Ilusão neoliberal de independência contribui para servidão
jamais vista
"O neoliberalismo não é possível sem uma
colonização psíquica, que responde pela obediência
inconsciente!", explica Nora Merlin
por Rosângela Ribeiro Gil e Manuella Soares
I Vida e arte
Em qual encruzilhada estamos? O que nos pode salvar ou destruir por completo?
Essas são algumas indagações que nos levaram a pesquisar o
quanto o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico,
mas uma prisão de subjetividades. Por que repetimos o que não
é bom para nós e defendemos o que nos prejudica?
O cineasta inglês
Ken Loach
, tão perspicaz em
"auscultar" a sociedade capitalista, parodia os tempos atuais,
magistralmente, em seu mais recente trabalho
Sorry we missed you
. Estamos lá, na aflição do ex-operário da
construção civil, desalentado pelo desemprego, buscando uma
salvação de vida para ele e sua família. É
emblemático o diálogo que inicia a película entre Ricky
Turner, a voz de quem perdeu a credulidade no sistema, e Gavin Maloney, a fala
de quem aderiu à lógica neoliberal do "empreendedor de
si" prometida por uma plataforma de entregas.
Ricky diz querer trabalhar sozinho agora "ser meu próprio
chefe" e que não aceita o seguro-desemprego, sinal de
fraqueza, por isso diz; "Prefiro morrer de fome." Gavin gosta do que
ouve, chama o ex-operário de guerreiro e passa a "fazer uns
esclarecimentos": "Aqui você não é contratado,
você embarca (
to board
). Você não trabalha para nós, trabalha conosco. Não
dirige para nós, presta serviço. Não temos contrato de
emprego. Não há metas a cumprir, você alcança o
Padrão de Entrega. Não há salário, há
honorários. Você não bate ponto, fica à
disposição." E finaliza: "Você é senhor do
seu destino. Isso separa os perdedores dos guerreiros."
Saber o que nos acontece não é tarefa fácil nem se esgota
aqui e agora. Sociólogos, filósofos, historiadores,
psicanalistas, jornalistas e outros profissionais e estudiosos se
debruçam sobre a era atual.
Alguns indicam, como a psicanalista Nora Merlin docente e pesquisadora
da Universidade de Buenos Aires, mestre em Ciências Políticas e
autora dos livros "Populismo e Psicoanálisis", "La
colonización de la Subjetividad, médios massivos de
comunicación em la época del biomercado", "Mentir y
colonizar: obediencia inconsciente en la subjetividad neoliberal" e
"La reinvención democrática. Un giro afectivo", todos
editados pela Letra Viva , que o neoliberalismo é uma
produção de subjetividade, de um homem "novo" e que,
portanto, requer uma nova antropologia. Nora nos concedeu, gentilmente, uma
entrevista desde Buenos Aires. Neste texto, vamos trazer e dialogar com as
falas de Nora com o intuito de ajudar na reflexão dos nossos tempos para
evitarmos o pior.
É, sem dúvida, uma pista para entender passividades como a que
vimos, no Brasil, em 2017, na contrarreforma trabalhista, onde mais de 100
direitos foram retirados e tantos outros alterados da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nora questiona que,
mesmo sendo um dispositivo que só favorece a elite e retira direitos, o
neoliberalismo tem avançado "profundamente no mundo, até ser
definido como uma forma de vida". Ela propõe uma reflexão
sobre o porquê, desde os anos 1970, essa política se impõe
e observa que "isso só é possível colonizando a
subjetividade, com a manipulação dos afetos, como a
angústia, a culpa, o medo, o ódio".
Na linha de frente dessa manipulação, Nora destaca os meios de
comunicação, as redes sociais e as políticas de
educação e saúde mental e também as ciências
biológicas capturadas pela indústria da
medicalização. "O neoliberalismo não é
possível sem essa colonização, que responde pela
obediência inconsciente", frisa. Ela traz o filósofo e
humanista francês Étienne de La Boétie (1530-1563), vindo
do século XVI, para "conversar" com a gente, 500 anos depois.
Ele pensou a sociedade na época dos absolutismos reais e alcunhou a
expressão "servidão voluntária"
[1]
. "Ele se perguntava por que muitos se submetiam ao rei. A
explicação naquele momento foi teológica: o rei é o
herdeiro de Deus e, então, há de servi-lo e obedecê-lo. Era
uma obediência consciente e voluntária. Depois, vieram as
revoluções democráticas, os princípios de
igualdade, liberdade e fraternidade. Hoje, estamos frente ao mesmo problema,
porque os muitos se submetem a um, porém já não ao poder
real do rei, mas sim ao poder real que hoje são as
corporações. A servidão já não é
sequer registrada como servidão porque estamos na presença de
cidadãos que se creem livres. Além disso, o cidadão no
neoliberalismo não tem comida e casa garantidas, não tem
direitos. Então, por que tomamos atitudes que vão contra nossos
próprios interesses?", questiona.
Os trabalhadores perdem seus direitos, seu trabalho, mas seguem comprando e
consumindo um discurso contra eles mesmos e que está a favor do
capitalismo financeiro, que prescinde de homens e mulheres. "Os
trabalhadores seguem subscrevendo e comprando como naturalizado esse discurso
que logrou captar o coração da subjetividade."
II Meritocracia: a supremacia do eu
A meritocracia se fortalece na ideologia neoliberal. Uma narrativa que
encontramos todos os dias nos mais diversos meios e em variadas formas. Ela
está nas notícias da imprensa comercial, em postagens de empresas
e especialistas de recursos humanos e recrutadores, em profusão, nas
redes sociais, em especial na chamada rede de
networking,
o LinkedIn. Está em muitas falas políticas e nas diversas
esferas dos poderes republicanos Executivos, Legislativos e
Judiciário.
Esses discursos disseminam a sensação de liberdade ilimitada, no
sentido da onipotência do eu. "Eu faço o que quero."
Todavia, esclarece Nora que o eu é um lugar de desconhecimento. É
uma instância psíquica que não está livre, mas
está condicionada por imperativos, pulsões, pelo mundo social.
"Não é um lugar de liberdade, mas há condicionamentos
sociais, políticos, familiares, históricos que condicionam essa
suposta liberdade do eu."
A produção cultural do capitalismo contemporâneo, criadora
do culto à liberdade do eu (ou individual), se ampara grandemente em
técnicas de autoajuda e do
marketing
que funcionam como imperativos sociais também. "Por exemplo, as
frases "você pode" e "você pode mais" simulam
um ideal de liberdade, mas impõem os piores e ilimitados
sacrifícios. O que isso gera? Uma subjetividade culpada, devedora",
descreve Nora Merlin. Para ela, a ovacionada "liberdade individual"
é uma armadilha do sistema, porque nada se faz sozinho.
Falsamente, observa a psicanalista argentina, o neoliberalismo nos faz crer que
somos donos das nossas vidas e do nosso destino, reforçando palavras que
hoje estão no dia a dia das pessoas, como meritocracia, mérito,
empreendedorismo, empreendedor de si. "Isso contribui para uma
precariedade laboral, para um servilismo jamais visto, a pobreza como destino
porque não há nenhuma mobilidade social baseada na
meritocracia", critica.
Isso porque a meritocracia, como discurso do capitalismo contemporâneo,
está baseada numa falsa premissa de igualdade de oportunidades, quando
ela só existe no final, e não no começo. "Se se parte
da igualdade na educação, na saúde, na
habitação, depois sim pode haver uma singularidade no
esforço pessoal. A meritocracia é classista no neoliberalismo,
alcança uma posição quem nasce numa determinada classe
social", reforça Nora.
III Prisão ideológica e calcanhar de Aquiles
A primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, Margaret Thatcher, tem uma
frase famosa onde diz, sobre a nova ordem capitalista, que "não
existe mais alternativa. É isso que existe". A dama de ferro sabia
o que estava falando e já mostrava para todos o caminho servil que seria
imposto à sociedade mundial. Como sair dessa prisão
ideológica é uma pergunta que não apenas faz Nora, mas
todos nós. Neste ponto, Nora recorre a Michel Foucault (1926-1984),
lembrando que o filósofo francês apontou que o neoliberalismo
vinha com um
slogan
perigoso e falso do fim da história e das ideologias, ao mesmo tempo
que rechaça a política. "Se acaba com a política
porque dizem que o moderno é uma questão de
administração. O neoliberalismo se transformou num sistema de
administração das almas, do terror. Através de controle e
do disciplinamento", expõe.
O calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é justamente a política,
por isso a demonizam tanto, vinculam-na à corrupção,
à violência. A saída, enfatiza Nora Merlin, só pode
ser política, é a organização da sociedade, porque
os ideólogos neoliberais sabem que nesse campo da disputa e
reflexão de ideias eles não têm nada a dizer.
IV Manipulação da angústia
Não é à toa, portanto, o ataque às
organizações políticas e, principalmente, aos sindicatos
de trabalhadores, porque é neles que "vamos poder encontrar a
saída para a humanidade". O poder trabalha com alguns sentimentos
há muito tempo, "diria que mesmo antes do nazismo. Um dos afetos
que mais manipulam é o da angústia, porque significa desamparo,
indefinição, e isso traz a obediência inconsciente.
Trabalha-se com o medo, a ameaça, a culpa e o ódio. Essas
são as 'paixões' privilegiadas do neoliberalismo", analisa.
Outras paixões também são usadas, como a uniformidade de
pertencer a uma massa, de pertencer de forma imaginária, e não
real, pela via da identificação, de parecer a alguma coisa.
"O poder não quer sindicalismo, não quer a
organização dos trabalhadores. Um sindicalismo organizado e um
conjunto de trabalhadores que façam política e tenham pensamento
crítico. O poder quer uma cultura de individualidades, de
indivíduos, são cidadãos, consumidores,
"odiadores", sem pensamento crítico que forma a massa. A massa
está conformada sobretudo pelos meios de comunicação que
são corporativos, não são democráticos e são
empresas. Não são democráticos não apenas pela
concentração econômica, mas pela concentração
simbólica. Não há pluralidade de vozes, é um
discurso único, agora temos as redes sociais para ajudar a propagar esse
discurso. Tudo isso impõe formas de vida."
Rechaçar a política, que significa o diálogo entre
posições diferentes e não o aniquilamento do que é
diferente de nós, significa que colocamos no lugar a intolerância,
a violência moral e física.
A morte da política, sempre anunciada pelos cânones neoliberais,
retorna à sociedade como ódio, como destruição
física e moral. "É o homem lobo do homem, uma guerra de
todos contra todos, já não se trata mais de adversários
políticos, mas de uma guerra contra inimigos. Porque a política
foi demonizada como corrupção. O conflito político se
transformou em conflito moral, entre bons e maus. Há um estímulo
ao ódio, a mesma técnica utilizada pelo nazismo do inimigo
interno, da demonização, à época, contra o judeu,
os ciganos, os gays, hoje contra os dirigentes sociais, Lula, Cristina [
Kirchner
], dirigentes políticos e sindicais. O ódio é a ferramenta
principal do neoliberalismo porque é o modo de aniquilar as
diferenças", reflete Nora.
V Um vírus chamado neoliberalismo
Nora Merlin lembra que Jacques Lacan (1901-1981), psicanalista francês,
define o capitalismo como um discurso ilimitado. Ela entende que o capitalismo,
na sua expressão neoliberal, é um discurso fanático.
"Podemos dizer que é um vírus que foi tomando todos os
aspectos da cultura, quase uma estrutura rizomática, que foi se metendo
nas formas de vida, no corpo, nas relações sociais, amorosas, de
amizade, laborais, foi tomando os governos. Então, foi tomando o
coração da subjetividade", compara.
Como ela mesma destaca, durante o ano de 2020, em razão da pandemia,
apareceram distintas teorias por filósofos da moda de um "novo
normal", de uma civilização melhor, de uma humanidade mais
solidária, com o surgimento de um novo paradigma. Mas nada disso se
realizará por ordem do destino neoliberal, como exorta Nora Merlin:
"O destino da humanidade vai depender da luta política por outras
formas de vida. O que vemos é uma direita desinibida, o neofascismo que
já não necessita sequer de simulacros democráticos. O que
vemos surgir é uma ultradireita "odiadora", antissocial, mas
também vemos crescer uma oposição que luta, se organiza,
que articula o feminismo, formas democráticas, nacionais e populares.
Dessa luta vai depender o destino da humanidade.
09/Fevereiro/2021
[1] LA BOÉTIE, Étienne de.
Discurso da Servidão Voluntária
(PDF, 18 pg.)
O original encontra-se em
dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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