Os economistas e o um por cento
A análise económica da realidade
"Os deuses enlouquecem primeiro aqueles a quem querem destruir". E se
quiseram destruir economias, primeiro criaram uma classe rica no topo e
deixaram que a natureza humana fizesse o resto. O uso do poder rapidamente leva
ao seu abuso, à arrogância económica e social. Ao tentar
proteger os seus lucros, perpetua-se e torna hereditária a sua riqueza,
o aparecimento de uma elite do poder encerra-se na sua posição de
modo a excluir e a prejudicar os que estão em baixo. Os ricos
endividam-nos, atiram a carga fiscal sobre os menos poderosos e transformam o
governo numa oligarquia.
Esta é uma história antiga. Os gregos perceberam-no bem, ao verem
como o poder leva à arrogância, provocando a sua própria
queda. A arrogância é o vício da riqueza e do poder, um
exagero de insolência que implica o prejuízo dos outros. Ao
empobrecer a economia, destrói a fonte dos lucros, dos juros, dos ganhos
de capital, e até da recuperação das poupanças
originais e do principal da dívida.
O carácter abusivo da riqueza e do poder não é o que os
modelos económicos predominantes descrevem. É por isso que a
teoria económica está falida. O conceito de utilidade marginal
decrescente implica que os ricos ficam mais saciados à medida que ficam
mais ricos e daí menos viciados no poder. Esta ideia de saciedade
progressiva de lucros segue a direcção errada, negando o fio
condutor básico dos últimos dez mil anos de tecnologia e
civilização humanas.
A actual abordagem da oferta e da procura trata a economia como um
"mercado" duma forma puramente abstracta, na medida em que troca e
substitui uns pelos outros a quantidade dos bens (já produzidos), da
mão-de-obra (com uma determinada produtividade) e do capital (já
acumulado, sem explicar como). Esta abordagem não se preocupa em
aprofundar como é que as pessoas arranjaram o capital para o
"trocar" pela "mão-de-obra". Ainda por cima, esta
abordagem interpreta erradamente o crescimento tecnológico e a
experiência básica de negócios, ao assumir
condições de retornos decrescentes e utilidade marginal
decrescente. O resultado intelectual é um universo paralelo, cujo
critério para a excelência económica é pura e
simplesmente o círculo interno das suas premissas abstractas, e
não a sua realidade.
No seu recente livro
Economists and the Powerful
, Norbert Häring e Niall
Douglas mostram que a disciplina económica não entrou por este
caminho por acaso. Norbert Häring e Niall Douglas são organizadores
importantes da
World Economic Association
, que surgiu do movimento
Economia-Pós-Autista destinado a fornecer uma alternativa à
economia neoclássica e neoliberal predominante. (Häring é
co-editor da
World Economic Review
.) Para esse efeito, apresentaram uma grande quantidade de referências
que esclarecem como a economia se transformou num exercício de
propaganda de financeiros, latifundiários, monopolistas, pessoas no
interior do sistema, vigaristas e outros predadores de rendas que os
economistas clássicos tentaram tributar e eliminar através de
regulamentações. Este estado de coisas reflecte o pendor secular
destes parasitas para lutar contra a economia clássica, patrocinando
ficções em benefício próprio que os descrevem como
ganhando as suas fortunas, não por meios predatórios e
extractivos, mas contribuindo para os resultados como "criadores de
empregos".
Qualquer distribuição de riqueza e de receitas é tratada
como um equilíbrio que reflecte uma escolha voluntária, sem se
examinarem as estruturas organizativas e sociais da contratação
de postos de trabalho, da produção e da
distribuição. Os autores fornecem um antídoto a esta
visão periférica, apontando para as verdadeiras mãos
invisíveis em acção: negócios internos, manobras
contra a força de trabalho e contra sindicatos, pilhagem e fraude
desenfreadas. O que eles entendem por 'poder' é os empregadores
contratarem fura-greves, organizarem grupos de pressão para obterem
favores especiais e negócios internos, e apoiarem as campanhas
eleitorais de legisladores comprometidos para agirem a favor dos um por cento.
Criticando a teoria dos manuais, sublinham que a maior parte da
produção tem retornos crescentes. Os custos unitários caem
à medida que o investimento do capital fixo se alarga a uma
produção maior. Enquanto produtor com um custo marginal
praticamente de zero a Microsoft, por exemplo, obtém uma renda crescente
sobre a propriedade intelectual por cada programa vendido. A um nível de
economia ampliada, aumentar o salário mínimo permitiria à
maior parte das empresas beneficiar de retornos acrescidos, aumentando a
procura.
As empresas usam a alavanca política para garantirem que árbitros
anti-trabalho sejam nomeados para os tribunais e arenas que dirimem disputas
sobre o emprego, condições de trabalho e despedimentos. As
indústrias de capital intensivo entregam a terceiros tarefas pouco
especializadas a fornecedores de pequena escala que utilizam mão-de-obra
não sindicalizada. A privatização de empresas
públicas também tem em grande medida a intenção de
quebrar o poder da força de trabalho sindicalizada. A teoria marginal da
oferta e da procura implica que cada trabalhador adicional que é
contratado aumenta as taxas salariais, obrigando os negócios a oporem-se
a políticas de pleno emprego a fim de manter os salários baixos,
mesmo que isso limite o mercado para a sua produção.
Portanto, a tecnologia e as condições decrescentes não
são a razão pela qual os salários têm vindo a
diminuir ou pela qual os custos financeiros e outros, não
produtivos, têm vindo a subir na maior parte das economias ocidentais.
Estes aumentos de custos são provocados pelos encargos da dívida
para aquisições por empréstimos
(leveraged buyouts)
e pelos assaltos corporativos, mais os salários, bónus e
opções de acções dos executivos. A
mão-de-obra também enfrenta custos de vida mais altos em
consequência da crescente dívida hipotecária
contraída para a habitação, empréstimos a
estudantes para obter um curso como pré-condição para o
emprego da classe média, e dívidas de cartões de
crédito para manter os padrões de consumo, e crescentes
retenções no salário para a Segurança Social e
Medicare à medida que os impostos se tornam regressivos. Este
serviço de dívida pessoal (incluindo os custos da
habitação) e diversos impostos absorvem mais de dois
terços do ordenado comum. Por isso, mesmo que os trabalhadores
não tivessem que comprar quaisquer dos bens e serviços que
produzem alimentos, vestuário e outras necessidades
básicas de consumo mesmo assim, não podiam competir com a
mão-de-obra de economias menos financiarizadas e livres do encargo de
dívidas.
A nível corporativo, a engenharia financeira está mais virada
para aumentar os preços das acções do que para novos
investimentos em capital tangível. Mesmo isso não está a
ser feito de forma a servir o interesse dos accionistas a longo prazo ou da
economia em geral. Häring e Douglas fazem uma análise demolidora
que denuncia o pagamento de opções de acções como
"motivação" para os gestores. Os gestores maximizam o
valor dessas opções gastando as receitas corporativas em compras
de acções em vez de novos investimentos directos para alargar os
seus negócios. Pior ainda, as companhias pedem emprestado para comprar
as suas acções ou mesmo para pagar dividendos a fim de fazer
subir o seu preço. O "capital" neste ganho é
financeiro, não é industrial. Também acontece ser
anti-mão-de-obra, na medida em que a carga das dívidas das
companhias permite que os assaltantes corporativos utilizem a ameaça da
bancarrota para exigir reduções nas pensões e nos
benefícios salariais.
O problema com o planeamento financeiro é o seu curto intervalo de
tempo, o toca-e-foge, destinada a extrair receitas em vez de aproveitar o tempo
para investir em nova produção e desenvolver mercados. Escondendo
esta estratégia de curto prazo com ficções de
contabilidade
"mark to model"
ao estilo Enron, os gestores agarram no dinheiro e fogem, deixando atrás
de si os resíduos da bancarrota.
A alavancagem da dívida é encorajada tributando os lucros dos
preços dos activos a taxas muito mais baixas do que os ganhos
(salários e lucros) e permitindo que os juros sejam dedutíveis
aos impostos. Este subsídio fiscal não é de modo algum uma
característica inerente aos mercados. Reflecte a conquista da
política de tributação pelo sector financeiro, juntamente
com a conquista reguladora que impede a fiscalização do governo
de modo a poder fazer fortunas através da
desregulamentação, da privatização, e da
popularização da ideia de que a economia pode enriquecer
através do endividamento. A doutrina liberal demoniza o governo como o
único poder capaz de regular e tributar receitas não ganhas e de
agir contra fraudes. Isso inverte a ideia de mercados livres em
relação ao significado clássico de mercados livres de
rendas económicas não ganhas, para deixar a arena actual livre
para os rentistas predatórios.
Esta estratégia é coroada pelo poder para censurar. A
descrição enganosa e ilusória da economia apresentada
pelos financeiros, especuladores do imobiliário e monopolistas é
esconder cuidadosamente o seu próprio comportamento. É este o
supremo poder da actual teoria económica dominante: moldar a imagem que
as pessoas têm da economia. O ponto de partida é desviar o
público de observar (e, portanto, regulamentar ou tributar) as
estruturas de poder do mundo real em funcionamento. Preferem tornar-se
invisíveis, acima de todo o poder financeiro, para endividarem a
economia. Afinal de contas, foi através de meios financeiros que as
finanças comutaram o planeamento económico das mãos do
governo para a Wall Street e para centros bancários semelhantes no
estrangeiro.
Os grupos de pressão a favor dos 1% popularizam a visão de que a
economia actual é de facto um produto natural e inevitável da
evolução darwiniana. Conforme Margaret Thatcher afirmou:
Não Há Alternativa (TINA). Esta estreiteza de vistas é
reforçada por uma política censória: "Se o olho te
ofende, arranca-o". Häring e Douglas descrevem o processo
académico de arrancar quaisquer olhos ofensivos que possam introduzir
mais realismo quando se trata de comportamento predatório e de procura
de rendas.
A principal directiva é descrever o planeamento financeiro como melhor
do que o das instituições públicas. Em contraste com o
aval da Era Progressista de manter baixos os custos das infra-estruturas, o
sector financeiro procura privatizar as empresas públicas a
crédito, de preferência e a preços de
aflição, para criar novas fortunas a partir dos
privilégios da extorsão de rendas. A tarefa da actual teoria
económica preponderante, conforme o autor a descreve, é desviar
as atenções do carácter explorador e tecnologicamente
desnecessário dessa procura de rendas. Balzac foi mais realista, ao
observar que, por detrás de toda fortuna familiar existe um grande
roubo, normalmente há muito esquecido.
Concentram-se no poder interno em vez de identificar a dimensão
internacional de como é exercido o poder económico. O FMI, o
governo dos EUA e a burocracia da União Europeia exercem a alavanca da
dívida externa para impor o Consenso de Washington neoliberal. É
assim que a "troika" europeia impõe a austeridade na
Grécia ao substituir o governo democrático por
"tecnocratas" cujas políticas servem os 1% na actual guerra de
classes. Esta via leva, fatalmente, aos assassínios programados com que
os Rapazes de Chicago impuseram o seu "mercado livre"
cleptocrático no Chile com Pinochet, elaboraram através da
Operação Condor os assassínios de líderes
sindicais, reformadores agrários e padres e freiras da Teologia de
Libertação em toda a América Latina e nos próprios
Estados Unidos. Mas eu percebo que os autores tenham tido que traçar
algures a linha entre economia e táctica militar, concentrando-se na
teoria económica lixo do mercado livre.
A alta finança tornou-se o modo moderno da guerra. Depois de endividar
os países, os credores pressionam para privatizar monopólios
naturais e criar novos direitos monopolistas para si próprios. Têm
como objectivo o que as forças militares tiveram em tempos passados, mas
com um custo mais baixo. É mais barato apoderar-se de terras
através de penhoras do que através da ocupação
armada, e obter direitos às riquezas minerais e infra-estruturas
públicas "tramando" as nações através da
dívida. As populações submetidas não
reagirão enquanto puderem ser convencidas a aceitar a
ocupação como um acontecimento natural e até mesmo
útil.
No final, chegamos à arrogância a nível internacional. As
dívidas crescem a uma taxa exponencial (o Milagre do Juro Composto),
tornando o êxito financeiro absorver tudo de tal modo que os
impérios avançam para a sua própria derrota. É esta
a trágica debilidade tanto da alta finança como da conquista
militar.
O exagero militar foi o que obrigou os agressores a mudar para o modo
financeiro de conquista. Para os economistas que procuram o conforto baseando a
sua disciplina na física, o paradigma relevante é a Terceira Lei
do Movimento, de Newton, aplicada à política do poder
internacional: Toda a acção cria uma reacção igual
e oposta. As partes exploradas são impelidas a afastar-se ou irem
à falência.
A decadência propaga-se a partir do próprio núcleo
financeiro imperialista à medida que os predadores usam o seu
espólio financeiro estrangeiro para dominar a população
interna, polarizando e empobrecendo a economia e destruindo assim o mercado
interno. É esta a história do declínio e queda do
Império Romano, e vai continuar a ser o modelo económico
padrão. Um "mercado" assim é auto-destrutivo.
10/Dezembro/2012
[*]
O livro
The Bubble and Beyond
resume as teorias económicas de Michael Hudson.
O seu último livro é
Finance Capitalism and its Discontents
.
O original encontra-se em:
http://www.counterpunch.org/2012/12/10/reality-economics/
. Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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