Pensões estaduais, locais e privadas estão em causa

A próxima grande salvação

por Michael Hudson [*]

Cartoon de Mark Hurwitt. O grande combate económico da nossa época está a ser travado pelo sector FIRE – Finance, Insurance and Real Estate (Finanças, Seguros e Imobiliário) – contra a economia industrial e os consumidores. O seu objectivo é maximizar os preços da propriedade e o volume de dívida em relação ao que o trabalho e a indústria podem render.

O aumento das dívidas e dos preços dos imóveis caminham em conjunto, porque os preços dos activos dependem de quanto os bancos emprestarão. Para os credores, o sonho é obter um apoio de retaguarda a expensas do público: um seguro governamental de que não perderão quando os devedores forem incapazes de pagar. O problema político é como conseguir que o governo segure e proteja os banqueiros ao invés dos devedores, uma vez que os devedores são muito mais numerosos quando se chega à cabine eleitoral. Nestes casos, as contribuições de campanha são o factor de equilíbrio. Os governos são "privatizados" e "financiarizados", isto é, transformados de democracias em oligarquias. O sistema bancário pretende garantir que os únicos perdedores sejam os clientes que ele é suposto servir: devedores, proprietários de casas e empregados de companhias a serem "financiarizadas" quando a economia é desindustrializada. Na verdade, financiarização e desindustrialização estão a tornar-se quase sinónimos. O truque consiste em fazer com que os eleitores pensem que estão a ficar ricos quando realmente estão a ser encurralados numa dívida, juntamente com os seus patrões, governos locais e também o governo federal.

Por um momento a sobrecarga de dívida podre pode ser contornada pela criação de ainda mais dívida, apoiada por garantias públicas naquilo que mesmo o Wall Street Journal reconhece ser "socialismo para os ricos", isto é, privatizar o lucro e socializar as perdas. Mas quando algum governo fez algo diferente, durante os milhares de anos anteriores à cunhagem da palavra "socialismo"? A chamada "lei da habitação" ("housing bill") de 30 de Julho apoia o preço de hipotecas que hoje constituem o principal activo de base da maior parte dos bancos e de outras instituições financeiras. O que em última análise suporta o preço destes pacotes de hipotecas é o preço do imobiliário comprometido como colateral. E apesar de o sr. Greenspan ter celerado a ascensão dos preços da habitação como "criação de riqueza", aquilo era realmente criação de dívida. Quando os preços da habitação afundam, as dívidas permanecem intactas.

A questão é saber de quem são as folhas de balanço que vão afundar no território da situação líquida negativa – os dos endividados proprietários de casas ou os dos bancos que fizeram maus empréstimos e as instituições financeiras (em grande parte fundos de pensão, lamento dizê-lo) que compraram "hipotecas tóxicas"?

As bolhas financeiras na sua primeira fase incham os preços dos activos mais rapidamente do que as dívidas ascendem. Isto ajuda o sector financeiro a estimular a crença de que a poluição da dívida é um meio rápido de tornar a economia rica – na medida em que se olha para balanços financeiros ao invés de detectar o crescimento dos meios reais de produção e dos padrões de vida. Vivendo no curto prazo, a maior parte das pessoas não vê a guerra financeira avançar, e imaginam que finanças e indústria, trabalho e capital estão a combater pela mesma espécie de crescimento económico e de riqueza. A realidade é um conflito entre objectivos de crescimento financeiro e industrial, sujeito à máxima de que a solução de todo problema tende a criar novos, problemas imprevistos – daqueles que muitas vezes são de maior escala, a exigir ainda novas soluções que provocam ainda maiores e ainda mais imprevistos. É assim que as sociedades transformam-se a si próprias para o melhor ou para o pior, de crise em crise.

Habitualmente cada lado combate pelos seus interesses económicos. Mas é melhor não cacarejar demasiado alto sobre vitória. Esta salvação financeira é pintada como uma lei da habitação, não como uma dádiva aos interesses financeiros. E é melhor não reconhecer que a vitória do sistema financeiro ameaça agora empurrar a economia mais uma vez para o caminho da insolvência, a começar por um esmagamento das finanças dos estados e locais, e dos fundos de pensão públicos e privados. Os problemas tornam-se mais ameaçadores também quando os credores obtêm uma vitória unilateral.

Eis o que se passou até agora. Na manhã de 30 de Julho, o presidente Bush assinou a lei que o Senado havia aprovado numa sessão especial no sábado anterior. Seu objectivo era restaurar os preços da habitação nos EUA para níveis incomportavelmente elevados, exigindo que os novos compradores incidissem ainda mais profundamente em dívidas a fim de obter habitação. Ao invés de reverter as dívidas para níveis mais comportáveis, o governo agora utilizará seu próprio crédito para garantir o pagamento sobre não importa que parcela da impagável dívida em crescimento exponencial que não pode ser sustentada pelo conjunto da economia.

LEI DA DÁDIVA AO SECTOR FINANCEIRO

A nova "lei da habitação" (um título mais honesto teria sido "lei da salvação financeira e da dádiva de 2008") autoriza o Tesouro e o Federal Reserve Board a fornecer crédito ilimitado à Fannie Mae e ao Freddie Mac, e instila novo poder para a concessão de empréstimos à Federal Housing Administration (FHA) e às localidades a fim de apoiar o "mercado imobiliário". Isto é um eufemismo para salvar os prestamistas hipotecários da resposta tradicional à queda de preços da propriedade – incumprimentos e fugas. A ideia é empréstimos do governo substituírem os maus empréstimos em que estão cravados os possuidores existentes de hipotecas, e fazer isso antes que os preços da propriedade afundem outros 25 por cento.

O texto destacado na primeira linha do comunicado de imprensa dizia que a nova lei "destina-se a proporcionar alívio às hipotecas para 400 mil proprietários de casas em dificuldades nos EUA e estabilizar os mercados financeiros". O objectivo real é ajudar bancos e investidores institucionais em dificuldade, com pouca probabilidade de ajuda aos proprietários de casas. Os incumprimentos de hipotecas e os arrestos estavam a ameaçar liquidar as avaliações dos colaterais para os empréstimos empacotados e vendidos a fundos de pensão estado-unidenses, a outros investidores institucionais e a bancos estrangeiros – incluindo os US$1 milhão de milhões de acções e obrigações da Fannie Mae e do Freddie Mac em bancos centrais estrangeiros e fundos de riqueza soberanos.

Furando a nuvem da retórica de relações públicas, o impacto real sobre devedores de hipotecas sem dinheiro é que o financiamento acrescido à Fannie Mae, ao Freddie Mac e à FHA constituem parte de uma oferta de emergência de US$1,4 milhão de milhões de crédito governamental destinada a impedir os preços da habitação de retrocederem a níveis mais comportáveis. Uma utilização alternativa deste financiamento teria sido salvar devedores individuais do arresto e reajustar suas hipotecas em níveis mais realistas. Mas o "eleitorado" do Tesouro e da Reserva Federal é a Wall Street, não os proprietários das casas. Não se trata de um "eleitorado" cujos interesses reflictam os da economia como um todo a longo prazo.

As finanças e o imobiliário extraem juros e rendas do resto da economia, contraindo-a ao invés de expandi-la. Isto leva os preços da propriedade a caírem. Os especuladores (os quais fabricaram cerca de 15 por cento do mercado habitacional nos últimos anos – um em cada seis compradores) pararam de comprar, enquanto uma super-oferta de propriedades arrestadas ou abandonadas chegou ao mercado. Preços cadentes empurram os proprietários de casas alavancadas pela dívidas a uma situação líquida negativa, seguidos pelos bancos e pelos infelizes compradores das hipotecas que eles venderam.

Durante a bolha imobiliária os proprietários de casas, especuladores comerciais e atacantes corporativos eram capazes de tomar emprestado os encargos de juros através do refinanciamento das suas propriedades a avaliações cada vez mais altas. Mas os bancos agora estão a retirar-se da concessão de empréstimos hipotecários, em grande parte porque compradores de hipotecas empacotadas descobriram-se enterrados em papéis que estão muito longe da segurança que indicavam os seus títulos classificados como AAA. As companhias que seguraram estas hipotecas estão demasiado subcapitalizadas para cobrir os riscos, e elas próprias estão ameaçadas de bancarrota. Assim, os empacotadores e seguradores de hipotecas Fannie Mae e Freddie Mac estão a ser mantidos no negócio para "salvar o mercado imobiliário", expressão esta que significa crescimento exponencial da dívida.

As partes que estão a ser salvas são as grandes instituições que possuem as hipotecas podres concedidas e empacotadas nos últimos anos, e companhias "enganchadas" por terem segurado o valor facial destas hipotecas. O crescimento da dívida imobiliária foi atingido porque as semi-púlbicas Fannie Mae e Freddie Mac proporcionaram "liquidez" não apenas com a compra de hipotecas a outras companhias e seu empacotamento em grande escala como também assegurando seus fluxos de rendimentos. Como destaca William Poole, responsável do St. Louis Federal Reserve Banc de 1998 a 2008, "a Fannie e o Freddie existem para proporcionar garantias a títulos apoiados por hipotecas comercializados no mercado. O negócio é simplesmente de seguros". Este seguro contra o incumprimento dos hipotecados (e em última análise contra bancos e corretores de hipotecas que concederam maus empréstimos a compradores de casas que não tinham capacidade para pagar) é o que tornou as suas vendas tão irresponsavelmente líquidas. E o assunto atingiu o ponto em que se espera que dois a três milhões de proprietários de casas estado-unidenses entrem em incumprimento este ano, o que leva a arrestos.

DUPLICAÇÃO DA DÍVIDA FEDERAL

O sr. Poole acrescenta que a assunção pelo governo das hipotecas subscritas e garantidas por estas duas agências públicas tecnicamente duplica a dívida federal, de US$5 para US$10 milhões de milhões. O lado do activo no balanço do governo também sobe, mas pode aí haver uma falha substancial. Os possuidores privados de títulos e acções da Fannie e do Freddie também têm reivindicações sobre estes activos, de modo que qualquer tentativa de contabilidade do mundo real torna-se totalmente confusa.

Um problema mais profundo é que a Fannie e o Freddie subscreveram e seguraram um aumento de dívida cujo contínuo crescimento exponencial é insustentável, porque provoca deflação interna da dívida. O que o sr. Greenspan chamava "criação de riqueza" – inchando os preços do mercado de habitação e de acções a crédito – era realmente criação de dívida. Os preços dos activos são uma função de quanto os bancos emprestarão. Se eles emprestarem mais dinheiro em termos cada vez mais facilitados, os preços da propriedade continuarão a subir. Esta é a razão porque a economia está a enfrentar deflação da dívida. Cada vez mais dinheiro será desviado do gasto no consumo e pagamento de impostos, a fim de pagar credores. Isto contrairá o mercado interno, esmagando lucros, e esmagará também as finanças estaduais e locais.

O governo não resolverá este problema providenciando ainda mais empréstimos para os participantes mais fortes comprarem a oferta existente de casas que de outra forma seriam arrestadas. O sonho é manter altos os preços da habitação para suportar os prestamistas hipotecários, não para os preços caírem de modo a que novos compradores não precisem incidir tão pesadamente em dívidas a fim de arcar com a habitação.

Suportar os preços imobiliários implica portanto manter o volume existente de dívida contabilizada, e na verdade em incorrer em ainda mais dívida. Isto impõe um enorme encargo sobre a economia a fim de pagar juros e amortizações. Estes pagamentos deixam menos dinheiro disponível para ser gasto em bens e serviços ou pagamento de impostos. A economia retrai-se, deixando-a ainda menos capaz de arcar com o fardo da sua dívida. Muitos indivíduos sem dúvida incumprirão com a dívida dos seus cartões de crédito, do seu automóvel e outras, mas a maior dívida restante consiste em obrigações de pensão e de cuidados de saúde para o sector da força de trabalho privada e pública.

Este problema tem crescido mas é ignorado pela maior parte dos media públicos. As pensões do sector privado são seguradas pelo organismo federal Pension Benefit Guarantee Corporation (PBGC), o qual está substancialmente subcapitalizado. Um problema muito maior é o dos programas de pensão estaduais e locais, que não só subfinanciados – eles não tem seguro de todo. A expectativa era que as pensões do sector público seriam pagas com as receitas fiscais decorrentes da propriedade e com ganhos de capital. Mas lançar impostos sobre a propriedade agora ameaça provocar incumprimentos nos pagamentos de hipotecas. Este é o apuro no qual a economia se enfiou ao tentar preservar o crescimento exponencial da dívida hipotecária.

Para coroar o assunto, isto ameaça impelir os orçamentos estaduais e locais para o défice num momento em que os seus pagamentos de pensões e seguros médicos estão a subir. No lado da despesa dos seus balanços, as localidades devem gastar mais dinheiro a lidar com as consequências de casas vazias a serem despojadas de materiais de construção, ocupadas por pessoas sem abrigo, incendiadas e em geral a tornarem-se uma fonte de mazelas. Do lado das receitas fiscais, estados e localidades estão a enfrentar pressão política populista arquitectada pelos grandes interesses imobiliários e promovida com o fluxo habitual de lágrimas de crocodilo em prol dos aposentados e outros proprietários de casas cujo esmagamento pela dívida os leva a apoiar políticos que prometem reduzir impostos sobre a propriedade.

À primeira vista, a conexão entre salvar a Fannie Mae e, por trás disto, manter preços elevados no mercado imobiliário para os proprietários de casas americanos pode não parecer estreitamente ligada aos planos de pensão corporativos, estaduais e locais. Assim, vamos rastrear essa ligação. A salvação dos prestamistas hipotecários em última análise deve ser alcançada a expensas de receitas fiscais estaduais e locais sobre a propriedade. Receitas que são utilizadas para pagar juros não estão disponíveis para pagar impostos. Se as dívidas continuam a crescer exponencialmente e a extrair mais encargos com juros, isto força uma guinada fiscal para o trabalho e a indústria.

Durante o último século o sector financeiro fez incursões constantes a fim de capturar o que costumava ser o papel do governo. A retórica libertária anti-fiscal do "mercado livre" é simplesmente uma cobertura para a substituição do governo democrático eleito pelo sector financeiro. O planeamento prospectivo está a ser distorcido a fim de servir o sector financeiro, não com o objectivo do crescimento a longo prazo e da elevação dos padrões de vida, e certamente não para proteger a posição fiscal do sector público.

Uma das disposições menos conhecidas da salvação imobiliária desta semana é o endosso de "hipotecas negativas". Estes acordos de dívida acrescentam o acúmulo de juro ao principal. A estória de encobrimento é que isto permite aos proprietários de baixo rendimento manterem suas casas com um serviço de dívida (carrying charge) mais baixo, tomando emprestado o juro ao invés de pagá-lo. Mas isto significa que o que costumava acumular para o proprietário como um ganho de "capital" (preço do terreno) doravante acumulará para o prestamista hipotecário. Durante mais de um século, o principal meio pelo qual a maior parte das famílias americanas enriqueceu foi através do almoço gratuito dos preços da terra em ascensão exponencial. Agora, o que está para ascender exponencialmente nos próximos anos é a sobrecarga da dívida. É o sector financeiro que ficará com o almoço gratuito dos ganhos do preço da terra.

Somar o encargo dos juros ao principal é o princípio de funcionamento dos esquemas Ponzi. Eles não podem funcionar por muito tempo, porque nenhuma economia real pode aguentar "a mágica do juro composto". O plano de salvação Bush-Paulson convida as hipotecas a tornarem-se cada vez maiores, pouco importando se os preços da propriedade mantêm o mesmo ritmo. O juro é para acumular para o governo federal como principal credor hipotecário, mas esta inovação é realmente um teste. É o caminho de menor resistência para bancos privados começarem a fazer empréstimos hipotecários que lhes dão um retorno na forma de ganhos de "capital", além dos juros.

Estes ganhos consistem na inflação dos preços da terra nos casos em que os governos estaduais, locais e federal deixarem de capturá-los para a economia como um todo. Assim, o esquema obrigou o sector público a voltar-se para outro lado que não a propriedade a fim de obter receitas – nomeadamente, para os consumidores e a indústria.

Quem está em vias de não ser pago: banqueiros e possuidores de títulos ou pensionistas?

Dos balanços das corporações para as crises fiscais dos estados e municípios de hoje, o que parece à primeira vista serem problemas de pensões e Segurança Social revela-se ser um problema de financiarização (da dívida). Numa tentativa de maximizar desembolsos de dividendos, companhias nas indústrias automobilísticas, siderúrgicas, aviação e outras fizeram uma negociação com o trabalho a fim de tomar os seus salários sob a forma de pensões e pagamentos de cuidados de saúde diferidos. E o trabalho – vendo a uma distância muito maior do que os administradores financeiros das corporações – optou por diferir os últimos.

No caso das pensões do sector público, o problema é a ideologia anti-fiscal promovida pelo sector financeiro, o qual prefere que o governo tome emprestado dos ricos do que os onere fiscalmente. Cidades, desde Nova York a San Diego, preferiram não elevar impostos mas prometer aos empregados do sector público rendimento futuro de aposentadoria e cuidados de saúde. Tal como empresas, elas optaram por financiar seus orçamentos pela tomada de empréstimos, ou seja, pela emissão de títulos ao invés de cobrarem seus impostos tradicionais sobre a propriedade. Em suma, elas preferiram tomar emprestado dos ricos ao invés de lhes cobrar impostos.

Os emissores de títulos corporativos e públicos destacam que não há suficiente rendimento para pagar todos os pretendentes (claimants). Mas ao invés de culparem os prestamistas por efectuarem empréstimos a serem pagos pelo retalhamento e liquidação de activos ao invés de mais produção, os lobbies financeiros estão a adoptar uma posição neo-maltusiana. Estão a acusar o esmagamento de custos do sector corporativo e público com obrigações de pensão como uma decorrência do facto de se ter prolongado a vida das pessoas. O número de aposentados por empregado ou contribuinte está a aumentar – e a muito louvada ascensão da ciência, da tecnologia e da produtividade não é suposta ser capaz de arcar com esta carga extra.

Ou melhor, as economias não podem arcar com esta carga e também pagar serviços de dívida em ascensão exponencial e mais taxas de administração do dinheiro. Mas esta lógica de culpabilização da vítima ignora o facto de que as dívidas de hoje – e os preços da propriedade – estão a crescer a juros compostos, para além da capacidade das economias de produzir um excedente económico líquido para pagá-las. Alguma coisa tem de ceder. Para o sector financeiro, o que tem de ceder é o salário dos trabalhadores, os lucros da indústria e o poder fiscal do governo.

Nós nos envolvemos nesta confusão por dar isenções fiscais especiais ao imobiliário e às finanças a expensas do trabalho e da indústria, e distorcendo o sistema fiscal em favor do endividamento em detrimento da situação líquida. Administradores financeiros e políticos conformaram-se por viverem no curto prazo. O trabalho não exigiu que o governo assumisse a responsabilidade pelo que é habitualmente concedido aos empregados e aposentados na maior parte dos países civilizados: um rendimento vital e cuidados de saúde. Ao invés disso, tanto o trabalho como o patronato atribuíram esta responsabilidade ao próprio sector privado. É um custo a que outros países são poupados — o de ter de "financiarizar" por pré-poupanças na forma de especulação financeira, para pagar pensões e cuidados de saúde a partir de ganhos de capital que são assegurados pelos cortes fiscais do governo a fim de deixar mais lucros e outras receitas para capitalizar em empréstimos ainda mais elevados para elevar os preços dos activos. Todo o desvio da financiarização acrescentou um vasto custo de não produção a expensas de fazer negócios e contratar trabalho na América. Para colocar a questão directamente, nós tomámos um caminho errado — mas dificilmente alguém com autoridade explica como refazer nossos passos para escapar ao actual dilema.

Enquanto se acreditar que o governo só pode aumentar o desperdício geral — e que o sector financeiro pode apenas "economizar", tornar a economia mais eficiente — haverá pouca motivação para procurar uma alternativa. Sem dúvida, alguém pode apontar exorbitantes dádivas de reforma tais como os acordos de pensão da Cidade de Nova York para trabalhadores dos transportes públicos, polícias e bombeiros. Seus sindicatos obtiveram direitos de pensão e de cuidados de saúde substancialmente superiores àqueles da força de trabalho em geral. Mas tais desvios da norma são inevitáveis num sistema em que pensões e cuidados de saúde são relegados a negociações companhia por companhia, cidade por cidade, estado por estado ao invés de serem negociados a nível nacional como no caso das social democracias. A situação é a mesma com impostos negociados a nível local. Companhias e investidores imobiliários jogam estados e cidades umas contra as outras a fim de extrair isenções fiscais especiais para se localizarem nas suas áreas. O lobbying político e a negociação de bastidores tornou-se comum sob tais condições.

Na raiz dos problemas da América com pensões e cuidados de saúde está uma oposição ideológica aos serviços públicos e à tributação a nível nacional. Nas sequência da II Guerra Mundial, as corporações opuseram-se à "medicina socializada". Dessa forma, relegava-se às empresas o pagamento de cuidados de saúde a partir dos seus rendimentos ao invés de deixar o governo organizar e pagar pelos mesmos com base na fiscalidade geral. Isto provavelmente fazia sentido para os grupos de interesses quando arcavam com a parte mais pesada da tributação progressiva. Mas eles parecem não ter notado que esta atitude agora deixou de ser do seu interesse uma vez que as famílias mais ricas transferiram os seus impostos para os escalões mais baixos. A General Motors recentemente protestou alegando que os cuidados de saúde custavam mais dinheiro por automóvel do que o aço. Mas alguém deve pagar pelos cuidados de saúde e a aposentação. Se não for o governo, então quem – além do empregador? Assim, é desejável simplesmente saber o que a General Motors quer mais: o luxo de uma obsoleta retórica anti-bolchevique, ou fazer os consumidores pagarem pelos seus cuidados de saúde e Segurança Social com "pagamentos pelo utilizador" sem que os escalões fiscais elevados assumam a responsabilidade que tomam em países com sistemas fiscais mais progressivos.

Em retrospectiva, aparentemente aquelas companhias não actuam no seu próprio interesse quando insistem em assumir para si próprias a responsabilidade de proporcionar cuidados médicos cujo preço disparou, em grande parte porque a própria profissão médica foi capturada por organizações de administração da saúde financiarizadas do sector dos seguros (um elemento cada vez mais próspero do sector FIRE). Elas colocaram os médicos e também os pacientes a rações – pagamento-por-serviço no caso de médicos, e cuidados racionados para os infelizes segurados. E isto é suposto ser a alternativa de livre mercado ao planeamento centralizado!

A explicação para as companhias actuarem deste modo tem de ser encontrada na era da tributação progressiva. Mais de dois séculos da análise económica clássica mostrou a lógica de tributar a riqueza predatória (propriedade da terra, direitos de monopólio e obrigações de pagamento sobre a economia) ao invés do trabalho e da indústria. O objectivo era tributar todas as formas de rendimento que não fossem necessárias para que a produção se verificasse. Acima de tudo estavam direitos à terra, a qual é proporcionada pela natureza, com a finalidade de cobrar um pagamento de acesso, e outros direitos à propriedade extractiva e encargos financeiros postos no topo do que realmente precisa ser gasto na produção.

O primitivo rendimento fiscal arrecadava este rendimento que não vinha do trabalho e sim de outras actividades ("unearned income"). As classes ricas portanto opunham-se ao fornecimento de serviços, incluindo cuidados médicos e também infraestrutura básica, numa época em que elas eram as partes principais a serem tributadas. Mas por serem escleróticas e rígidas, as classes rentistas não efectuaram uma mudança das suas atitudes em relação ao serviço público quando se libertaram da tributação. Desde que os Estados Unidos promulgaram o seu primeiro moderno imposto sobre o rendimento, em 1913, as finanças e os seus principais clientes – imobiliário e monopólios – têm feito lobby a fim de distorcer o código fiscal a fim de tornar os seus ganhos isentos de impostos. Ao invés de declarar rendimento tributável, eles contam como um custo de produção os juros e a super-depreciação do imobiliário, bem como pagamentos a abrigos ("shells") corporativos em centros offshore para evitar impostos. Os sectores das finanças e da propriedade também obtêm os seus retornos na forma de ganhos de capital ao invés do que como lucros, comerciando através de hedge funds financeiros cuja receita é tributada à metade da taxa do rendimento normal.

Os 1% mais ricos obtêm seus retornos na forma de dividendos (bonuses), não de salários, e desfrutam de um ponto de corte de apenas US$102 mil na Segurança Social do Federal Insurance Contributions Act (FICA) e nas retenções de salários do Medicare. Quando os editoriais do Wall Street Journal asseveram que os 1% mais ricos ganham "apenas" uma pequena porção do rendimento tributável, tudo o que isto significa realmente é que uma porção decrescente dos seus retornos económicos são considerados sujeitos ao imposto sobre o rendimento. O crescimento da riqueza assume uma forma não classificada como "rendimento". Entretanto, a riqueza herdada é a grande escapatória de todos os tempos para evitar ter de pagar ganhos de capital que se acumularam no imobiliário e em outros activos que subiram de preço.

Se as classes rentistas actuarem com flexibilidade, elas verão que quando se livraram do seu fardo fiscal nacional, estadual e local chegou o momento de "socializar os riscos" como um disfarce do verdadeiro socialismo com a transferência dos custos de pensões e cuidados de saúde para fora das empresas e localidades e em direcção ao governo federal. Afinal de contas, uma vez que o trabalho e os consumidores estão a pagar a fatia do leão dos impostos, não será correcto estender gastos públicos para que tomem áreas de custo até agora suportados por negócios empresariais e outros empregadores do sector privado? Isto promete ser o próximo grande combate político.

Mas a vozearia dos slogans ideológicos morre vagarosamente, os negócios corporativos e o sector financeiro continuam a opor-se a um governo excessivamente grande ("big government") mesmo quando eles estão fiscalmente desonerados (un-taxed). Este é o problema com os grupos de interesses: eles vivem só para si próprios no curto prazo. A mentalidade financeira é oportunista ("depois de mim, o dilúvio"), pouco se importando com o futuro. O trabalho não pode desfrutar deste luxo. Ele precisa considerar como irá viver após os seus anos de trabalho e quando os cuidados de saúde se tornarem uma despesa crescente. Esta perspectiva envolve uma visão económica a distância mais longa e um contrato social.

Enquanto isso, os impostos sobre a propriedade continuam a ser reduzidos gradualmente como base para as finanças estaduais e locais. A fronteira fiscal está a ser comutada para o rendimento e tributo sobre vendas, que caem sobre consumidores e não sobre o status fiscal preferencial da alta finança e da propriedade. Durante muitos anos, a tendência política para desonerar fiscalmente o imobiliário levou cidades como San Diego e estados inteiros como Nova Jersey a pagarem a sua força de trabalho na forma de obrigações de aposentação e cuidados de saúde ao invés de salários correntes, enquanto tomavam emprestado dos ricos ao invés de tributá-los. O rendimento até agora pago como imposto sobre a propriedade estava disponível como caução aos banqueiros por empréstimos para comprar propriedades com preços em ascensão pois não eram tributadas.

Tudo isto foi loucura fiscal e económica de um ponto de vista mais amplo e a longo prazo – não a loucura das multidões, mas aquela do sector financeiro e dos seus lobbies. O resultado foi uma tendência que não pode perdurar. Mas ao terem conseguido libertar-se da tributação da riqueza e do rendimento, os grupos de interesses das finanças e da propriedade evidentemente acreditam que podem estender o mesmo truque mais uma vez e libertarem-se da obrigação de cumprir as promessas de pensões e cuidados de saúde que os empregadores corporativos e do sector público fizeram à sua força de trabalho.

Tal evasão exige uma retórica populista. A doutrina malthusiana funcionou bem dois séculos atrás, então por que não tentar outra vez? Culpar o crescimento populacional – neste caso, não a tendência dos pobres para terem mais filhos, mas a capacidade dos empregados para viverem para além da idade de aposentadoria pois eles eram supostos morrer se se tivessem conformado com os modelos utilizados tão esperançosamente pelos seus empregadores ao explicar a sua posição financeira. A alegação que está a ser feita é que pagar os compromissos das empresas e do sector público ao trabalho provocará a bancarrota de ambos. Não há qualquer menção aos pagamentos da dívida aos possuidores de títulos por fundos tomados emprestados a fim de cortar os impostos progressivos sobre os ricos. Nem tão pouco é o fardo dos altos preços da habitação e de outros activos imobiliários que o plano de 30 de Julho para a salvação dos prestamistas hipotecários tem como objectivo.

Algo tem de ceder, mas tem de ser esta velha visão do mundo. Não há dúvida de que quando a próxima crise financeira chegar veremos os habituais adjectivos jornalísticos: "inesperada", "surpreendeu toda a gente pela profundidade do problema", etc. Não me aborreçam! Será que os grandes media não podem ver as tendências óbvias em curso?

[*] Antigo economista da Wall Street especializado em balança de pagamentos e imobiliário no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Arthur Anderson, e posteriormente no Hudson Institute (nenhum parentesco). Em 1990 ajudou a estabelecer o primeiro fundo de dívida soberana do mundo para a Scudder Stevens & Clark. Foi Conselheiro Económico Chefe de Dennis Kucinich na recente campanha primária presidencial dos democratas, e aconselhou os governos americano, canadiano, mexicano e lituano, bem como o United Nations Institute for Training and Research (UNITAR). Professor Investigador Emérito da Universidade do Missouri – Kansas City (UMKC), autor de muitos livros, incluindo Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance . Email: mh@michael-hudson.com

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/hudson07312008.html . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
04/Ago/08