A Huawei e as bolsas de valores: Trump brinca com fogo
por Juan Torres López
[*]
No capitalismo dos nossos dias germinam crises de natureza muito diferente que
surgem de forma recorrente. Umas são sistémicas porque quando
aparecem "contaminam" inevitavelmente todo o sistema. Assim
são as crises financeiras porque afectam o dinheiro ou o crédito,
sem o qual a economia não pode funcionar. Outras são estruturais,
porque provém da natureza intrínseca do sistema capitalista.
Exemplo: as que produzem a desigualdade decorrente da
mercantilização do trabalho (que periodicamente produz crise da
procura pela queda da massa salarial), ou a ambiental como consequência
de mercantilizar também o uso dos recursos naturais, submetendo a
natureza à ânsia do lucro. Outras são de escala e
característica diferentes, produzidas por uma só causa ou por uma
conjunção delas, e podem alcançar maior ou menor
envergadura conforme afectem variáveis mais ou menos determinantes do
funcionamento ou do equilíbrio do sistema no seu conjunto. Isso ocorreu
com a crise dos anos 70 do século passado.
Como tentei demonstrar no meu livro
Economía para no dejarse engañar por los economistas
, estes últimos [os economistas], não costumam ser capazes de
antecipar as crises e de lhes dar solução adequada. É
assim porque partem de premissas falsas e porque não utilizam
métodos de análise adequados para poder entende o que na
realidade é a economia: um sistema complexo cujo funcionamento
não se pode explicar com as ferramentas simplistas da teoria
económica dominante.
Na minha opinião, esta falta de acerto está a verificar-se
novamente neste momento: os economistas convencionais e as autoridades que se
baseiam nas suas opiniões intuem que uma crise importante se aproxima
mas estão a apontar, outra vez, para o lado equivocado. Acreditam que
virá pela desaceleração da actividade que se vem
verificando nos últimos meses ou como resultado de outro solavanco de
volatilidade financeira, como aquele que provocou a de 2007-2008. Mas
equivocam-se.
É certo que a tendência à baixa da massa salarial e a
extraordinária concentração da riqueza tende a produzir
uma deterioração progressiva dos mercados: diante de uma procura
debilitada responde-se com redução da oferta e assim gera-se um
círculo vicioso que cedo ou tarde estala em forma de crise. E
também é certo que as rachaduras provocadas pela crise financeira
anterior não se fecharam convenientemente, de modo que é seguro o
sistema bancário mundial voltar a saltar cedo ou tarde. Mas creio que
nenhum destes perigos é iminente. E outras crises, como a ambiental ou
inclusive a da dívida, tão pouco é provável que
proximamente produzam um efeito de colapso generalizado.
A meu ver, onde se estão a concentrar todos os riscos para produzir uma
crise global de grandes dimensões a muito curto prazo é nas
bolsas de valores e, portanto, no tecido empresarial que se estende por todo o
planeta.
No nosso tempo as bolsas estão a converter-se numa bomba relógio
por três razões que exponho a seguir, muito resumidamente.
A primeira é de carácter mais geral. As bolsas são
mercados cuja função é a de proporcionar financiamento aos
operadores económicos. Quando estes precisam de capita emitem
títulos e os poupadores ou investidores adquirem-nos para obter a
rentabilidade que a eles está associada, bem como renda variável
(quando se trata de dividendos que repartem o lucro das empresas) ou fixa
(quando se trata de títulos que se emitem com um juro determinado ao
longo do tempo). Essa função de capitalização
é fundamental e há que reconhecer que é um dos grandes
êxitos do capitalismo pois permite acumular somas de capital que
geralmente seria impossível que pudessem obter por si mesmos os
proprietários originais ou maioritários das grandes empresas.
Algo fundamental, portanto, para empreender negócios e a
acumulação que precisa um sistema planetário como o nosso.
Contudo, as bolsas perderam essa função desde há muitos
anos e ao invés de servirem para financiar as empresas respondem cada
vez mais a uma lógica puramente especulativa que busca simplesmente
aproveitar-se das mudanças de preços dos títulos e
não da sua rentabilidade intrínseca. Nas bolsas actuais
compram-se ou vendem-se títulos para tornar a vendê-los ou
comprá-los rapidamente, ou seja, para especular com eles com um
critério de curtíssimo prazo muito diferente do que exige o
financiamento empresarial e produtivo.
Isto significa que as bolsas desnaturalizaram-se, que funcionam para o que
não devem funcionar e isso é o que explica que se verifiquem
crises de reajustamento tão frequentemente. E creio que temos diante da
porta uma nova crise deste tipo, mas de grande amplitude, porque este processo
de desnaturalização agudizou-se extraordinariamente e até
excessivamente nos últimos tempos.
A segunda que provocou que a desnaturalização das bolsas se tenha
exagerado até o ponto de estarem em vias de estalar é que as
grandes empresas tem-nas utilizado para comprar suas próprias
acções, umas vezes utilizando seus grandes lucros para isso e
geralmente endividando-se graças às taxas de juro muito baixas.
Nos últimos cinco anos, a 500 maiores empesas dos Estados Unidos
realizaram esse tipo de comprar no valor de 2,9 mil milhões de
dólares e em 2018 no valor de mil milhões. Essas compras
(tecnicamente denominadas
buy back
) foram as responsáveis pelo facto de as cotações dessas
acções estarem exageradamente elevadas e que o índice
S&P500 (o das 500 maiores empresas cotadas em bolsa) tenha registado uma
impressionante subida de 300% desde 2009 até fins de 2018. Mais cedo que
tarde, talvez agora mesmo, essas compras deixarão de se realizar e a
bolsas cairão estrepitosamente, arrastando atrás de si dezenas
das maiores empresas do globo.
A terceira razão que produziu a exagerada desnaturalização
das bolsas é a generalização das chamadas
operações de alta-frequência. Trata-se das compras e vendas
de títulos de todo tipo que não realizam os seres humanos e sim
algoritmos em computadores muito potentes que operam a velocidades que se torna
muito difícil assimilar. Este tipo de operações já
representa entre 60% e 80% de todas as que se realizam nas principais bolsas e
mercados financeiros do mundo. E para que os leitores façam uma ideia do
que significa operar à velocidade em que se compra e se vende hoje em
dia basta um simples cálculo: imagine que se compra uma
acção por 1000 euros e que se vende a 1.001 euros para que isso
se faz 10 mil vezes por cada segundo, que é a velocidade a que se podem
realizar essas operações (há quem diga que não 10
mil vezes e sim até milhões de vezes...). E para entender o que
isto implica e o que pode supor o actuar cada vez mais rápido, considere
que uma conexão à rede que seja apenas um milissegundo mais
rápida que a da competição poderia aumentar os lucros de
uma firma de alta velocidade nuns 100 milhões de dólares por ano.
As consequências do predomínio deste tipo de
operações são muito variadas mas assinalarei só
duas. Uma, que se alimentam bolhas continuamente (empréstimos
estudantis, pensões, a imobiliária que não cessas, ou a
mais letal da dívida...). E outra que, ainda que todos os algoritmos
estejam preparados para ganhar, é materialmente impossível que
todos ganhem sempre ou que todos os mercados estejam em alta permanentemente. E
ambas as circunstâncias nos levam ao mesmo que disse antes: mais cedo que
tarde... verificar-se-á uma queda generalizada nas bolsas. Dizem que os
reguladores precisariam de dez a quinze minutos para deter uma queda
instantânea, mas não creio que isso esteja sempre assegurado. E,
em todo caso, pensem no que aconteceria se a queda se verificasse pouco antes
do encerramento, ou se se verificasse uma após a outra.
Quando poderá acontecer algo assim? Quando se produzirá o
reajuste das bolsas mundiais desnaturalizadas? Quando estalarão as
bolhas? Quando provocará um caos a lógica insustentável
dos algoritmos sem controle?... Não sabemos, mas o que é certo
é que o fogo se propaga quando salta uma faísca e que nos
últimos meses estão a acender-se várias a todo momento. A
última, o ataque de Trump à Huawei. É um passo mais na
guerra comercial e tecnológica e isso por si tem importância. Mas
contemplo-o agora como um possível factor de
desestabilização em bolsas que já estão por si
muito altamente desestabilizadas, tal como acabo de explicar.
Se assim for, se provocar que comecem a cair as cotações, se se
trava o
buy back,
se se faz estalar alguma bolha... estaremos às portas da próxima
crise, de natureza e efeitos diferentes da anterior. Seu modo de difusão
e suas consequências comentarei num próximo artigo. Mas por
enquanto e para que este artigo termine com uma imprescindível
visão de esperança, não se esqueças que, como
escrevi há dias, por trás das crises há também
Una gran oportunidad
.
21/Maio/2019
[*]
Professor da Faculdade de C. Económicas da Universidade de Sevilha.
O original encontra-se em
www.juantorreslopez.com/huawei-y-las-bolsas-de-valores-trump-juega-con-fuego/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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