As veias da América Latina voltam a sangrar
O capitalismo e o imperialismo , e é indiferente que seja
americano ou europeu , não se detêm perante
considerações democráticas, nem perante o massacre de
populações desarmadas. Portanto, quando um povo decide recuperar
(ainda que só em parte) os recursos que são soberanamente seus e
as riquezas construídas com o seu esforço tem de se preparar para
os defender com as suas próprias armas.
Dois processos opostos, mas com a mesma origem, estão a sacudir a
convulsa América Latina: o golpe de estado na Bolívia e a revolta
em massa dos povos contra a versão mais selvagem do capitalismo.
A origem é a mesma: o aprofundamento da crise geral que agita o centro
do imperialismo e intensifica a sua natureza predatória, prescindindo,
como sempre, das máscaras de democracia com as quais se cobre, em tempos
de bonança relativa.
A vitória eleitoral de Hugo Chávez, em 1998, marcou o
início de um processo durante o qual chegam aos governos de importantes
países latino-americanos forças políticas que expulsam os
representantes das burguesias aliadas do imperialismo e promovem, em graus
variados, medidas destinadas a melhorar os níveis de vida das classes
populares e nacionalizações de empresas e recursos.
Algum tempo atrás, os porta-vozes da Casa Branca, depois de constatarem
as suas dificuldades económicas e militares noutras partes do mundo,
anunciaram que voltavam a colocar como objetivo o seu pátio traseiro. Na
apresentação do documento que resume a estratégia para o
período 2017-2027 do Comando Sul (USSOUTHCOM, a sigla em inglês),
intitulada "Teatro Estratégico", o seu chefe desenvolveu a
prioridade que permita aos EUA voltarem a dominar a América Latina e os
seus enormes recursos naturais
[1]
.
A intensificação do paramilitarismo na Colômbia, já
sem a contenção das FARC, as tentativas de
desestabilização na Venezuela e na Nicarágua, com o
evidente objetivo de desencadear um golpe de Estado, ou o golpe que parece
consumado na Bolívia quando estas linhas são escritas, respondem
ao mesmo programa, reeditado pela enésima vez na saqueada América
Latina.
O guião e a direção têm a assinatura dos EUA, com um
protagonismo cada vez maior de Israel na indústria de repressão
[2]
. A execução direta ficou (como sempre) a cargo das brutais
oligarquias locais, prenhas de ódio e racismo em relação
à classe operária e aos povos aborígenes, à imagem
e semelhança dos que, em nome da cruz e do império espanhol,
iniciaram o saque da América Latina.
Assinale-se que, exceto na Venezuela (especialmente após a tentativa do
golpe de Estado de 2002), os diferentes governos progressistas não
procederam à depuração do aparelho do Estado. À
frente do poder judicial (como se pode comprovar no Paraguai ou no Brasil), do
exército e da polícia permaneceram representantes das mesmas
classes sociais que haviam sido temporariamente afastadas dos governos e que,
sistematicamente, recorrem ao imperialismo americano para recuperar os seus
privilégios.
Especialmente significativo é que, apesar da
intensificação da penetração militar dos EUA na
região (contabilizam-se 75 bases militares dos EUA em diferentes
países
[3]
, a Colômbia tenha formalizado a sua entrada na OTAN, em 2018; desde
2008, a IV Frota reativou-se e são cada vez mais frequentes as manobras
militares "Unitas", com a participação de numerosos
países da região
[4]
, países como o Equador, de Correa, ou a Bolívia, de Evo
Morales, não quebraram nos seus países a cadeia de controle do
imperialismo sobre os seus exércitos e forças de segurança.
Mas a mão do imperialismo norte-americano não deve esconder os
interesses europeus e, especialmente, os das multinacionais espanholas
(tão imperialistas quanto as de Washington) que, muito provavelmente,
estão por trás do golpe na Bolívia, como estiveram no
golpe fracassado contra Chávez, em 2002.
É praticamente impossível que um movimento da envergadura do
golpe na Bolívia fosse desconhecido, dada a importantíssima
presença empresarial espanhola nesse país e no conjunto da
América Latina.
Recorde-se que a Espanha é o segundo país investidor na
região (depois dos EUA) e que esta situação, iniciada na
década de 1990, está intimamente ligada à recente
construção do capitalismo espanhol. Depois do desmantelamento do
setor industrial nas décadas de 80 e 90 (a sua percentagem no PIB passou
de 34% para 15%
[5]
, em resultado da entrada da Espanha na CEE (1986) e eufemisticamente chamada
"reconversão industrial", o governo do PSOE e, depois, o do PP
privatizaram em tempo recorde os monopólios públicos de empresas
estratégicas em hidrocarbonetos, nos telefones, nos transportes, na
banca, nas comunicações, na eletricidade, etc. As novas empresas
privatizadas a preço de saldo, que, rapidamente, acumulam fortunas
consideráveis
(através de clientela cativa e portas giratórias), organizam-se
num trust, criado a pedido do governo de Felipe González e por ele
dirigido. O objetivo era obter, através de pressões e subornos, a
venda, também a preços irrisórios, de recursos naturais e
empresas públicas dos diferentes países latino-americanos. O
êxito foi enorme.
Num recente artigo intitulado
O regime de transição e o capital espanhol no saque da
América Latina
[6]
, analisei esse processo.
Alguns dos dados das privatizações na Bolívia são
os seguintes:
A Repsol comprou o IPBF, em 1995, e controla até hoje 45% das
reservas de gás e 39% das reservas de petróleo.
A Rede Elétrica Espanhola (privatizada apesar de um tão
patriótico nome) comprou a empresa pública de
distribuição de eletricidade boliviana ENDE, em 1995.
Desde 1997, o BBVA controla dois fundos de pensões privatizados,
que representam 53% do total.
Outras empresas com importantes negócios no país
são a Iberdrola, a União Espanhola de Explosivos, a Editorial
Santillana, a Abertis, etc.
A Espanha é o segundo maior investidor na Bolívia, apenas
atrás dos EUA. Muitas destas multinacionais espanholas e de outros
países europeus, sobretudo da Alemanha, estavam em conflito com o
governo de Evo Morales, que pretendia assumir o seu controle, mesmo que
parcialmente.
Algumas semanas antes do início do golpe, o governo de Evo Morales
cancelava um projeto de associação para a
exploração de lítio entre a empresa pública
Jazidas de Lítio
e a multinacional alemã
ACI Systems
[7]
. Um ano antes, o governo de La Paz adjudicava a uma empresa chinesa a
exploração de uma exploração de lítio,
descartando os projetos apresentados por empresas espanholas: a
Asociación Accidental TSK SEP Electrónica Electricidad
, o grupo empresarial presidido pelo abastado empresário Sabino
García, a
INTECSA Industrial
(filial da
ACS
, de Florentino Pérez) e o
Grupo Asociación Accidental AFK ACI
[8]
.
O golpe da Bolívia seguiu o mesmo guião de outros golpes contra
governos progressistas na América Latina, a começar pelo mais
emblemático e terrível, de 1973, contra o Chile da Unidade
Popular. A Igreja Católica e outras seitas religiosas tiveram uma
participação destacada, como em outros derrubamentos de governos
populares na região.
"A Bíblia voltará ao palácio do governo"
era um lema dos golpistas bolivianos.
Em diferentes publicações
[9]
documentou-se o papel das ONG no financiamento do golpe, com o pretexto da
ajuda humanitária, e a sua penetração nos média.
Sabe-se, desde há algum tempo, que a USAID desenvolvia projetos de
"autonomia regional"
, isto é, projetos desestabilizadores das oligarquias locais no leste da
Bolívia, nas áreas mais ricas. Os incêndios florestais de
agosto passado, na véspera das eleições, tinham o objetivo
de mostrar Evo Morales como um agressor do meio ambiente. Algo assim como a
fabricação do
"eco-terrorista"
Saddam Hussein e o corvo marinho alagado em petróleo, que serviu para
justificar os bombardeamentos contra o Iraque, em 1991. O
El País
aponta claramente o objetivo:
«Ao longo do seu governo, Morales sustentou que, agora, em nenhum campo o
país precisa de "pedir esmolas" às potências
mundiais. Este discurso dificulta a aprovação de uma
declaração de "desastre nacional", que, de acordo com a
legislação nacional, implicaria aceitar que o Estado não
tem capacidade para enfrentar a tragédia. Dezenas de
instituições ambientalistas civis, incluindo a Igreja
Católica, assim como manifestações espontâneas nas
três principais cidades bolivianas (La Paz, Santa Cruz e Cochabamba)
exigiram que ele fizesse essa declaração»
[10]
.
Alguns preparam o cenário do golpe, enquanto outros, como Pedro
Sánchez e a UE, fiéis às multinacionais que representam e
entrincheirados na equidistância
"contra a violência"
[11]
justificam os golpistas. Inclusivamente, compartilham o escárnio do
decreto do governo golpista, que dá às forças repressivas
licença para matar e
"que prevê a isenção de responsabilidade criminal, sob
certas condições, para o pessoal das Forças Armadas que
participe nas operações para o restabelecimento da ordem
interna".
O cúmulo da cumplicidade no crime é o envio de instrutores da
polícia espanhola para treinar os Carabineiros do Chile.
Em situações limite como esta caem as máscaras, não
há terceiras vias.
Mas há algo a aprender, porque o guião repete-se e repete-se e
não é mais possível continuar a alegar ignorância.
Atilio Borón escrevia, no auge da resistência desarmada do povo
boliviano e após a renúncia de Evo Morales, o seguinte:
«Entram em cena as "forças de segurança". Neste
caso, estamos a falar de instituições controladas por
várias agências, militares e civis, do governo dos Estados Unidos.
São elas que as treinam, as armam, fazem exercícios conjuntos e
as educam politicamente. Tive ocasião de o comprovar quando, a convite
de Evo, inaugurei um curso sobre "Anti-imperialismo" para oficiais
superiores das três armas. Nessa ocasião, fiquei abalado com o
grau de penetração dos mais reacionários slogans
norte-americanos da época da Guerra Fria e pela indissimulada
irritação causada pelo facto de um indígena ser presidente
do seu país. O que essas "forças de segurança"
fizeram foi sair de cena e deixar o campo livre para a descontrolada
atuação das hordas fascistas como as que atuaram na
Ucrânia, na Líbia, no Iraque e na Síria para derrubar, ou
tentar fazê-lo, neste último caso, líderes incómodos
para o império e, assim, intimidar a população, a
militância e os próprios membros do governo. Ou seja, uma nova
figura sociopolítica: golpismo militar "por omissão",
permitindo que os bandos reacionários, recrutados e financiados pela
direita, imponham a sua lei. Uma vez que reinava o terror e perante a
não defesa do governo, o desenlace era inevitável»
[12]
.
Os povos do Estado espanhol têm uma responsabilidade especial para com os
povos latino-americanos e as razões são esmagadoras:
É mais do que provável que os interesses de empresas
espanholas sejam cúmplices do golpe na Bolívia.
Enfrentamos os mesmos capitalistas exploradores que, sob uma ou outra
sigla da extrema direita, instigam os setores mais desesperados do povo ao
confronto com os imigrantes. Ninguém fala de que estes trabalhadores
fogem dali, do saque dos seus países pelas multinacionais daqui. O
objetivo é dividir-nos, impedir que olhemos para cima e vejamos as
mãos dos mesmos poderosos movendo as alavancas da tragédia.
É imprescindível que a classe operária e o povo, como
fazem os venezuelanos e os cubanos, aprendam com o sangue derramado os
ensinamentos que a história insistentemente nos mostra. O capitalismo e
o imperialismo , e é indiferente que seja americano ou europeu
, não se detêm perante considerações
democráticas, nem perante o massacre de populações
desarmadas. Portanto, quando um povo decide recuperar (ainda que só em
parte) os recursos que são soberanamente seus e as riquezas
construídas com o seu esforço tem de se preparar para os defender
com as suas próprias armas.
Vamos manifestar-nos em Madrid no sábado, 21 de dezembro, às 18h,
desde Glorieta de Atocha até ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros, contra o golpismo imperialista e em solidariedade com a luta dos
povos latino-americanos.
Notas
[1] Navarro Santiago (2018), A nova estratégia do Comando Sul dos
Estados Unidos na América Latina.
[2] Neste artigo, "Israel e a sua longa história na América
Latina", Yadira Cruz Valera analisa a implicação de Israel
nos diversos golpes de Estado na América Latina
www.prensa-latina.cu/...
. Aqui, faz-se referência às múltiplas denúncias de
utilização de armamento e técnica militar israelitas na
repressão das mobilizações populares contra Piñera,
no Chile
piensachile.com/2019/11/chile-e-israel-una-alianza-asesina/
[3]
www.institutodeestrategia.com/...
[4] Os países latino-americanos participantes nas manobras militares
Unitas 2018, juntamente com os EUA, foram a Argentina, o Brasil, a Costa Rica,
o Equador, as Honduras, o México, o Panamá, o Reino Unido, a
República Dominicana.
[5]
www.asturbulla.org/...
[6] Maestro Martín, Ángeles (2018) "O Regime da
Transição e o capital espanhol no saque da América
Latina".
redroja.net/index.php/...
[7]
www.pv-magazine-latam.com/...
[8]
www.finanzas.com/...
[9]
www.tercerainformacion.es/...
[10]
elpais.com/internacional/2019/08/27/america/1566924897_335190.html
[11]
www.tercerainformacion.es/...
[12]
resistir.info/bolivia/boron_10nov19.html
[*]
Médica, dirigente da Red Roja espanhola.
O original encontra-se em
blogs.publico.es/...
e a tradução de MLS em
pelosocialismo.blogs.sapo.pt/as-veias-da-america-latina-voltam-a-83451
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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