Rumo a uma geo-economia bipolar?

Carlos Fazio [*]

O castelo de cartas do dólar.

O sistema capitalista globalizado está em crise. Vive uma crise económica, estrutural, mas também política, de legitimidade dos estados e da hegemonia capitalista. O atual conflito entre EUA e a NATO contra a Rússia com epicentro na Ucrânia, não é a causa e sim a consequência da crise geral do capitalismo global. Os EUA lutam por manter a hegemonia intercapitalista, mas existem indícios sobre a iminente desintegração do sistema económico baseado no dólar e sua substituição por uma nova ordem socio-económica internacional liderada pela China, que combina a planificação estratégica centralizada e a economia de mercado, o controle estatal sobre a infraestrutura monetária e a participação empresarial privada.

Como assinalou o economista Michael Hudson, durante mais de uma geração destacados diplomatas estado-unidenses advertiram sobre o que acreditavam representar a última ameaça externa ao império: uma aliança da Rússia e da China que dominaria Eurásia. A guerra económica, as sanções e a guerra híbrida dos EUA contra a China e a Rússia acabaram unindo ambos os países e estão a empurrar outros para a sua emergente órbita euro-asiática. O que a médio prazo poderia configurar uma geo-economia bipolar: Ocidente vs Eurásia.

Segundo Sergey Glazyev, membro da Academia Russa de Ciências e ministro da Integração e Macroeconomia da União Económica da Eurásia, assistimos a um período de mudança de padrões tecnológicos e mundiais que sempre vai acompanhado de crises económicas estruturais e guerras, respetivamente. A mudança de padrões tecnológicos começa com um aumento dos preços da energia, após o qual as economias dos países desenvolvidos submergem numa depressão prolongada, da qual se sai por uma tormenta de inovações. Durante esse período as tensões político-militares se intensificam e a corrida armamentista impulsiona a economia a entrar numa nova e longa onda de crescimento baseada numa nova ordem tecnológica. Glazyev sustenta que hoje esse período se está a encerrar com o salto da China e da Índia à liderança do desenvolvimento técnico e económico mundial, com base numa nova ordem tecnológica cujo núcleo é um complexo de tecnologias nano, bioengenharia, informação, digitais, aditivas e cognitivas.

Ao mesmo tempo, transita-se rumo a um sistema alternativo de gestão de desenvolvimento económico, cujo núcleo também radica no sudeste asiático, e como ocorre sempre nesses períodos, aponta Glazyev, a elite dirigente dos países centrais provoca uma guerra mundial para tentar manter a hegemonia intra-capitalista global.

No âmbito de uma estratégia planificada de provocar a histeria da população (russofobia), na conjuntura a elite plutocrática e militar estado-unidense está a executar una guerra híbrida informacional-cognitiva e monetária-financeira contra China e Rússia, para levar o caos a ambos países e também à Índia.

Michael Hudson e Sergey Glazyev concordam em que o recente confisco (roubo) do ouro e de 300 mil milhões de dólares em reservas estrangeiras russas em contas de custódia dos bancos centrais ocidentais – como ocorreu antes com a Venezuela, Iraque, Irão e Afeganistão −, junto com o assalto seletivo às contas bancárias de multimilionários russos, minaram o status do dólar, do euro, da libra esterlina e do yen como moedas de reserva global, o que acelerará o desmantelamento em curso da ordem económica global, uma vez que é pouco provável que algum país soberano continue a acumular reservas nessas moedas. O provável é que procurem substituí-las por moedas nacionais e ouro, ou uma nova moeda de pagamento digital fundada através de um acordo internacional.

A maioria das transações entre os países membros da União Económica da Eurásia já é denominada em moedas nacionais e se está a verificar uma transição semelhante no comércio com a China, Irão e Turquia; tendência que poderia incluir a Índia. De modo paralelo impulsiona-se o desenvolvimento de um sistema de pagamento digital não bancário, que estaria ligado ao ouro e outras matérias-primas negociadas em bolsa.

A crise dos preços da energia e dos alimentos – a Rússia e a Ucrânia são grandes exportadores de cereais − está a afetar os países do sul global. Mas também às economias dos EUA e Europa que têm de encarar o boicote ao gás russo, e além disso precisam de cobalto, alumínio, paládio e outras matérias-primas básicas que poderiam ser usadas pelo Kremlin como meio de pressão para remodelar a diplomacia e o comércio mundial.

A estratégia estado-unidense de utilizar a Ucrânia como cunha entre a Rússia e a China não funcionou. Em contrapartida, o aluvião de sanções contra Moscovo teve o impacto de reforçar a complexa integração integral das economias russa e chinesa, que poderia fortalecer-se com a articulação da Nova Rota da Seda de Xi Jinping e da União Económica Euro-asiática impulsionada por Putin.

Por sua vez, como assinalou Hudson, a diplomacia de força dos EUA esfregou na cara da União Europeia o seu abjeto servilismo, pelo que a próxima confrontação poderia verificar-se dentro de Europa, quando políticos nacionalistas tentarem liderar a ruptura da cortina de aço imposta pela Casa Branca para encerrar os seus satélites na dependência dos fornecimentos estado-unidenses de gás liquefeito com tarifas más altas.

Em definitivo, no quadro da fase atual de acumulação militarizada − como a chama William I. Robinson −, que em consequência do fornecimento maciço de armas à Ucrânia dispararam as ações de mega-corporações militares e de segurança estado-unidenses como a Raytheon, General Dynamics, Lockheed Martin, Northrop Grumman e Boeing, a manobra do Estado profundo que controla Joe Biden pode ser garantir que a Europa contribua mais para a NATO, compre mais material bélico ao complexo militar-industrial e se encerre mais na dependência comercial e monetária imposta pelos EUA.

Sem descartar que, tal como ocorreu historicamente com outros presidentes dos EUA, a administração Biden se envolva diretamente na guerra com finalidades eleitorais, ou utilize a Polónia e Roménia a fim de desestabilizar mais a envolvente ucraniana.

04/Maio/2022

Ver também:
  • Uma nova ordem monetária mundial confronta o ocidente
  • [*] Jornalista, uruguaio naturalizado mexicano. Ver biografia.

    O original encontra-se em La Jornada e em www.lahaine.org/mundo.php/ihacia-una-geoeconomia-bipolar

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    06/Mai/22