seja denominado parte do novo proletariado de
serviços, é constituído de trabalhadores e trabalhadoras
que frequentemente oscilam entre a heterogeneidade em sua forma de ser
(gênero, etnia, geração, qualificação,
nacionalidade etc.) e a homogeneidade que resulta de sua condição
precarizada, desprovida de direitos e de regulamentação
contratual.
As formas de intensificação do trabalho, a burla dos direitos, a
superexploração, a vivência entre a formalidade e a
informalidade, a exigência de metas, a rotinização do
trabalho, o despotismo dos chefes, coordenadores e supervisores, os
salários degradados, o trabalho intermitente, os assédios, os
adoecimentos e as mortes indicam um forte processo de
proletarização e de explosão desse novo proletariado de
serviços que se expande em escala global, diversificando e ampliando a
classe trabalhadora.
E, se há uma nova morfologia do trabalho, é necessário
constatar também o advento de uma nova morfologia das formas de
organização, representação e luta da classe
trabalhadora. E o mundo atual tem sido um excepcional laboratório para
se compreender essa nova era das lutas sociais.
[1 Este capítulo é parte de nosso projeto de pesquisa junto ao
CNPQ ("O uno e o múltiplo: desenhando a nova morfologia do
trabalho") e apresenta algumas teses desenvolvidas em
O privilégio da servidão
(São Paulo, Boitempo, 2018).
[2] Ver o site San Precario:
www.precaria.org/
[3] Ver outras críticas a essa concepção em
Global Labour Journal
(2016).
Ver também:
Fixo, volátil, ou dividido
, de Ursula Huws
[*]
Sociólogo, professor da Universidade Estadual de Campinas, Brasil. O
presente texto é a apresentaçao de
Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (IV) Trabalho digital,
autogestão e expropriação da vida,
livro de diversos autores coordenado por Ricardo Antunes e lançado agora pela
editora
Boitempo
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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