Acima do bem e do mal
por Carlos Morais
Há uns dias, Luís Tosar afirmava que "
faltam heróis para conduzir a energia que está na rua".
O actor de cinema era entrevistado num jornal digital pelo papel protagonista
no filme
Operação E
.
Não só vi o filme estreado recentemente como também
investi o tempo necessário para conhecer as suas opiniões sobre o
conflito colombiano, seguindo e consultando boa parte das dúzias de
entrevistas na rádio, televisão e jornais em que o actor galego
pontifica sobre uma realidade que parece conscientemente não querer
conhecer.
A simpatia que sentia por ele e por algumas das personagens que tem
interpretado desvaneceu-se repentinamente pelo lamentável papel que
está a cumprir na hora de analisar com irresponsável ligeireza, e
difundir com absoluta banalidade, erróneas e falsas
concepções sobre a brutal guerra de extermínio e de
submetimento que a oligarquia colombiana declarou contra o seu povo desde
há meio século.
Aparentemente, o guião do filme narra uma história
verídica. Gira à volta das peripécias de um camponês
colombiano, José Crisanto, a quem a insurgência entregou Emmanuel,
o filho de
Clara Rojas
, uma política capturada pelas FARC em 2002 e que
em resultado de uma relação com um combatente
revolucionário ficou grávida num acampamento guerrilheiro.
Perante os graves problemas de saúde da criança, foi entregue a
Crisanto para que a cuidasse. Posteriormente, o menino acabou numa
instituição estatal em Bogotá, impossibilitando assim que
a guerrilha, tal como publicamente se comprometera, pudesse entregá-lo
junto com a sua mãe e outra representante política, também
prisioneira de guerra. Crisanto incumpriu o acordo com as FARC, mas
também foi acusado de colaboração com a guerrilha por
parte do Estado, padecendo prisão.
Uma realidade concreta omitida deliberadamente
A Colômbia tem mais de 5 milhões e meio de pessoas deslocadas
pelas políticas de roubo e saqueio de terras promovidas pela oligarquia,
empregando o mastodôntico exército regular e os paramilitares
controlados pelo Pentágono e Israel, ocupando assim o triste primeiro
lugar depois do Sudão, Iraque, Afeganistão, Somália e
República Democrática do Congo.
São mais de 10 milhões o número de hectares arrebatados a
camponeses e povos indígenas por uma política estatal
perfeitamente planificada.
A Colômbia tem mais de 250 mil desaparecid@s, 175 mil pessoas executadas,
cerca de 9 mil prisioneiras e prisioneiros políticos. Tem o recorde
mundial de matar representantes operários, é quase 3.000 o
número de sindicalistas assassinados nas últimas duas
décadas. Setenta por cento da população vive na
miséria, sendo o primeiro país em desigualdade da América
Latina.
A Colômbia é uma imensa fossa comum com milhares de corpos
mutilados, onde estão ocultos parte dos crimes cometidos pela casta
oligárquica que governa um país submetido aos interesses do
imperialismo ianque e de multinacionais espanholas como Repsol, Cepsa, Endesa,
Union Fenosa, Telefónica ou Banco Santander. Em La Macarena, no Meta,
à beira de um complexo militar, a 200 quilómetros de
Bogotá, fica uma das maiores fossas comuns do planeta.
O governo Uribe e o actual governo Santos converteram esta imensa
nação numa gigantesca base militar norte-americana, a partir da
qual os falcões de Washington tentam desesperadamente recuperar o
terreno perdido pelo avanço da onda bolivariana. Cumpre não
esquecer as declarações de Dick Cheney, vice-presidente de Bush
JR:
"Para controlar a Venezuela, é necessário dominar
militarmente a Colômbia".
Frente a esta situação, em meados da década dos sessenta
do século passado, um punhado de camponeses dirigidos por Manuel
Marulanda Vélez, com apoio do Partido Comunista, iniciaram a
resistência popular, posteriormente cristalizada numa poderosa e
invencível organização marxista-leninista em armas
denominada Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia-Exército do Povo. Pois, tal como afirmou o comandante
Alfonso Cano em declarações em prol de uma saída negociada
do conflito, meses antes do seu assassinato pela maquinaria militar
pro-imperialista na operação "Odisseo"
"as FARC nascemos resistindo a violência oligárquica que
utiliza sistematicamente o crime político para liquidar a
oposição democrática e revolucionária;
também como resposta camponesa e popular à agressão
latifundiária e latifundiária que inundou de sangue os campos
colombianos usurpando terra de camponeses e colonos".
A Colômbia é um regime autoritário e terrorista que
até o momento impossibilitou que a oposição popular
pudesse defender pacificamente o seu projecto político. Cada vez que
tentou esta via, foi literalmente massacrada. A experiência da
União Patriótica, na segunda metade dos oitenta, ainda
está muito viva. Dois candidatos presidenciais, 8 congressistas, 13
deputados, 70 vereadores, 11 presidentes da câmara e milhares de
militantes foram assassinados entre 1985 e inícios dos anos noventa, por
defenderem a justiça social e a soberania nacional. Razão que
explica as dificuldades de compreensão de Luis Tosar para não
entender que
"não seja fácil que a gente fale".
Actualmente, esta burguesia vende-pátria assinou um Tratado de Livre
Comércio (TLC) com os Estados Unidos e pretende converter o país
numa imensa exploração mineira e agro-industrial, seguindo o
modelo de economia de enclave.
Existem centenas de livros, páginas web, documentários,
reportagens jornalísticas, nos quais se pode contrastar tudo isto.
Porém, um colossal muro de silêncio e manipulação
pretende lavar a cara de um Estado criminoso e narcotraficante, apresentando-o
como um modelo de democracia parlamentar. Para citar um só exemplo que
Luís Tosar deveria conhecer, há uns meses os Estados Unidos
solicitaram, por narcotráfico, a extradição do ex-chefe de
segurança de Álvaro Uribe, o general Maurício Santoyo.
A oligarquia provocou e alimenta esta guerra contra as imensas maiorias
populares, que hoje a insurgência pretende superar mediante o processo de
negociação política que se está a desenvolver em
Havana. O futuro determinará se a vitória de por a oligarquia a
dialogar não é mais que um novo engano da burguesia para ganhar
tempo e lograr o que em 50 anos não atingiu: dobrar os firmes
princípios revolucionários, comunistas e bolivarianos das
FARC-EP. Na actualidade, tal como transmitiu no mês de Outubro em Oslo o
comandante Iván Marquez
"apoiados em simples exercícios de matemática, podemos
afirmar que a guerra é insustentável para o Estado".
A infâmia de meter todo o mundo no mesmo saco
Frente a esta inegável realidade, Luís Tosar adopta uma posse de
neutralidade e imparcialidade, situando-se acima do bem e do mal. Não
quer admitir, e menos ainda reconhecer, que os povos têm direito à
autodefesa quando são atacados. A rebelião armada contra a
opressão é um dever quando não existem possibilidades
reais de defesa frente à exploração e à
dominação.
Este filme era uma magnífica oportunidade para divulgar a verdade sobre
um dos conflitos políticos, sociais e armados mais submetidos à
grosseira manipulação dos meios de comunicação
burgueses, mas novamente optou-se por dar uma visão morna e maquilhada
da tese oficial imposta pelos que se consideram os donos do mundo.
O filme, dirigido pelo realizador hispano-francês Miguel Courtois, e
financiado por TVE e Canal + França, situa no mesmo nível as duas
partes em conflito: povo colombiano
versus
oligarquia, e as suas estruturas de defesa, intervenção e
combate: guerrilhas/organizações populares/movimentos sociais
versus
exército regular/polícia/paramilitares e sicários.
Não é de estranhar esta atitude em quem dirigiu
"El lobo"
(2004) ou
"GAL"
(2006), desfigurando conflitos políticos com base nas leituras impostas
pela ideologia dominante e as necessidades comerciais.
Tão pouco nos surpreende que alguém como Luís Tosar,
epidermicamente solidário com aquelas causas progressistas socialmente
mais assimiláveis, uma das caras mais visíveis da desaparecida
Burla Negra, ex-militante e candidato do
BNG
às eleições municipais e europeias, colabore activamente
em ocultar a natureza política da guerra de guerrilhas que amplos
sectores do povo colombiano promovem e apoiam.
Nem
"todos são maus"
, nem
"é difícil saber quem é o pior de todos"
, nem as FARC são uma
"narcoguerrilha"
, tal como manifestou num programa de La Sexta. Nada disso!
É muito fácil, a partir de um hotel de cinco estrelas, do glamour
dos palcos de televisão e festivais de cinema, sentenciar com
frivolidade condenações veladas das justas lutas pela
libertação dos povos, e para não perder essa aureola de
progressista meter no mesmo saco oprimidos e opressores.
Afirmar que, na Colômbia, povo em armas e exército genocida
são similares, é o mesmo que considerar que a legitimidade do
emprego da violência da guerrilha vietnamita era tão
condenável quanto os bombardeamentos com napalm do exército de
ocupação ianque.
O conflito colombiano "não é absurdo", é a
única alternativa que os sectores mais avançados do povo
trabalhador colombiano podem adoptar frente à guerra de
extermínio de uma burguesia apátrida e criminosa.
Há que molhar-se, não valem as meias tintas. Gastar três
milhões de euros num filme que satisfaz parcialmente a oligarquia
colombiana é uma lamentável contribuição para essas
causas justas que esporadicamente Luís Tosar gosta de apoiar.
Entendemos que optar claramente pela causa dos humildes e oprimidos da
Colômbia não contribui para somar méritos para ganhar outro
Prémio Goya
. Antes, é garantia de ficar completamente eliminado de qualquer
possibilidade futura de atingir um
óscar.
Outra coisa é estar contra os despejos, incremento do IVA ou condenar
as fanfarronadas extremistas do ministro Wert.
Nada esperávamos nem esperamos do mundo da farándula. Numa das
entrevistas aludidas, após a reprodução de imagens da
repressão da polícia espanhola, o actor luguês sai
novamente pela tangente afirmando literalmente que
"é muito triste que a polícia não saiba quem é
o inimigo. Um sai à rua para protestar e por cima os companheiros (sic)
polícias vão contra ti em lugar de ir contra o inimigo real.
Não sei se é que estão completamente errados ou é
que, realmente, não tenham outra forma de fazer as coisas"
. Não há pior cego que aquele que não quer ver.
A Revolução é uma necessidade, não uma atitude
romântica
Luís Tosar afirma numa entrevista ser um romântico e que há
uma "visão muito romântica dos movimentos
revolucionários".
Novamente volta a confundir alhos com bugalhos. As revoluções
são processos sociais transformadores, resultado objectivo de
opressões, da tomada de consciência de amplas maiorias sociais,
não produtos artificiais estéticos e "idealistas" de
intelectuais e artistas progressistas. A intensa guerra de classes continua na
Colômbia porque não existe outra possibilidade para o seu povo.
Porque, ao contrário das opiniões de Luís Tosar, quando
afirma que
"Eu não confio muito na inteligência colectiva. Nunca confiei.
Creio que assim não funcionamos bem",
são as massas que constroem a sua própria história.
Na Colômbia não faltam heróis para conduzir a energia que
está na rua. Existem, são de carne e osso, têm nome e
rosto, sofrem, riem, combatem, amam. A imensa maioria são centenas de
milhares de anónimos activistas, camponeses, trabalhadores, estudantes,
mulheres, indígenas que lutam nas trincheiras dos movimentos sociais,
nas minas, nos campos, nas fábricas, nas universidades, nos povos e nas
cidades.
Outros chamaram-se Jacobo Arenas, Efraín Guzman, Mariana Paez,
Raúl Reyes, Iván Ríos, Manuel Marulanda, Jorje
Briceño "Mono Jojoy", Alfonso Cano. Foram parte da
Colômbia mais brava e rebelde. Da mesma que se opôso ao
colonialismo espanhol durante mais de trezentos anos, e posteriormente ao
Estado oligárquico crioulo.
Outros são conhecidos por Jesus Santrich, Rodrigo Granda, Simón
Trinidad, Tanja Nijmeijer "Alexandra", Maurício Jaramillo,
Fabián Ramírez, Pablo Catatumbo, Joaquín Gómez,
Iván Marquez, Timoleón Jiménez "Timochenko". Com
o seu valor e talento, a Colômbia triunfará. Graças a eles,
mantém-se viva a esperança de milhões de colombianas e
colombianos que desejam uma paz com justiça social e soberania nacional.
Não somos dos que estão acima do bem e do mal. Somos, sim,
daqueles que preferem apanhar uma constipação a não nos
molharmos. Sem duvidar nem um milésimo de segundo tomamos partido,
estamos com a Colômbia que hoje avança e, mais cedo que tarde,
triunfará.
Galiza, 11/Dezembro/2012
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