O imperialismo em transe: uma tríplice crise castiga o sistema capitalista
Nada será como antes
Amanhã ou depois de amanhã
(Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Parodiando o genial cineasta brasileiro, Glauber Rocha, o sistema capitalista
mundial está em transe. Ao contrário das crises cíclicas
periódicas e das crises sistêmicas anteriores
[1]
, esta nova crise mundial do capitalismo tem um caráter original e
devastador porque ocorre num momento em que o sistema está ferido por
uma tríplice crise: a) uma nova onda da crise sistêmica global e
suas consequências econômicas, sociais e políticas; b) uma
crise sanitária que envolve todos os países e a grande maioria da
humanidade; e c) uma crise de hegemonia imperialista, cuja expressão se
reflete na decadência da economia líder e a ascensão de uma
nova potência econômica mundial. Esses três fenômenos
combinados têm a dimensão de um tsunami na ordem capitalista
mundial: representam o esgotamento de um longo ciclo iniciado após a
segunda guerra mundial; expõe de maneira rude as fragilidades dos
sistemas sociais e de saúde dos países capitalistas e a
incapacidade dos governos, especialmente nos Estados Unidos, de proteger a
população; bem como o declínio estratégico da
hegemonia dos Estados Unidos. Essa conjuntura afetará de maneira
profunda todo o sistema imperialista mundial, tanto do ponto de vista
econômico, monetário, social e político e terá
desdobramentos de curto, médio e longo prazos no horizonte do
capitalismo.
Para compreendermos a natureza dos problemas atuais do capitalismo, é
fundamental atentarmos para o conjunto de profundas mudanças que
ocorreram no interior das forças produtivas mundiais, desde o momento em
que o sistema teve uma mudança de qualidade, com a
internacionalização da produção e das
finanças, a partir da segunda metade dos anos 50 do século
passado, consolidadas nas décadas de 70 e 80 e, posteriormente, com a
incorporação de novos e extraordinários setores
produtivos. A introdução desses novos ramos de
produção no sistema industrial, como com as tecnologias da
informação, especialmente a internet e a telemática, a
robótica, a microeletrônica, a engenharia genética e
biotecnologia, a nanotecnologia e inteligência artificial, os novos
materiais, entre outras, significou uma nova revolução
industrial. Com essas inovações, o sistema capitalista deu um
salto de qualidade e transformou a ciência e o conhecimento numa das
ferramentas decisivas do sistema produtivo mundial. As novas tecnologias
repercutiram também de maneira exponencial na órbita da
circulação, gerando mudanças de qualidade tanto no sistema
comercial, com o comércio eletrônico (
e-commerce
), quanto na esfera financeira e de serviços, o que modificou
radicalmente a dinâmica dos negócios no capitalismo.
É interessante avaliarmos sinteticamente as mudanças que correram
no interior do sistema produtivo capitalista para entendermos a natureza da
crise e as contradições que essas novas forças produtivas
operaram no interior do sistema tanto do ponto de vista econômico, quanto
social e político. Marx tinha razão quando escreveu no prefacio
da
Contribuição à Crítica da Economia Política
que há um momento em que as forças produtivas entram em
contradições com as velhas relações sociais de
produção e abrem espaço para as revoluções
sociais.
"O modo de produção da vida material condiciona o processo
da vida social, política e intelectual ... Em certa etapa de seu
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em
contradição com as relações de
produção existentes, ou, o que não é mais que sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade
no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então ... De
formas evolutivas que eram, essas relações convertem-se em
entraves. Abre-se então a época da revolução
social. A transformação que se produziu na base econômica
transforma mais ou menos, lenta ou rapidamente, toda a colossal superestrutura
... As forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade
burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para
resolver esse antagonismo".
[2]
O que podemos constatar atualmente no sistema capitalista mundial é uma
rebelião generalizada das sofisticadas forças produtivas do
capital em contradição com as velhas relações de
produção social, cuja expressão é a crise mundial,
porque estas relações já não correspondem mais ao
estágio de desenvolvimento material e tecnológico do capitalismo.
A partir de meados da década de 50 o sistema capitalista começou
a mudar tanto a forma quanto a estrutura de produção e das
finanças em escala internacional, processo que se consolidou nos anos 70
e 80 do século passado. As transformações ocorridas tanto
na órbita da produção quanto da circulação,
produziram uma verdadeira revolução na base material, na esfera
das finanças, do comércio e dos serviços, o que significou
um salto de qualidade extraordinário no processo de
acumulação mundial, inclusive resultando num processo de
remonopolização global.
[3]
O sistema capitalista passou a produzir em todas as regiões do planeta
e internacionalizar o circuito financeiro, comercial e de serviços,
transformando-se efetivamente num sistema mundial completo.
[4]
Em todo o processo histórico anterior, o capitalismo só era
completo no que se refere a duas variáveis da órbita da
circulação o comércio mundial e a
exportação de capitais, a partir das quais capturava o mais-valor
dos países da periferia. Mantinha o monopólio da
produção nos países centrais e articulava a hegemonia
mundial mediante aquilo que Raul Prebisch e Samir Amin denominaram,
respectivamente, de deterioração dos termos de troca ou trocas
desiguais, ou seja, os países centrais exportavam produtos
manufaturados, onde a produtividade é exponencial, e importavam dos
países periféricos produtos minerais e agropecuários,
setores em que a produtividade é linear.
Com a internacionalização produtiva, o processo manufatureiro foi
estendido também à periferia capitalista, que passou a se
integrar às cadeias globais de produção, particularmente
naqueles setores mais intensivos de mão de obra. Mediante a rede de
milhares de filiais espalhadas por todos os continentes, a
internacionalização da produção é
hegemonizada pelas corporações internacionais, que dominam os
setores que agregam mais valor e lideram o processo de pesquisa e
desenvolvimento, o que significa o controle hegemônico de todo o processo
mundial de produção. A aventura para o exterior do setor
produtivo pode ter ocorrido, entre outros fatores, em função do
esgotamento dos seus mercados, bem como pela necessidade de criar novos
mercados de apropriação do mais-valor. Isso foi facilitado pelas
imensas vantagens que os novos territórios de produção
proporcionavam a essas corporações como matérias-primas
próximas ao sistema produtivo, mão de obra barata e facilidades
institucionais criadas pelos governos dos países onde se estabeleciam.
Já a internacionalização das finanças foi
articulada pela oligarquia financeira que já dominava historicamente os
circuitos na órbita das finanças nos países centrais,
muito embora tenha surgido nessa nova conjuntura novos agentes financeiros que
passaram a ter um papel importante na dinâmica especulativa que seria
estabelecida a partir dos anos 80.
Apesar das mudanças na forma de apropriação do valor e da
acumulação de capital, o sistema capitalista se tornou ainda mais
hegemônico não só porque as grandes
corporações passaram a se apropriar direta e generalizadamente do
mais-valor em praticamente todas as partes do mundo, mas também porque,
em função de sua dimensão econômica, ampliaram sua
influência sobre a formulação das políticas dos
países da periferia. Vale ressaltar ainda que a nova conjuntura aberta
com as mudanças realizadas pelos governos Reagan e Tatcher transformaram
o polo financeiro do grande capital no setor hegemônico da dinâmica
capitalista, inclusive subordinando todos os outros setores à
lógica financeira. O frenesi especulativo que emergiu nas últimas
quatro décadas é a expressão das dificuldades do grande
capital em realizar o circuito completo da acumulação a partir da
produção. Para efeito analítico, avaliaremos separadamente
a internacionalização da produção e a
internacionalização das finanças, apenas para
compreensão mais detalhada desses fenômenos, uma vez que
entendemos a relação orgânica entre os vários
setores do capital se aprofundou nesse período.
As transformações produtivas e financeiras
Analisando mais especificamente a internacionalização da
produção, é importante ressaltar que as grandes
corporações transnacionais produtivas se adaptaram aos novos
tempos e articularam uma estrutura integrada mundial em todo o ciclo do
capital, como investimento, produção, distribuição
e acumulação. Como Marx já observara no Manifesto, a
grande indústria transformou a pequena oficina do antigo mestre da
corporação em grande fábrica onde concentrou todo o
processo de produção,
[5]
também na globalização produtiva as antigas
divisões de trabalho no interior das empresas nacionais se transformaram
em Departamentos Internacionais: agora planejamento, gestão,
investimento, tecnologia, produção e circulação das
mercadorias passaram a responder a um centro único, a partir do qual
essas corporações coordenam seus tentáculos pelo mundo.
[6]
Em outros termos, todas as regiões do planeta se transformaram em
esfera única direta de acumulação, processo a partir do
qual o grande capital se aproveita das melhores disponibilidades dos
países periféricos, tanto em termos de matérias-primas,
mão de obra barata e facilidades institucionais, para ampliar as taxas
de lucro.
Organizaram-se combinando a venda de seus produtos finais nos próprios
mercados nacionais onde se estabeleceram com a produção de
peças e equipamentos para as matrizes de acordo com as necessidades do
centro hegemônico, de onde obtém vantajosos preços de
transferência,
[7]
constituindo-se assim em cadeias globais de produção tendo como
centro os países centrais.
Outro fenômeno derivado da internacionalização da
produção a ser observado é o fato de que, como a
produção agora é internacional, o capitalismo unificou o
ciclo mundial de produção, uma vez que agora há uma
interdependência estrutural entre a grande corporação e
suas afiliadas pelo mundo a fora. Pode-se derivar desse raciocínio que
agora também as crises do capital passam a ser globais, posto que todo
processo produtivo está interconectado e interdependente, fechando-se
assim as rotas de fuga do passado, nas quais uma nação em crise
poderia escoar seus produtos para regiões com estabilidade
econômica. Isso significa maiores problemas para o capital, uma vez que
torna mais difícil a gestão das crises. A
internacionalização da produção também
ganhou uma nova dinâmica com a emergência dos novos ramos de
produção, cuja implantação colocou em segundo plano
os setores típicos da segunda revolução industrial, tais
como a metal-mecânica, a química, os plásticos, entre
outros. Além disso, essas novas tecnologias contribuíram de forma
decisiva para modificar substancialmente o perfil do proletariado, uma vez que
as inovações passaram a exigir uma mão de obra mais
qualificada que no período anterior. Assim, incorpora-se ao novo
proletariado os engenheiros e técnicos produtores de chips, da
inteligência artificial, da nanotecnologia, os desenvolvedores de
softwares, os técnicos e cientistas da engenharia genética,
além dos web designers da internet, entre outros trabalhadores altamente
qualificados dos novos ramos industriais.
Em outras palavras, a internacionalização da
produção significou uma mudança profunda na estrutura de
produção do capitalismo, transformando-o efetivamente num sistema
mundial integrado. Lenin dizia que os monopólios eram a ante-sala do
socialismo. Possivelmente foi um excesso de otimismo, pois no seu
período o capitalismo estava apenas iniciando o amadurecimento do seu
sistema efetivamente internacional. Agora sim, com a
internacionalização da produção, estamos muito mais
próximos do socialismo que no período de Lenin. Não se
pode esquecer que essa internacionalização, transformou as
corporações transnacionais em destacamentos avançados do
sistema capitalista central nos países periféricos. Em
contrapartida, produziu um conjunto de mudanças na ordem do capital: do
ponto de vista da acumulação mundial, a extração do
valor de maneira generalizada fora das fronteiras nacionais tornou a burguesia
cosmopolita uma classe exploradora direta dos trabalhadores tanto no centro
quanto na periferia
[8]
e unificou objetivamente os interesses do proletariado mundial. A
internacionalização da produção atualizou de
maneira extraordinária a palavra de ordem de Marx
"proletários do mundo, uni-vos".
[9]
Ou seja, agora essa consigna tem muito mais aderência à
realidade que nos tempos do próprio Marx porque o proletariado na
atualidade está muito mais vinculado organicamente a um centro
explorador que no século XIX e, portanto, com mais possibilidades de
unidade de ação internacional. A
internacionalização da produção modificou ainda a
dinâmica do comércio internacional, tendo em vista que parcelas
cada vez maiores das transações internacionais (algo em torno de
40%) passaram a ser realizadas entre as matrizes e filiais das
corporações transnacionais.
A propósito, praticamente todos os articulistas definem essa nova fase
do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo como a era do
imaterial, como se todo o processo de produção flutuasse no
vácuo. A economia atual não tem nada de imaterial: pelo
contrário é muito mais material que no período do
fordismo, porque a produção é muito maior e mais
socializada, envolve um contingente também maior do proletariado e
só não está à disposição de toda a
humanidade pelas próprias contradições do capitalismo.
Esses analistas não compreendem que tudo na vida é material e que
o próprio conhecimento, como diziam os soviéticos, é uma
propriedade altamente organizada e sofisticada da matéria.
[10]
Portanto, o que denominam de economia intangível, economia imaterial
não tem nada de intangível ou imaterial: trata-se apenas de um
momento novo da produção do capital, com cadeias de
produção do valor altamente sofisticadas, no qual as
forças produtivas dependem cada vez mais da ciência e do
conhecimento humano para a produção de bens e serviços.
Caso a humanidade, num período não muito distante, consiga romper
as amarras das leis do capital, já existem forças produtivas
suficientes para criar uma sociedade da abundância e da felicidade
humana. Nesse sentido, com as novas ferramentas da computação, o
planejamento se tornaria muito mais efetivo que no período anterior
às tecnologias da informação.
Ao mesmo tempo em que se realizavam as modificações no interior
do sistema produtivo, desenvolvia-se também profundas mudanças na
órbita das finanças. Os bancos seguiram o caminho das
corporações produtivas e também implementaram a
internacionalização das finanças, tanto pelas
relações históricas que possuíam com esses
monopólios nos países centrais, como por uma série de
mudanças que ocorreram na ordem econômica internacional, como o
fim de Bretton Woods, a implantação das taxas de câmbio
flexíveis, a formação do mercado de eurodólares e
as políticas de liberalização financeira e mobilidade de
capitais realizadas pelos governos Tatcher e Reagan. Da mesma forma que as
corporações produtivas, o bancos foram criando milhares de
filiais ao redor do mundo e ocupando cada vez mais espaços na
dinâmica da economia capitalista. Um elemento importante desse processo
foi o fato de que o mercado de eurodólares significou, na
prática, a privatização da liquidez internacional, uma vez
que anteriormente a grande maioria do crédito internacional era
fornecido pelas agências multilaterais.
[11]
Esse movimento facilitou o avanço das finanças, agora
internacionalizadas, processo que foi acelerado pelas medidas liberalizantes
tomadas pelos governos centrais no final da década de 70 e no
início dos anos 80, fatos que a partir daí consolidaram o poder
dos grandes conglomerados financeiros.
A desregulamentação financeira e a livre mobilidade de capitais
abriu também espaço para as chamadas inovações
financeiras, mediante as quais as instituições bancárias
desenvolveram em nível mundial um frenesi de novos "produtos
financeiros" nos mercados futuros, mercado de ações,
câmbio, títulos de dívida, bônus e derivativos em
geral, cujo desempenho transformou a especulação e o rentismo
como um instrumento institucionalizado na nova dinâmica da economia
capitalista.
"A nova política monetarista fortaleceu enormemente o polo
financeiro do grande capital, que passou a impor ao conjunto da economia as
novas regras do mercado, de forma a ampliar sua participação na
riqueza e subordinar os outros setores à lógica das
finanças. Ancorados por tecnologias da informação cada vez
mais desenvolvidas, pela generalização dos computadores e da
internet, novos "produtos" financeiros foram criados numa velocidade
proporcional à criatividade do sistema liberalizado.
Especulação no mercado futuro de câmbio, de juros, swaps,
bônus e derivativos em geral marcaram a tônica das finanças
a partir de então."
[12]
Essas inovações financeiras possibilitaram à órbita
das finanças romper as barreiras econômicas do espaço e do
tempo: passaram a autoacrescentar o capital fictício, pela primeira vez
na história, ao longo das 24 horas do dia, bastando para tanto que os
escritórios desses conglomerados ajustassem seus negócios aos
fusos horários das diversas praças financeiras mundiais. O passo
seguinte da dinâmica especulativa foi a captura de parte dos
negócios produtivos e do fundo público. No primeiro caso, fundos
financeiros passaram a ter assento em número cada vez maior nas
diretorias das empresas produtivas e, a partir daí, passaram a
pressionar essas firmas a operar com a mesma dinâmica da órbita
financeira, ou seja, obter lucros rápidos e na mesma
proporção da especulação financeira.
[13]
A captura do fundo público foi realizada mediante a dívida
pública tanto nos países centrais quanto periféricos: uma
política de juros altos obrigou os Estados a destinarem cada vez mais
recursos do orçamento para o pagamento da dívida até
transformá-los em prisioneiros da oligarquia financeira. Esse processo
seguiu de maneira acelerada até que a órbita financeira
conseguisse hegemonizar completamente a dinâmica da economia capitalista.
Para se ter uma ideia, antes da crise de 2008, os valores financeiros que
circulavam na órbita das finanças eram cerca de 10 vezes maiores
que o produto mundial.
Uma revolução tecnológica
Enquanto se consolidava a internacionalização da
produção e das finanças, um novo movimento de
transformações impactou de maneira profunda as forças
produtivas do capitalismo. Trata-se dos novos ramos de produção
baseados no mais avançado desenvolvimento científico, tais como
as tecnologias da informação, especialmente a internet, as
telecomunicações, a telemática, a microeletrônica, a
robótica, a engenharia genética e a biotecnologia, a
inteligência artificial, a nanotecnologia, entre outros. Muitos desses
novos setores de produção viriam a se consolidar nos anos 90 e,
especialmente, no século XXI, transformando de maneira radical a base
produtiva do sistema de produção mundial e deixando em um segundo
plano os velhos setores industriais típicos da segunda
revolução industrial. Podemos dizer que a
consolidação desses novos meios de produção
significou uma mudança de qualidade na produção industrial
no interior do capitalismo, processo que será acelerado quando a
nanotecnologia, a inteligência artificial e as tecnologias oriundas da
física quântica estiverem sendo utilizadas em larga escala no
interior da produção.
Se avaliarmos a produção dos dias atuais pode-se dizer que toda a
manufatura mundial, o comércio e os serviços estão
permeados por essas novas tecnologias. Toda produção de bens de
consumo, equipamentos fabris, operações financeiras, comerciais
ou de serviços está integrada às tecnologias da
informação. A velha fábrica dos homens práticos ou
dos trabalhadores fordistas foi superada pela interação entre o
ser humano com alta qualificação técnica e a mais
avançada tecnologia nas linhas de produção. Os
computadores e softwares especializados comandam o planejamento, as linhas de
produção, os setores administrativos, o fluxo dos estoques e a
distribuição dos produtos de acordo com a demanda. A
microeletrônica e as telecomunicações contribuíram
de maneira fundamental para o desenvolvimento da indústria de
semicondutores e chips em geral, o que possibilitou a produção de
novos bens de consumo, menores e mais eficientes, como os smartphones,
tabletes, notebooks e computadores de mesa, além do fato de que de que
as comunicações por satélites transformaram radicalmente
as comunicações e até mesmo as previsões do tempo.
A nanotecnologia, a inteligência artificial, a computação
quântica e os novos materiais em breve contribuirão para um novo
salto de qualidade nas forças produtivas do modo de
produção capitalista.
A internet produziu uma verdadeira revolução nas
comunicações não só entre as pessoas, governos,
entidades, mas também nos negócios e na cultura, resultando numa
integração em rede digital da maioria da população
mundial, como diz Castels.
[14]
Com um simples celular, notebook, ou computador de mesa qualquer pessoa pode
ter todo o conhecimento do mundo em suas mãos, muito embora essa
estrutura de informação tenha sido capturada pelos
monopólios. No entanto, ainda existe uma faixa muito grande para a
ação independente e, caso haja uma mudança de fundo nas
relações econômicas e sociais, a internet poderia se
transformar num grande instrumento de democratização do
conhecimento para a humanidade. De qualquer forma, os avanços nas
forças produtivas oriundas das tecnologias da informação
serão ainda mais revolucionários quando estiver implantada a
internet 5G e as redes quânticas. Possivelmente, dentro de pouco tempo,
teremos transformações tão revolucionárias que os
bens e serviços atuais parecerão obsoletos diante das novas
tecnologias da informação e da produção da
próxima década.
A engenharia genética, a biotecnologia e a maquinaria
agropecuária também estão profundamente inseridas no
sistema de produção do capitalismo, tornando o campo um ramo do
sistema industrial. O melhoramento genético das aves possibilitou a
produção em massa de carnes, reduzindo o tempo de corte de
quatro-cinco meses no passado para cerca de 40 dias atualmente, o que ampliou
de maneira generalizada o consumo de proteína e a
ampliação e barateamento do da carne. Da mesma forma, o
melhoramento genético e as modernas técnicas de
criação do gado reduziram de maneira extraordinária o
tempo de abate, ampliando também a produção de
proteína bovina em várias regiões do planeta. Ainda em
relação à proteína, a produção de
peixes em tanques, viveiros ou mesmo em áreas demarcadas dos litorais
marítimos foi ampliada extraordinariamente, reduzindo a pressão
da pesca predatória nos mares e rios. A biotecnologia já
está plenamente implantada na produção agrícola
mundial, tanto na produção de sementes quanto na
produção agrícola em geral, o que tem possibilitado um
aumento da produção de grãos e vegetais com maior
produtividade e muitos países, como o Brasil, se transformasse num
grande exportador de grãos. Não se pode esquecer, todavia, que
todo esse sistema produtivo é dominado, tanto do ponto de vista da
produção quanto da comercialização, pelos
monopólios transnacionais. Como têm por base o lucro, seus
interesses estão voltados para os interesses privados, o que tem
resultado numa relação predatória com a natureza e na
produção de alimentos com elevado índice de
contaminação para as pessoas, especialmente na periferia.
Na órbita da circulação, a automação
bancária se transformou num instrumento fundamental dos negócios
na área financeira. O sistema financeiro está presente em todas
as regiões do planeta, tanto que hoje, com um simples celular, se pode
fazer qualquer operação bancária com qualquer banco em
qualquer parte do mundo. As bolsas de valores e os mercados financeiros
estão integrados e interconectados internacionalmente, o que
possibilitou que os negócios na área financeira se transformassem
numa arena de especulação internacional ao longo das 24 horas do
dia. Os meios de comunicação também evoluíram de
maneira extraordinária, tanto que hoje em um aparelho de TV, computador,
celular e tablete qualquer pessoa pode ter em tempo real todas as
informações em qualquer parte do mundo. O comércio se
desenvolveu de maneira impressionante, com a emergência do
comércio eletrônico e os serviços de entrega, o que vem
deixando cada vez mais em segundo plano as lojas físicas e a
tendência é que, em pouco tempo, as compras via
on line
superem o comércio tradicional. Esse conjunto de
inovações também está sob o comando dos
monopólios, mas em outro sistema se constituirá numa base
fundamental para servir toda a humanidade.
As contradições do sistema
Dessa forma estamos diante de uma conjuntura inteiramente nova. As
forças produtivas mundiais, a organização da
produção e a forma de apropriação mundial do valor
mudaram radicalmente desde o final da segunda guerra mundial. A
internacionalização da produção reorganizou o
processo de acumulação mundial, com a burguesia passando a
extrair o valor diretamente e de maneira generalizada em praticamente todas as
regiões do planeta; a introdução dos novos ramos
produtivos baseados nas mais sofisticadas tecnologias, mudou radicalmente o
sistema produtivo do capitalismo mundial, bem como as inovações
em várias áreas do conhecimento transformaram radicalmente o
setor comercial e o setor de serviços. O sistema financeiro, baseado no
avanço das tecnologias, especialmente na automatização
bancária e da internet, transformou de maneira radical a órbita
das finanças. A nova conjuntura mudou também de maneira profunda
o perfil dos trabalhadores, incorporando ao mundo do trabalho um proletariado
jovem e altamente qualificado.
Podemos dizer que sobre os escombros da segunda revolução
industrial foi criado um sistema produtivo, comercial, financeiro e de
serviços inteiramente diferente da velha estrutura construída no
pós-guerra. Enquanto as profundas modificações ocorriam em
todo o sistema capitalista, as relações de produção
continuaram as mesmas, como se o mundo tivesse parado no tempo e, em muitos
casos, as relações trabalhistas regrediram para estatutos do
século XIX. Em termos mais políticos, a ordem construída
após a derrota do nazi-fascismo e em Bretton Woods já não
corresponde mais à atual à realidade mundial, particularmente a
partir do surgimento de novos atores globais, como a China. Dessa maneira, a
crise que atinge o sistema capitalista hoje é a expressão da
necessidade de construção de outra ordem econômica e
social, cujo pano de fundo, ainda não foi percebido pelos gestores do
capital, é a rebelião das forças produtivas contras as
velhas relações de produção, que atualmente
representam um entrave para seu próprio desenvolvimento.
A exemplo de Marx, Lenin também já identificara essa
contradição fundamental no processo de desenvolvimento do
capitalismo:
"... assim como as causas materiais estão por trás de todos
os fenômenos naturais, o desenvolvimento da sociedade humana é
condicionado pelo desenvolvimento das forças materiais, as forças
produtivas. Do desenvolvimento das forças produtivas dependem as
relações nas quais os homens entram uns com os outros na
produção das coisas necessárias para a
satisfação das necessidades humanas. E nessas
relações está a explicação de todos os
fenômenos da vida social, aspirações humanas, ideias e
leis.
O desenvolvimento das forças produtivas cria relações
sociais baseadas na propriedade privada, mas agora vemos que esse mesmo
desenvolvimento das forças produtivas priva a maioria de sua propriedade
e a concentra nas mãos de uma minoria insignificante."
[15]
Como se pode observar, a crise sistêmica global atualiza de maneira
extraordinária as contradições já expressas a mais
de um século pelos fundadores do marxismo e torna-se o exemplo o mais
claro dessa contradição em caráter mundial. A crise vai
continuar seu curso apesar de todas as manobras dos gestores do capital e de
sua propaganda manipulatória.
Não se pode esquecer que em vários momentos recentes do
capitalismo os gestores do capital identificaram a necessidade de
mudanças e procuraram realizá-las como forma de se adaptar aos
problemas colocados pela nova conjuntura, muito embora essas
modificações, em vez de resolver os problemas, aprofundaram as
contradições do capital. Entre essas iniciativas está o
processo de reestruturação da produção que, entre
outras medidas, inclui mudanças profundas na organização
do trabalho, mediante a produção por demanda, os círculos
de controle de produção, o aperfeiçoamento contínuo
da produção, a administração por stress. Esse novo
ordenamento impôs o estabelecimento de metas de produção,
nas quais um menor número de trabalhadores é obrigado a realizar
tarefas anteriormente feitas por uma quantidade maior de assalariados, tudo
isso para reorganizar o sistema produtivo e aumentar a produtividade, de forma
a que os capitalistas possam escapar dos efeitos da composição
orgânica do capital e da queda na taxa de lucros. As políticas
neoliberais iniciadas no final dos anos 70 e início dos anos 80 podem
também ser consideradas como resposta desesperada do capital à
contradição entre as novas forças produtivas e as velhas
relações de produção. Essas políticas
romperam o pacto do chamado estado do bem estar social, período em que
as burguesias dos países centrais foram obrigadas a aceitar uma
série de reivindicações dos trabalhadores porque grande
parte dela foi derrotada pela guerra junto com o nazi-fascismo.
No entanto, tanto a reestruturação produtiva quanto as
políticas monetaristas representaram apenas um ataque à
organização, aos direitos, garantias e salários aos
trabalhadores e um avanço agressivo do capital sobre o fundo
público, mas não resolveram o problema central das
contradições impostas pela nova realidade. Nenhuma dessas medidas
foi capaz de resolver as contradições impostas pela nova
conjuntura e o que estamos vendo agora com a tríplice crise é a
expressão descontrolada desse processo contraditório. Nunca
é demais relembrar que crises dessa ordem não ocorrem por
geração espontânea: são resultados de longos
processos que se formam e amadurecem nos subterrâneos do sistema e quando
explodem significam que as medidas tomadas anteriormente para tentar
reformá-lo não foram suficientes. Além disso, essas
medidas contribuíram para acirrar a luta de classes e tornar mais clara
as contradições do capitalismo, uma vez que o pacto social
anterior contribuiu para reduzir e amortecer as tensões sociais,
particularmente nos países centrais. Cada vez vai ficando mais claro e
as pessoas começam a perceber essas contradições,
começam a entender quem são os seus verdadeiros inimigos,
começam a verificar que os ricos ficaram mais ricos, que os pobres
são as maiores vítimas da crise e a própria crise se
encarrega de aprofundar essas contradições.
Na verdade, se analisarmos mais detidamente a crise poderemos identificar uma
série de fenômenos que indicavam faz algum tempo que algo estava
apodrecendo no reino do capital, ou dito de forma mais leve, que alguma coisa
estava se deteriorando no interior do sistema. Por exemplo, as crises
financeiras do México em 1994, posteriormente a crise asiática em
1997, a crise na Rússia em 1998 e a crise do Plano Real no Brasil em
1999, apesar de emergiram na órbita financeira, indicavam já
sinais claros de problemas no interior do sistema. Mas os otimistas contumazes
argumentavam que essas crises ocorriam na periferia do sistema como muitas
crises anteriores. No entanto, no início dos anos 2000, a crise irrompeu
no coração da principal economia mundial, os Estados Unidos,
exatamente no polo mais avançado das forças produtivas, as
empresas de tecnologia, conhecidas como
empresas ponto.com.
Dito de outra forma: levando em conta que a maioria dessas crises se ocorreu
na órbita das finanças e que atingiu de maneira diferenciada os
diversos países onde ocorreram, não podemos deixar de dizer que a
órbita da circulação não flutua no vácuo.
Mesmo que em algum momento tente autonomizar-se, como já ocorreu em
vários períodos da história, a órbita das
finanças é parte integrante do capital em geral e não pode
se distanciar por muito tempo da economia real. Portanto, o fio condutor para
explicar essas crises parciais é o fato de que todos esses
fenômenos indicavam o prenuncio de que algo grave ocorria no interior do
sistema.
Na verdade, esses fenômenos sinalizavam um problema muito maior, que era
a própria crise geral do capitalismo, que viria a se expressar em sua
totalidade em 2007/2008, com a crise sistêmica global, cuja
emergência colocou em xeque todos os fundamentos da velha ordem e atingiu
também de maneira profunda todos os países ligados à
economia líder. Para evitar o colapso, os bancos centrais dos
países capitalistas injetaram montanhas de dólares nas economias
para salvar o sistema financeiro, enquanto os trabalhadores perdiam suas casas,
seus empregos e suas vidas, o que mostra mais uma vez o caráter de
classe do Estado. Conseguiram adiar por alguns anos um desfecho da crise. Essa
fuga para frente possibilitou uma sobrevida a um sistema doente e muitos
chegaram mesmo a imaginar que a crise tinha acabado, mesmo que o sistema
não tenha alcançado os patamares anteriores à crise. Mas a
máquina de propaganda conseguiu construir um ambiente artificial de
"crescimento econômico", baseado em dinheiro criado a partir do
nada, o que serviu apenas para enriquecer a oligarquia financeira. Agora, com a
nova onda da crise, o governo dos Estados Unidos vem utilizando o mesmo
método da crise anterior e já colocou, desde março,
início da nova onda da crise, U$ 5,4 trilhões na economia,
ressaltando-se que a dívida pública do País em 2020
alcançou US$27 trilhões (Gráfico 1),
EUA: Dívida pública total e PIB
Fonte: GEAB, No. 152. Dívida pública total dos EUA versus PIB (em
vermelho, dívida. Em azul, PIB).
Como afirmávamos em trabalhos anteriores, a crise que emergiu em 2008
não é um fenômeno corriqueiro, mas uma crise
sistêmica, um acontecimento muito diferente das crises cíclicas
comuns no ciclo econômico capitalista. Por se tratar de uma crise
sistêmica, um fenômeno novo pelo menos nos últimos 70 anos,
os gestores do capital têm imensa dificuldade para compreender toda a
dimensão da conjuntura e, por isso, não conseguem encontrar
nenhuma fórmula para retomar o crescimento mundial e a
estabilização econômica. Repetem as velhas receitas das
crises cíclicas sem alcançar nenhum resultado palpável.
Agora, estão diante de uma nova ilusão: como conseguiram dar
sobrevida ao sistema emitindo dinheiro sem vínculo com a
produção do valor, imaginam que encontraram a receita milagrosa
para salvar o sistema, mas esquecem de que a impressão pura e simples de
moeda não cria riqueza nova. Se a impressão de dinheiro pudesse
salvar o capitalismo, este seria um sistema eterno era só colocar
as impressoras para funciona ou acionar as teclas dos computadores dos bancos
centrais. Em algum momento a festa deverá acabar e o preço a ser
cobrado será muito alto, como a emergência da
inflação, da crise financeira ou mesmo a desconfiança em
relação à moeda de reserva mundial.
A tripla crise e os novos problemas
A nova onda da crise sistêmica global, agora impulsionado pela crise
sanitária mundial, veio atualizar o que já afirmávamos em
2009 de que a crise era profunda e devastadora e que só terminaria
quando todos os problemas colocados pela própria crise fossem resolvidos.
[16]
Afinal, as crises sistêmicas são muito diferentes das crises
cíclicas que ocorrem no capitalismo desde seus primórdios. Como
ocorrem com frequência na dinâmica da economia, os capitalistas
já desenvolveram mecanismos para administrá-las, como ocorreu
especialmente após a segunda guerra mundial com as políticas
keynesianas de intervenção do Estado no ciclo econômico
mediante o gasto publico. No entanto, as crises sistêmicas têm um
caráter inteiramente diferente, porque representam o esgotamento de um
longo ciclo de acumulação, a emergência de
contradições antagônicas que se acumularam no interior do
sistema entre as forças produtivas e as relações de
produção e necessitam de mudanças quantitativas e
qualitativas, além de uma reorganização profunda do
sistema econômico ou de sua superação. Por isso, as
receitas corriqueiras que antes revertiam às crises cíclicas,
não funcionam para as crises sistêmicas. Isso explica o
embaraço e a perplexidade dos gestores do capital diante dos novos
fenômenos. Vejamos os principais problemas que ocorrem no
coração do sistema, que é a expressão do que
acontecerá nos países ligados à economia líder.
A crise econômica atual nos Estados Unidos e, por extensão, nos
outros países capitalistas, é muito maior do que a
erupção em 2007/2008, afinal quando o centro desmorona a
tendência é o desmoronamento de todos que estejam aa ele ligados.
O Produto Interno Bruto dos Estados Unidos registrou uma retração
negativa de -3,5%, uma das maiores da história econômica do
País desde a segunda guerra mundial, e as
perspectivas para 2021, mesmo com a vacinação da maioria da
população, também não podem ser consideradas
animadoras, em função do elevado desemprego, da
retração no consumo das famílias e da decadência da
infraestrutura, especialmente energia e transporte. Em 2020 milhares de
pequenas e médias empresas, especialmente nas áreas comercial e
de serviços, foram à falência e o investimento privado, que
já vinha estagnado muito antes da crise, deverá ser reduzido em
consequência da redução da demanda dos consumidores. Nos
períodos de crise cíclica o investimento público
funcionava como alavanca para a retomada do crescimento econômico. No
entanto, a maioria absoluta dos recursos colocados pelo governo na economia
não foi destinado a irrigar o investimento produtivo. Pelo
contrário, a montanha de dólares liberados pelo FED foi
apropriada pela dinâmica especulativa: isso explica a
inflação de ativos financeiros, os recordes de alta na Bolsa de
Valores, o crescimento impressionante dos mercados futuros e de derivativos, a
aquisição de títulos tóxicos e a recompra de
ações das grandes empresas.
A crise econômica colocou na ordem do dia a crise social, a
miséria e a pobreza na maior economia do mundo, problema escondido
durante várias décadas pelos meios de comunicações
como forma de preservar o mito do sonho americano e da sociedade de
oportunidade para todos. Em termos concretos, o desemprego real está por
volta de 20% dos trabalhadores. Como a economia não tem possibilidades
de recuperar, no curto prazo, os níveis anteriores à crise, o
emprego continuará por um longo período muito deprimido, o que se
refletirá na demanda dos trabalhadores. A situação dos
desempregados, bem como das famílias em geral, só não
está pior porque o governo tem proporcionado um auxílio
emergencial que tem impedido a fome generalizada. Mesmo assim não se
pode esquecer que a maior economia do mundo tem atualmente mais de 40
milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, total que se
elevará à medida do agravamento da crise. Além disso,
possui ainda mais de
550 mil sem teto, dos quais 358 mil morando em abrigos precários e 198
mil vivendo nas ruas.
[17]
Enquanto isso, os bilionários aumentaram sua fortuna em US$ 540
bilhões durante a pandemia.
[18]
Em outras palavras, aquela miragem da sociedade próspera, país
das oportunidades, padrão da democracia e dos direitos humanos,
construída ao longo dos anos pela mídia corporativa, foi
inteiramente desmascarada pela crise. Ou seja, a crise revelou a desigualdade,
a pobreza, a miséria e um sistema apodrecido com todos os problemas das
economias da periferia.
A crise sanitária também revelou as dramáticas
condições do sistema de saúde dos Estados Unidos e as
debilidades das políticas públicas em relação
à população, especialmente a mais pobre. Ao longo das
décadas venderam a imagem de um sistema de saúde sofisticado, com
a mais avançada medicina mundial, mas o que se observou na
prática é que o sistema de saúde, praticamente todo
privatizado, foi estruturado para atender apenas uma pequena parte da
população, os mais ricos. A maioria da população
que não tem dinheiro para pagar um plano de saúde, pode morrer na
porta dos hospitais privados. Nesta pandemia o que se pode verificar é
que os mais pobres, os negros e outras minorias são os mais atingidos e
mortos pela doença. Para ampliar o drama, Trump cortou os gastos nas
áreas sociais, o que se refletiu na maior fragilização do
sistema hospitalar. Quando veio a pandemia o sistema entrou em colapso, tanto
porque o governo não se estruturou para cuidar da saúde da
população quanto porque o negacionismo do então presidente
contribuiu para ampliar o número de enfermos. Só a
mercantilização da saúde explica porque a maior economia
do planeta é a campeã mundial de mortos pela pandemia com
mais de 500 mil mortos e 30 milhões de contaminados. Com a posse de
Biden, o governo ampliou a vacinação e espera imunizar 100
milhões de pessoas nos cem dias de governo. Isso significa que, se
continuar nesse ritmo, até o final do ano toda a população
estará vacinada. Mas a vacinação de todos não
será suficiente para esconder as mazelas sociais do País, a
desigualdade e a iniquidade de um sistema de saúde feito para os ricos.
Do ponto de vista geopolítico, a situação do imperialismo
é, estrategicamente, dramática em relação ao
sistema de poder dos Estados Unidos, em função do declínio
econômico, da competitividade comercial, tecnológica, além
da incerteza na área monetária. Aquele mundo em que os Estados
Unidos impunham seus interesses e os países obedeciam em ordem unida,
especialmente após a queda da União Soviética, já
não existe mais. Particularmente na última década emergiu
uma nova potência econômica mundial, tanto em termos de
produção quanto tecnológico, que se transformou na oficina
do mundo, para usar o termo que os ingleses utilizavam quando eram
hegemônicos na geopolítica mundial. Com relação
à questão militar, os Estados Unidos continuam sendo a maior
potência, mas como há uma paridade nuclear com a Rússia e a
China já reuniu condições de se defender e atacar ao mesmo
tempo qualquer região do mundo, além de outros países
terem também armas nucleares capazes de atingir o continente americano,
dificilmente a luta pela hegemonia deverá ser decidida por uma guerra
nuclear, a não ser que os capitalistas em desespero resolvam extinguir a
espécie humana com eles próprios juntos. Em poucos anos a China
se transformará na principal economia do mundo, com uma série de
vantagens em várias áreas de ponta como o
5G
e computação quântica. Além desses fatores, possui
ainda uma mão de obra qualificada e uma escala extraordinária em
termos de formação de engenheiros, técnicos e
trabalhadores altamente qualificados maior que todos os outros países.
Todo esse conjunto de questões deverá aprofundar ainda mais o
declínio do imperialismo: viveremos um período muito tenso nas
relações internacionais; pode ser que haja guerras localizadas,
provocações, sabotagens e sanções, mas a
lógica do poder econômico e da escala produtiva e
tecnológica chinesas terminarão por se impor na economia mundial.
Mas a crise do imperialismo se tornará mais grave quando atingir a
hegemonia monetária. Ao longo de várias décadas o
dólar reinou como a moeda mundial no sistema financeiro internacional,
baseado no poder econômico, político, diplomático e militar
dos Estados Unidos. Vale lembrar que desde a guerra do Vietnã os Estados
Unidos vêm imprimindo dólar sem vínculo com a
produção do valor e acumulando grandes déficits. Isso foi
tolerado em função do seu poder real, mesmo levando em conta que
em 1971 Nixon tenha dado o maior calote financeiro da história moderna,
e também porque não havia nenhuma nação com
capacidade econômica e política para enfrentar esse
privilégio senhorial. No entanto, há pelo menos duas
décadas o poder do dólar vem sendo questionado, tanto em
função do declínio produtivo dos Estados Unidos quanto
pela opção de articular a dinâmica da economia a partir da
órbita da circulação. Nas últimas três
décadas, alguns fenômenos monetários já indicavam a
necessidade de mudanças na ordem econômica e monetária
internacional. No final da década de 90 surgiu a zona do euro, com moeda
própria, e nos últimos 20 anos a China se transformou no
principal País produtor e exportador mundial. Mas a nova conjuntura da
crise de hegemonia se tornou mais clara para parceiros e concorrentes a partir
da crise sistêmica de 2008 e, particularmente, com a tripla crise atual,
que demonstrou de forma explicita as fragilidades da economia, de sua
competitividade internacional e do declínio geopolítico.
Como a história nos ensina, a hegemonia monetária internacional
de um País está ligada ao seu poder econômico,
político e militar. Isso ocorreu pelo menos desde o império
romano e particularmente após os descobrimentos:
"Não há nada de novo no fato de a moeda hegemônica
ser a moeda de reserva global. Foi assim com a Espanha no século 16, com
os holandeses no século 17, a França no século 18 e a
Grã-Bretanha no século 19. Se as próximas décadas
confirmarem o que muitos já chamam de "século
chinês", o dólar pode muito bem empalidecer enquanto o
renminbi sobe".
[19]
Mesmo levando em conta que estamos diante de um processo de
transição, cujo desfecho dependerá da gravidade da crise
econômica mundial, já se pode perceber que algo está se
movendo no sistema monetário internacional. Hoje se observa claramente
um movimento no sentido de criar outras opções monetárias
para as transações internacionais, até porque
nenhuma economia mantém a hegemonia monetária se não tem
fundamentos econômicos sólidos internos, o que não ocorre
atualmente na principal economia do mundo. Como diz Cohen:
"... o mundo está tendo sérias dúvidas sobre a
suposição outrora amplamente aceita do excepcionalismo americano.
As moedas estabelecem o equilíbrio entre essas duas forças
fundamentos econômicos domésticos e percepções
estrangeiras da força ou fraqueza de uma nação. O saldo
está mudando, e uma queda do dólar pode estar prestes a
acontecer".
[20]
Senão vejamos: a quantidade dólar nas reservas internacionais dos
bancos centrais e a imensa riqueza expressa em títulos públicos
do Tesouro dos Estados Unidos não é nada mais nada menos que
montanhas de papel pintado porque não representa a riqueza real do
País emissor. Transformou-se apenas em símbolos de riqueza que
não pode ser transformada em ativos reais, um conto de fadas que
só é crível enquanto os agentes econômicos
continuarem acreditando que possa ter valor real em algum momento do futuro.
Nas duas últimas décadas, os Estados Unidos construíram
enormes déficits comerciais, que na pratica significaram uma enorme
transferência de valor de todos os países exportadores em troca de
uma moeda sem vínculo na produção real. Uma
apropriação legalizada, expressa num verdadeiro
"negócio da China", em troca de uma promessa que não
poderá ser efetivada no futuro, como diz Eichengreen:
"O Bureau of Engraving and Printing (a casa da moeda dos Estados Unidos)
gasta apenas alguns cents para produzir uma nota de US$100, mas os outros
países precisam fornecer US$100 em bens e serviços para obter a
mesma nota de US$100.
[21]
Mas esse literal castelo de cartas pode começar a desabar com o
aprofundamento a crise sistêmica capitalista e a desconfiança dos
detentores de dólar quando estiver claro para todos que esta moeda
não corresponde o seu valor de face e nem os Estados Unidos têm
condições de honrar a montanha de dólares espalhada pelo
mundo. Isso já vem sendo percebido por alguns detentores desses ativos
financeiros: como não podem exigir uma troca abrupta da moeda e dos
títulos por riqueza real porque isso levaria a uma crise desagregadora
em que todos perderiam, muitos países, especialmente a China,
estão trocando pacientemente esses dólares e títulos por
ativos reais em várias partes do mundo, em forma de investimentos,
compras de ouro, matérias-primas, ações e propriedades de
empresas. Mas em algum momento essa crise se agravará e a moeda
hegemônica poderá ser substituída por uma cesta de moedas
das principais economias ou por outra moeda que represente o novo poder
econômico global.
Para onde vai o capitalismo?
Essas questões colocam um problema crucial: qual será o
desfecho
dessa crise e o futuro do capitalismo? Nem mesmo os defensores mais
intransigentes do capitalismo podem negar que o sistema está em crise
profunda. A tripla crise que estamos observando agora (crise
econômica-social, crise sanitária e crise geopolítica) veio
apenas intensificar em bases ampliadas um problema que já estava
colocado na crise sistêmica iniciada em 2008. Apesar da profundidade da
crise, a construção ideológica do sistema capitalista
é tão forte que seus gestores têm enormes dificuldades para
reconhecer os dados novos da realidade, uma vez que suas mentes estão
moldadas pelas fórmulas dos velhos tempos. Em consequência,
não conseguem perceber os novos fenômenos e não encontram
saídas para as crises sistêmicas porque essas crises não
podem ser resolvidas com as mesmas medidas operadas nas crises cíclicas.
Isso explica o desespero do grande capital, a agressividade contra os direitos e
salários dos trabalhadores e pensionistas e as restrições
às liberdades democráticas. Mas nada disso resolve o problema,
pois as crises sistêmicas requerem mudanças de fundo em todo o
sistema e não apenas medidas paliativas como vem sendo realizadas pelos
vários governos.
A crise também serviu para revelar os graves problemas sociais que
atingem o sistema capitalista e, principalmente, sua principal economia. Aquilo
que por muito tempo se suspeitava, agora veio à tona com rudeza
explícita: a maior economia do mundo está doente, com uma
sociedade cada vez mais empobrecida onde os salários dos trabalhadores
estão estagnados há várias décadas, enquanto um
punhado de milionários se apropria da maior parte da riqueza produzida
no País. Essa conjuntura gera enormes tensões sociais: as
manifestações recentes contra o racismo, as maiores desde a
guerra do Vietnã, representam apenas a ponta do iceberg do iceberg do
acirramento da luta de classes que está se gestando nos Estados Unidos e
de levantes sociais que poderão ocorrer no pós-pandemia tanto nos
Estados Unidos quanto em várias regiões do planeta. Tudo indica
que nos Estados Unidos essa será uma luta muito dura e violenta,
não só porque ocorrerá no coração do
imperialismo, mas porque a extrema-direita conta com expressiva base popular,
negacionista, além da existência de grupos reacionários
armados cada vez mais agressivos. Em outros termos, o conjunto desses problemas
são apenas os epifenômenos de um problema maior: a crise profunda
do sistema e o aguçamento das contradições entre as
avançadas e sofisticadas forças produtivas e as velhas e caducas
relações de produção.
O nível de degeneração do capitalismo é tão
grande que este sistema, nesta sua fase neoliberal e, principalmente,
após a crise sistêmica que emergiu em 2008, não consegue
mais conviver com os estatutos institucionais criados pelo próprio
capital, como as liberdades formais da democracia burguesa, os direitos
conquistados pelos trabalhadores no pós-guerra e as próprias
instituições multilaterais (OMC, OMS, ONU) que regulavam o
sistema político e econômico no período anterior à
crise. Ao contrário do que muitos possam pensar, a agressividade do
capital neste momento da história não significa que esteja mais
forte: pelo contrário, representa um processo de decadência cada
vez mais difícil de reverter. Por isso, a luta de classes vai se
intensificar porque as massas não se deixarão abater como moscas,
conforme a própria história tem demonstrado em todas as
épocas. Há um clima de revolta latente entre as massas
empobrecidas em várias partes do mundo, que não está se
revelando plenamente nas ruas em função da pandemia e do instinto
de preservação da humanidade. Mas essa aparente calmaria
poderá ser rompida em função do desastre provocado pela
crise e pela pandemia, como já ocorreu em alguns países, como as
lutas sociais contra o golpe na Bolívia, as manifestações
populares pela Constituinte no Chile, as lutas sociais dos camponeses na
Índia, as manifestações de rua no Haiti, Equador,
Índia, Paraguai e a própria luta contra o racismo nos Estados
Unidos. Todas essas lutas, por mais diferentes que sejam, significam uma
espécie de ensaio geral da tormenta que se aproxima no
pós-pandemia.
A crise também foi pedagógica em revelar uma verdade conhecida
desde os clássicos da economia política: só os
trabalhadores criam a riqueza do mundo. Com a pandemia, grande parte dos
trabalhadores foi obrigada pela crise a ficar em casa e a economia entrou em
bancarrota. Além disso, a crise também provou a inutilidade das
classes parasitárias. Em plena crise, a grande maioria da humanidade
empobreceu e só um punhado de milionários ficou mais rico. O
planeta poderia mundo bem viver sem eles. A humanidade não sofreria
grandes perdas. Marx deve estar com um largo sorriso tumular ao verificar que a
implacável lei do valor continua com uma atualidade
extraordinária. Mas o elemento político da luta de classes nessa
crise ainda não chegou à superfície: essa é uma
crise sanitária de dimensões nunca registrada na história
da humanidade, com a particularidade de que, ao contrário das crises
anteriores, esta pandemia atingiu todos os países. Como se trata de um
problema que ocorre num período em que a informação
é transmitida em tempo real para todos, em que as pessoas diariamente
tomam conhecimento dos dramas e tragédias que ocorrem em cada
região do mundo, essa crise vai ter um impacto profundo na psicologia
das massas. O trauma psicológico, social e consequentemente
político do pós-pandemia ainda é difícil de
prognosticar corretamente, mas com certeza a humanidade vai presenciar, num
prazo não muito distante, um conjunto de fenômenos novos que
irão mudar profundamente as relações sociais,
econômicas, políticas e culturais do planeta.
Do ponto de vista da luta de classes, o sistema capitalista intensificou o
processo de exploração em caráter mundial, não
apenas reduzindo direitos, salários dos trabalhadores e proventos dos
aposentados, mas praticando a mais-valia absoluta potencializada, uma forma de
extorsão especial, que combina redução de salários,
a extensão da jornada de trabalho como nos primórdios do
capitalismo, bem com a intensificação do trabalho nos novos e
sofisticados ramos industriais, o que aumenta de maneira extraordinária
a produtividade do trabalho e as taxas de lucro do capital. Se por um lado as
dificuldades de mobilizações em função da pandemia
ainda estão reduzindo as lutas dos trabalhadores, por outro, as novas
condições de exploração, a exemplo do passado,
levará o proletariado a protagonizar novamente intensas lutas sociais
tão logo as condições sanitárias possibilitem a
emergência plena de todo o potencial de revolta contra a
exploração e as condições de vida da
população. Aqueles que pensam uma retomada da economia dentro de
um ambiente de normalidade institucional, podem estar profundamente
equivocados, pois tudo indica que o futuro próximo será permeado
por uma conjuntura muito difícil para o capital. As tensões que
estão se acumulando na sociedade representam um caldo de cultura que
emergirá com fúria no pós-pandemia.
Outro indicador de relevância é o fato de que a ordem
econômica internacional no pós-guerra foi estruturada a partir de
dois pilares fundamentais: a) a apropriação do mais-valor por
parte da economia líder, os Estados Unidos, em consequência de sua
vantagem econômica e industrial; b) a imposição de
dólar como moeda mundial e o controle do sistema financeiro
internacional. Esses dois processos estão em desagregação
acentuada: a opção dos Estados Unidos em se tornar uma economia
de serviços, a partir da qual expropriaria o valor mediante a
exportação de capitais e o controle do sistema financeiro
internacional, está em pleno declínio. Essa opção
foi um erro estratégico porque, do ponto de vista da
produção, que é efetivamente o que conta para a
acumulação do capital, os Estados Unidos se enfraqueceram
estruturalmente, o que se reflete tanto na participação relativa
na produção mundial, quanto no comércio internacional.
Ora, um líder imperialista que não lidera a
produção de valor nem o comércio mundial também
não se apropria do valor na mesma escala que se apropriava quanto estava
na liderança produtiva e, consequentemente, reduz o valor real de sua
riqueza. Portanto, está condenado a perder a liderança.
Quem imagina que a órbita da circulação poderá
compensar os prejuízos no setor produtivo, mais uma vez não
compreendeu a lógica da lei do valor e seu funcionamento do ponto de
vista internacional. Essa conjuntura poderá se refletir também na
posição do dólar como moeda mundial. Nenhum País
pode manter sua moeda como dinheiro mundial por muito tempo com uma economia
que não corresponda a essa hegemonia, mesmo que seu poder militar
continue sendo o maior do mundo. Como a moeda deve ter, em última
instância, um vínculo com o trabalho social, algum parceiro dos
Estados Unidos pode, em algum momento não muito distante, chegar
à conclusão de não vale a pena aceitar nem comercializar
com o dólar porque essa moeda não corresponde à riqueza
criada no País de origem ou porque outras moedas se tornaram mais fortes
em função das economias que representam. Aí então
teríamos a desarticulação da ordem econômica
internacional estruturada em torno do dólar. .
Economicamente, a China vem apresentando um desempenho muito superior aos
Estados Unidos, tanto em função da escala industrial quanto
tecnológica. Pelas últimas projeções, em breve a
economia chinesa alcançará a dos Estados Unidos em termos de PIB
já alcançou na Paridade do Poder de Compra e, do ponto
industrial e tecnológico, a China se transformou numa espécie de
oficina do mundo em praticamente todas as áreas da
produção enquanto a economia dos Estados Unidos cambaleia em meio
à crise econômica e sanitária. Isso explica o desespero das
autoridades ianques em impor sanções contra empresas de ponta
chinesa, promover junto a parceiros boicotes às suas
exportações e um conjunto de medidas de sabotagens e
provocações aos chineses. Grande parte dessas medidas representam
apenas os sintomas da impotência do imperialismo diante da nova
conjuntura e da disputa hegemônica, mas dificilmente impedirá a
marcha objetiva da economia chinesa para se transformar na principal economia
do mundo. Esse tempo poderá se tornar maior ou menor dependendo do
alcance dessas manobras protelatórias.
Como se pode verificar historicamente, as crises imperiais são longas e
dolorosas: foi assim ao longo da história. Geralmente são
resolvidas com guerras, reformas profundas ou revoluções. Porque
as crises imperiais representam um mosaico de contradições que se
acumularam ao longo de um período histórico e emergem no interior
do sistema, muitas vezes fragmentariamente, de forma quase
imperceptível. Como essas mudanças vão aflorando de
maneira lenta e gradual, geralmente não são detectadas nem mesmo
pelos observadores mais atentos. Por isso, as pessoas se surpreendem quando as
crises chegam a um ponto de ebulição e explodem abruptamente. Mas
se observarmos atentamente poderemos ver que, igual a um vulcão,
vários sinais foram emitidos no período anterior à atual
crise. Desde 1994, com a crise da dívida mexicana, esses sinais emitidos
revelavam evidente desgaste do sistema. Posteriormente, ocorreu a crise da
Ásia em 1997, da Rússia em 1998, do Brasil em 1999 e das empresas
de tecnologia nos Estados Unidos. As crises anteriores ocorreram naquilo que
poderíamos denominar a periferia do sistema, mas a bancarrota das
empresas
ponto.com
já atingiu o coração do sistema. Portanto, a crise
sistêmica de 2008 e a crise atual significam a manifestação
explosiva de um sistema que já estava enfermo e que agora está na
unidade de terapia intensiva.
Podemos sugerir que o capitalismo não será mais o mesmo no
pós-pandemia e que há a possibilidade de se gestar uma
situação revolucionária de caráter global em
várias regiões do planeta no pós-pandemia, o que
abrirá novas janelas de oportunidades para a humanidade. Uma
situação revolucionária não significa que
haverá revolução. Como dizia Lenin, a
situação revolucionária expressa o momento de crise aguda
da sociedade burguesa, enorme pauperização das massas e
impossibilidade dos de cima governar como no período anterior à
crise, conjuntura na qual emerge o descontentamento e indignação
das massas. Ou seja, em função da crise as classes dominantes
não podem mais governar como outrora e os de baixo (o proletariado e
seus aliados) não suportam mais ser governados como antes.
[22]
A partir daí abre-se um período de intensa disputa entre as
classes, que pode tanto significar uma vitória dos trabalhadores
através das janelas de oportunidades que se abrem nesses
períodos, ou uma derrota dos de baixo e a retomada do poder da
burguesia. Portanto, as situações revolucionárias
representam uma espécie de livro aberto onde tudo pode acontecer para as
duas classes fundamentais do planeta. Essa é a conjuntura na qual se
dará a disputa entre o proletariado e seus aliados e a burguesia
cosmopolita no pós-pandemia. Como sou um otimista histórico,
espero que as janelas de oportunidades que se abrirão com a crise sejam
favoráveis à construção de um futuro que abra
espaço para a construção de uma nova sociedade da
abundância e da felicidade humana, a sociedade socialista.
23/Março/2021
[1] Conforme definimos em trabalho anterior (A crise econômica mundial, a
globalização e o Brasil, Edições ICP, 2013), o
sistema capitalista viveu apenas três grandes crises sistêmicas:
1873 a 1896; 1929 a 1945; e 2008 a ...? Todas essas crises provocaram grandes
mudanças quantitativas e qualitativas no sistema capitalista, mas em
nenhuma delas combinou tantos fenômenos globais em cadeia como
atualmente. Por isso, essa crise é mais grave que as crises
sistêmicas anteriores.
[2] Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia
Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
[3] Os velhos monopólios da segunda revolução industrial
estão sendo substituídos pelos monopólios dos novos ramos
da produção, especialmente aqueles ligados às tecnologias
da informação e ao comércio eletrônico.
[4] A internacionalização da produção completou
efetivamente o processo de mundialização do capital e a burguesia
cosmopolita passou a extrair o mais-valor, direta e generalizadamente, em todas
as regiões do planeta, fenômeno que não ocorria no
período anterior.
[5] Marx, K. Manifesto Comunista. São Paulo: Edipro
(Edição comemorativa dos 150 anos do Capital), 1998.
[6] Michalet, C. A. Capitalismo mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984
[7] Preços de transferência é o nome fantasia dos valores
praticados na compra e venda de bens e serviços do exterior. No caso das
corporações transnacionais, os preços de
transferência significam a relação entre matriz e filial no
comércio intrafirma. Como esses preços são estabelecidos
privadamente, é comum a manipulação dos preços: as
filiais vendem às matrizes produtos (peças e equipamentos) a um
preço abaixo do preço de mercado e compram tecnologia das
matrizes a um preço acima do mercado, o que resulta na
transferência clandestina de valor da periferia para o centro. A Receita
Federal tenta regulamentar essas transações, mas os
monopólios sempre encontram uma brecha para manipulá-las.
[8] Charles Albert Michalet foi o primeiro a identificar o processo de
criação generalizada do valor foram das fronteiras nacionais, com
de seu livro Capitalismo Mundial. São Paulo: Paz e Terra 1984. Muito
embora o autor não se referisse ao processo de
globalização.
[9] Proletários de todo o mundo uni-vos é a palavra de final do
Manifesto Comunista, op. cit.
[10] Korshunova, L; Kirilenko, G. Que é filosofia. Moscou:
Edições Progresso, 1986.
[11] O mercado de eurodólares era uma articulação
financeira que operava com dólar fora do território dos Estados
Unidos, basicamente em Londres. Cresceu de maneira acentuada após a
crise do petróleo. Como os sistemas financeiros dos países
árabes, os maiores produtores, eram relativamente frágeis para
reciclar os dólares obtidos com o novo preço do petróleo,
passaram a aplicar seus recursos no mercado europeu, o que aumentou a
disponibilidade dólar no mercado internacional. Muitos países da
periferia se endividaram nesse período e essa foi uma das causas da
crise da dívida na década de 80.
[12] Costa, E. A globalização e o capitalismo
contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
[13] Para maior compreensão do avanço do Sistema financeiro em
relação às empresas e ao orçamento dos Estados, ver
Costa. E. A globalização e o capitalismo contemporâneo, op.
cit.
[14] Castels, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
[15] Lenine,
Friedrich Engels
, por Vladimir Lenine. Lisboa:
Edições Avante, 1977. Acesso em 3/Jan/2021.
[16] Para maior informação, consultar
A crise mundial do capitalismo e as perspectivas dos trabalhadores
, acessado em 08/02/2021
[17] THE COUNCIL OF ECONOMICS ADVISERS. The State of Homelessness in America.
2019. Disponível em: www.whitehouse.gov/... . Acesso em 10/02/2021.
[18] Oxfam.
O vírus da desigualdade
. Janeiro de 2021. Acesso em 15/02/2021.
[19] Roubini, N.
O declínio do dólar se aproxima?
Acesso em 24 /O2/2021.
[20] Roach, S.
Está chegando uma queda do dólar
. Blomberg Opinion. Acesso em 22/02 2021.
[21] EICHENGREENN, B. Privilégio exorbitante: ascensão e queda do
dólar e o futuro do sistema monetário internacional. Rio de
Janeiro: Campus, 2010.
[22] Lenin, W. A falência da II Internacional. São Paulo:
Kairós, 1979. A citação literal de Lenin é a
seguinte: "Quais são, de maneira geral, os indícios de uma
situação revolucionária? Estamos certos de não nos
enganarmos se indicarmos os três principais pontos que seguem: 1)
impossibilidade para as classes dominantes manterem a sua
dominação de forma inalterada; crise da cúpula e crise da
política da classe dominante, o que cria fissura através da qual
o descontentamento e a indignação abre caminho. Para que uma
revolução estoure não basta, normalmente, que "a base
não queira mais" viver como outrora, mas é necessário
que "a cúpula não o possa mais"; 2) agravamento,
além do comum, da miséria e da angústia das classes
oprimidas; 3)desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas
acima, da atividade das massas, que se deixam saquear tranquilamente nos
períodos "pacíficos", mas que nos períodos
agitados são empurradas, tanto pela crise no seu conjunto quanto pela
"cúpula", para uma ação histórica
independente".
[*]
Doutor em Economia pela Unicamp, com
pós-doutorado na mesma instituição. É autor, entre
outros, de
Reflexões sobre a crise brasileira
(edições ICP, 2020),
A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil
(Edições ICP, 2013) e
A globalização e o capitalismo contemporâneo
(Expressão Popular, 2008), além de ensaios e artigos economia e
política. É secretário-geral do Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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