A China e o seu campesinato
A questão da terra é absolutamente fundamental para compreender a
China, assim como para apreender o que diferencia a China da grande maioria dos
países do Sul (com excepção daqueles que fizeram uma
revolução socialista, como o Vietname ou Cuba). De facto, a China
conseguiu alimentar 19% da população do planeta a partir de
apenas 8% das terras aráveis do globo. Apesar da amplidão da sua
produção agrícola, não mais de 13% da
superfície total do país pode ser cultivada. Como o povo
chinês e seus dirigentes conseguir ultrapassar um desafio tão
extraordinário? A explicação essencial encontra-se no
facto de que na China (como no Vietname ou em Cuba), a terra é
pública, propriedade colectiva das comunistas aldeãs e
distribuída entre famílias camponesas, que utilizam-na
principalmente para a produção de bens agrícolas
destinados à manutenção da auto-suficiência
alimentar.
A China representa assim um dos exemplos do êxito de um sistema
fundiário que repousa nos direitos de todos os camponeses no seio da
aldeia. Isso corresponde a uma igualdade no acesso à terra e na
utilização desta, com um Estado presente
in fine
enquanto proprietário único e uma distribuição
igualitária das terras entre as famílias beneficiárias do
usufruto. Estudar a evolução histórica e a
situação presente do campesinato chinês exige portanto
examinar primeiramente a trajectória deste sistema fundiário
fundamentado na supressão da propriedade privada e a sua capacidade de
resistir aos ataques que sofre na época actual.
É verdade que nos dias de hoje numerosos camponeses chineses sofrem
exploração e injustiça. Mas certas práticas
socialistas residuais continuam a subsistir, inclusive a herança das
grandes reformas agrárias. Em meados dos anos 1980, a
adopção de um crescimento orientado para as
exportações provocou fluxos de trabalhadores migrantes das
regiões rurais para as cidades fluxos constituídos
sobretudo pelo excedente de força de trabalho das famílias rurais
possuidoras de uma pequena parcela, sem expropriação de terras. O
sector rural suportou o custo da reprodução social do trabalho e
serviu de tampão para absorver nas cidades os riscos sociais provocados
pelas reformas pró acumulação de capital. Ele mostrou
igualmente sua capacidade de estabilização regulando o mercado de
trabalho e reabsorvendo os trabalhadores migrantes desempregados nas cidades
durante os períodos de crises.
Alguns entretanto apoiam a linha neoliberal no exterior do Partido
Comunista Chinês, mas também por vezes no interior, nomeadamente
na rica região de Shangai e preconizam uma
mercantilização das terras. Sob a pressão de projectos de
construção conduzidos por governos locais e orçamentos
constrangidos e especuladores imobiliários, a expropriação
das terras acelerou-se no decorrer da década de 1990. Cerca de 40 a 50
milhões de camponeses perderam assim suas terras; camponeses sem terra
surgiram nos anos 2000, especialmente após a lei de 2003 que modifica a
legislação sobre as terras aráveis colectivas e exclui uma
nova geração da alocação de terras por
redistribuição. Os perigos de tais evoluções
são reais e enfraquecem os mecanismos de gestão dos riscos por
internalização na comunidade rural, num momento em que 200
milhões de trabalhadores migrantes camponeses vivem na cidade e
estão activos no interior da classe operária. Eis porque a
propriedade fundiária colectiva em zona rural deve ser vista como a
herança mais preciosa da revolução começada em 1949.
O arranque da China apoiou-se amplamente nas transferências de recursos
extraídos do sector rural. No momento presente, a opção de
ser orientar para a exportação tornou-se um modelo tão
dependente e portador de desequilíbrios internos que a China tem de
fazer enormes esforços para modificar sua trajectória de
desenvolvimento investindo na sociedade rural, a fim de garantir o progresso
social e preservar o ambiente. Soluções para promover uma via
alternativa poderiam consistir em reactivar e revalorizar o estatuto do
campesinato, redescobrir as ideias pioneiras dos movimentos de
reconstrução rural e sustentar as experiências de
revitalização das regiões rurais actualmente praticada no
país, enquanto tentativas renovadas e poderosas, simultaneamente
populares e ecológicas, de ultrapassar os aspectos mais destruidores do
capitalismo mundial contemporâneo.
Depois de 1949, o novo regime aplicou uma industrialização de
tipo soviético, que instala um sistema dual assimétrico em
desfavor do campesinato. Entretanto, apesar desta estratégia de
industrialização, o campesinato pôde beneficiar-se de
reformas agrárias radicais. Se bem que os modos actuais de
organização, produção e distribuição
agrícolas estejam totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e
já não tenham mais grande coisa a ver com aqueles da época
maoista, a propriedade fundiária permanece estatal ou colectiva na China
ainda que formas degradadas sejam frequentemente encontradas, por vezes
com um controle privado efectivo sobre terras. Mas a persistência da
propriedade pública é uma chave que permite distinguir a
situação e o êxito da China em
relação aos outros países que têm uma
dimensão continental comparável e pretensamente são
"emergentes", tais como a Índia ou o Brasil, ou países
regionalmente dominantes (África do Sul), para os quais a questão
agrária está longe de ter encontrado condições,
mesmo parciais, de solução.
Compreender as especificidades e progressos do campesinato chinês
que constitui a maioria da população é importante a
fim de medir, por oposição, o fracasso geral do capitalismo
à escala mundial para resolver os problemas agrários e
agrícolas. A deterioração da situação das
agriculturas camponesas do mundo na sequência da
exacerbação da dimensão alimentar da presente crise
sistémica do capitalismo confirmou a incapacidade estrutural deste
sistema para ultrapassar as contradições internas que ele gera.
Estes problemas os das famílias camponesas produtoras, os dos
consumidores e mesmo os de todos os cidadãos atingem os limites
do suportável, nomeadamente em matéria de protecção
do ambiente. No Sul, onde mais da metade dos países perdeu a capacidade
de abastecer o seu povo em bens alimentares, onde três mil milhões
de pessoas permanecem sub-alimentadas e onde as condições de vida
dos camponeses como nas favelas urbanas super-povoadas pelo êxodo
rural são dramáticas, os problemas ultrapassaram mesmo
estes limites e são desumanos, inaceitáveis.
As disfunções que afectam os sectores agrícolas no sistema
mundial capitalista são identificáveis através de
paradoxos gritantes. Cerca de três mil milhões de pessoas sobre a
terra continuam a sofrer fome (em um terço) ou desnutrição
(em dois terços), enquanto as produções agrícolas
ultrapassam as necessidades alimentares; daí uma
super-produção de pelo menos 150%. Uma grande maioria destas
pessoas vive em zona rural: os três quartos dos indivíduos que
sofrem de sub-alimentação são camponeses. A
extensão das áreas de cultivo agrícola no mundo é
acompanhada por um declínio das populações camponesas em
relação às populações urbanas. Uma parte
crescente das terras é cultivada por transnacionais que não
direccionam suas produções para o consumo alimentar e sim para
destinos industriais ou energéticos mais rentáveis. Na
África, um dinamismo das exportações agrícolas
decorrentes de culturas comerciais de renda coexiste com o aumento das
importações de produtos de base destinados a responder às
necessidades alimentares. Obviamente, e com urgência, as coisas devem
mudar.
O inimigo comum dos povos do Sul e do Norte é o capital financeiro, cada
vez mais bárbaro e destruidor. E em crise. Para os povos em luta, o
princípio director é o controle pelas comunidades da
gestão das terras e da água enquanto bens comuns, que não
devem ser privatizados nem mercantilizados. O que precisa ser buscado
prioritariamente é a soberania alimentar e uma
condição para isso é o acesso à terra para todos os
camponeses a qual deve ser considerada como um objectivo para orientar a
maior parte das lutas rurais. A reforma agrária visando redistribuir as
terras aos camponeses está na ordem do dia na Ásia, África
e América Latina.
A soberania alimentar está no cerne das lutas. Para atingi-la, um modo
de produção diferente do capitalismo deverá ser praticado.
É a própria modernidade que conviria repensar. O acesso à
terra e aos recursos necessários à reprodução da
vida, enquanto bens comuns, é um direito legítimo para todos os
camponeses, para os trabalhadores e as pessoas do povo. Para que a soberania
alimentar salvaguarde modos de gestão colectiva será preciso
aceitar a presença dos agricultores familiares em qualquer futuro
previsível do século XXI. Para resolver estas questões
será preciso uma libertação da lógica destruidora
do capitalismo. Para modificar as regras de dominação
imperialista do comércio internacional, os camponeses, os trabalhadores
e os povos do Norte assim como os do Sul deverão unir-se a fim de
enfrentar em conjunto o capital financeiro e reconstruir estratégias
alternativas para a longa e difícil transição ao comunismo.
Referências
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social-démocrate pour la Chine ?",
in
P. Theuret (
dir.
),
La Chine et le monde : développement et socialisme
, p. 208-241, Le Temps des Cerises, Paris.
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Herrera R. et Z. Long (2018), "Some Considerations on
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Mazoyer M. et L. Roudart (1997),
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Nicholson P., X. Montagut et J. Rulli (2012),
Terre et liberté !
, CETIM, Genève.
Wen T. (2006), " Repenser le développement des
campagnes ",
L'Humanité
du vendredi 8 septembre.
26/Julho/2018
Do mesmo autor:
Acerca da natureza do sistema económico chinês
[*]
Investigador do CNRS (Centre d'Économie de la Sorbonne)
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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