Óscar Lopes. Nascido em 1917. Então, 1917, nos Estados Unidos, Marcel Duchamp assinou um mictório, que se foi metamorfoseando em ícone inaugural, assentando praça entre os bens imperecíveis. Então, 1917, a Rússia abalou o mundo fazendo participar os invisibilizados na definição dos caminhos e comandos da História. Então, 1917, no Extremo-Ocidental da Europa, apareceu uma Virgem, disposta a deter e a converter a Rússia. Por razões certamente ponderosas nunca se inclinou para deter e converter os Estados Unidos. Óscar Lopes, religioso até aos 11 anos, dedicar-se-ia às letras em várias línguas & às ciências em diversos ramos & aos chamamentos comunitários. Transitaria, pois, da vidência para a evidência. Sempre no seio dos Livros. E ao colocar o livro no centro do ser e do saber e do conviver, retenho apartes, frutos de alta maturidade, que naturalmente são reflexo da sua estrutura dialéctica, da sua sageza e da sua irónica. Atentemos no seguinte flagrante. Numa das vezes que deparei com Óscar Lopes no átrio de um centro de trabalho para a cidadania, interpelei-o, recebendo uma resposta oracular:
–- Como vão as energias renováveis?
–- Sabes, de vez em quando é preciso fugir dos livros.
Assomava a recintos públicos como quem pede licença para entrar em sua casa. Vinha partilhar uma saudação a conhecidos e a desconhecidos e retornava ao cerco, à sua base de inquietações e indagações e descobertas e propostas e deleites. E neste folhear do itinerário, não quero deixar de aludir ao Jantar de Homenagem na Aguda/Vila Nova de Gaia. Sala jubilosa e repleta. Principalmente de cultores da escrita e de clássicos das pugnas democráticas. A Homenagem a Óscar Lopes motivou um dos últimos cortes totais do Exame Prévio e talvez a última manifestação de afronta de um colectivo ao auto-intitulado Estado Novo. Coube-me ser um dos oradores. Já nos conhecíamos de campanhas abertas e reuniões discretas. Fui actor e espectador. A certa altura, soltaram-se palavras de ordem em defesa das liberdades e de eleições credíveis e da libertação dos presos políticos e pelo regresso dos exilados. O reportório rebentaria como uma granada no meio da sala, logo que soou o nome do ostracizado-mor da Oposição. E não é que daí a dias os presos seriam libertados e os exilados começavam a regressar de avião e de comboio das sete partidas? Óscar festejava o vislumbre. Estávamos a 48 horas do 25 de Abril. Atmosfera de presságios. Delfos montou um santuário na Aguda.
Óscar Lopes. Ele, sempre com um sorriso da infância e um recado urgente para redistribuir, mesmo camuflado de pseudónimos: José de Santa-Iria, Irene Gaspar, Luso do Carmo e demais baptismos ocultos. Óscar Lopes. Legou inúmeras reflexões e marcas como historiador, crítico literário, conferencista, coloquiante, linguista, académico e de comprometido com os condenados da Terra. Ele. Homo Eruditus Magnanimus. Sob tenaz vigilância ou teclando o morse das celas. Ele, sem receio do Contraditório nem dobrável pelos aparelhos e agentes neo-medievais, que o sinalizavam como vírus cultural. E, pelos vistos, à sua maneira, os virologistas do regime não andavam longe da verdade: Óscar multiplicava e magnetizava auditórios, formulava convites corteses para duros combates, contagiava lutadores e relutantes. Um dos seus bastiões de organizador de debates foi a Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, que condignamente celebra o 140º aniversário. Óscar Lopes é um dos rostos omnipresentes das comemorações. Ele, notável síntese da Teoria & da Prática & da Civilização em Movimento. Ele, no seu campus e a seu modo, filiável na Gesta da Pena & da Espada. Tão desperto e medidor como superador de riscos. Ele, amiúde exitoso, graças à qualidade do magistério, à diplomacia relacional, à solidez e confiança da ética, aos dotes de enfrentamento e contorno de condicionalismos, à inventiva de roteiros de oportunidades.
A AJHLP abarrotou com Aquilino Ribeiro, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa-Luís, José Rodrigues Miguéis, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Sant`Ana Dionísio, David Mourão-Ferreira, Ferreira de Castro, Jaime Cortesão, Jorge de Sena, Ilse Losa, etc. Erico Veríssimo não coube na Associação. O recurso foi um espaço do Coliseu. Também estabeleceu enlaces com três livrarias, inseridas nos activos multiculturais portuenses: Divulgação, Leitura, Internacional. E esteve na concepção da Gazeta Literária e do Salão de Estudo da AJHLP. E claro – urbi et orbi – foi um dos autores e o mais dedicado e consistente da História da Literatura Portuguesa, fonte canónica desde 1955. Ei-la. A primeira. Seguida de uma vintena de edições. Ei-la. Austera e límpida. Desde 1974 oficialmente assumida e autorizada.
E a propósito evocarei a "VIII Semana de Estudos Missionários", sob a invocação de "A Crise da Fé", que decorreu no Seminário da Boa Nova/Valadares, em Setembro de 1970, com preclaras figuras em diálogo: Óscar Lopes e o bispo do Porto, António Ferreira Gomes, chegado de um exílio de 10 anos. Coube-me a sorte de almoçar ao lado do Superior-Geral da Congregação, que proporcionou algumas actualizações sobre as divergências das Missões com os Governos Ultramarinos e a política humanitária para com os Combatentes Nacionalistas. Limitar-me-ei a um incidente: no período colonial, os Missionários da Boa Nova adoptavam nos estabelecimentos de ensino a História da Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e António José Saraiva, o que constituía um delito didáctico, segundo os redutores de cabeças da época.
– Essa história é feita por marxistas.
– Senhor Governador, o problema resolve-se. Indique-nos uma melhor.
E o Governador-Geral emudeceu. E deixaria cair a questão dos manuais ante as venerandas barbas do Superior-Geral. Teve um lampejo de sensatez ou de recato ou temeu não localizar uma melhor.
Estou a lançar mão de algumas ilustrações à volta de um vulto que lia e anotava e contextualizava e particularizava e universalizava o que lia e escrevia, de preferência, acompanhado pelos virtuosos e inseparáveis Mozart, Bach e Corelli (até que perdeu a capacidade auditiva, ele, melómano de excepção, ele que tanto apreciava escutar). Óscar Lopes. O futuro visitá-lo-á em forma de livro no Palacete Burmester e na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e em todas as bibliotecas onde repousam e se movem e removem os espíritos e as pegadas dos tempos. E agora e por fim – há sempre um fim, mesmo que o assunto e o encargo se antevejam inesgotáveis – um beijo para a Maria Helena, que perfez 104 anos há dias e a quem, numa carta da prisão, Óscar perguntava se os pessegueiros já estavam em flor.
Óscar, 1917. Certidão de nascimento. Óscar, 2013. Sem certidão de óbito.
Bonjour, Allégresse.[1]