Marx e a crise: os fantasmas, agora, são eles
"Marx, hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa
América Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez
mais de carne, osso, sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia
em fantasmas."
A atual crise do capitalismo mundial, além das graves
consequências que traz para os trabalhadores, acabou por propiciar um
efeito direto no debate teórico e acadêmico: uma retomada das
ideias de Marx. Por que isso ocorre? Que tipo de previsão foi realizada
por Marx que o faz tão maldito, perseguido e tão renitente em
nascer e renascer cada vez que o julgam morto em definitivo?
Passamos, nós marxistas, pelas décadas de 1980 e 1990 resistindo
no universo acadêmico como se fôssemos dinossauros
anacrônicos, insistindo em teses que desmoronam diante das
"evidências" pós-modernas, que afirmavam o fim da
validade da teoria do valor, o fim da centralidade do trabalho, das classes e,
por consequência, das formas organizativas e dos projetos
políticos próprios da classe trabalhadora.
Karl Offe
[2]
chegou a afirmar que, depois das ideias de Touraine, Foucault e Gorz, o
pensamento marxista não teria mais muita "respeitabilidade
cientítico-social". O próprio Keynes, que alguns se preparam
para resgatar como balsamo benígno contra os males da
desregulação, sobre O Capital de Karl Marx decretou:
"Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como bíblia, acima
e além de qualquer crítica, um manual econômico obsoleto
que reconheço não só como científicamente
errôneo, mas também sem interesse ou aplicação para
o mundo moderno?"
[3]
Logo na sequência do mesmo texto, Keynes confirmará sua postura
"científica" ao declarar preferir a burguesia que "apesar
de suas falhas, representa a prosperidade" e certamente leva as
"sementes de todo avanço humano", criticando aqueles que
"preferem a lama ao peixe" e "exaltam o proletariado rude"
contra a burguesia.
Parece que a burguesia continua, em sua incansável rota em
direção ao avanço humano, cometendo "algumas
falhas", que ameaçam a humanidade para garantir o avanço do
capital. O proletariado rude, imerso na lama na qual tem que viver, mais uma
vez tenta compreender a natureza da vaga que ciclicamente o afoga e, mais uma
vez, o velho Karl Marx se levanta de seu descanso no cemitério de
Londres para assombrar os respeitáveis senhores da ciência.
Qual seria o elemento teórico que encontramos em
O Capital
que permite que Marx seja ainda tão contemporâneo? Primeiro,
poderíamos dizer que Marx era, de certa forma, mais anacrônico em
sua época do que agora. Como pensa o capital como um conceito, um
movimento do real que dialeticamente transita através de suas formas e,
sendo histórico, nasceu, se desenvolveu e um dia irá ser
superado, Marx projeta, pela análise precisa do ser do capital, aquilo
que denomina de modo de produção especificamente capitalista, ou
seja, um mundo subsumido inteiramente ao metabolismo do capital, no qual reina
a subordinação real do trabalho ao capital, no qual a mercadoria
e o dinheiro são realidades universais, subordinando o valor de uso ao
valor de troca.
Ao projetar o capital maduro e completo é que Marx pode avaliar o
processo possível de sua superação. Um procedimento que os
antigos, antes que os pós-modernos convencessem o mundo acadêmico
a aderir a um novo agnosticismo, chamavam de ciência. Ora, este capital
maduro estava longe de corresponder à realidade de meados do
século XIX; no entanto, para desespero da respeitável
intelligentsia, o capitalismo contemporâneo se parece muito mais com a
previsão de Marx do que com a projeção mítica
anunciada pelos arautos do liberalismo e da economia política.
Apesar de autores como Boaventura de Souza Santos afirmarem que, considerando
os três gigantes clássicos do pensamento social (Marx, Durkheim e
Weber), Marx teria sido entre eles o que "errou de forma mais
espetacular"
[4]
. Mas o desfecho do mundo burguês no inicio do século XXI se
caracteriza inequivocamente por uma constatação: o mito liberal
morreu!
Qual é a essência do mito liberal e como Marx se contrapôs a
ele? O fundamento do mito liberal pode ser resumido da seguinte maneira: o
capitalismo é um sistema virtuoso, pois permite que cada um, buscando
seu próprio interesse egoísta, contribua para o estabelecimento
do bem comum. Dessa maneira, é o único que pode articular de
maneira eficiente os valores do indivíduo, da liberdade, da propriedade
e da igualdade. O capitalista busca lucro, mas para obtê-lo produz
mercadorias e para tanto gera emprego. O trabalhador quer pagar suas contas e
viver e por isso vende sua força de trabalho. Com seu salário
compra as mercadorias oferecidas pelos capitalistas e assim se fecha o ciclo. O
burguês tem seu lucro, o trabalhador seu salário e a sociedade
cada vez mais mercadorias com que satisfazer suas necessidades.
O sistema capitalista seria, ainda, virtuoso não apenas pelo
equilíbrio entre interesses individuais egoístas e interesse
geral, mas por sua dinâmica: quanto mais o capital produz mercadorias,
mais contrataria, mais salários distribuídos intensificariam o
consumo, que levaria a nova produção, mais
contratações e novos salários que induziriam ao aumento do
consumo e assim por diante, da melhor forma possível e no melhor dos
mundos.
Recentemente, o presidente Lula conjurou o mito com todas suas letras ao
afirmar que diante da crise os trabalhadores em vez de pedir aumento deveriam
fazer com que suas empresas produzissem mais, para aquecer o Mercado, atender
as necessidades do mercado consumidor e daí garantir, não apenas
empregos como a possibilidade futura de melhores salários.
Apesar da fé consagrada de muitos ao mito, Marx escreveu
O Capital
para comprovar a falácia deste argumento central do pensamento
burguês. Podemos resumir desta forma as principais conclusões do
pensador alemão para contrapor uma visão científica
à ideologia liberal: a) quanto mais cresce a concorrência entre os
capitalistas, menor é a livre concorrência e maior é a
tendência ao monopólio; b) nas condições de uma
concorrência entre monopólios, os capitalistas tendem sempre a
investir mais em capital constante (máquinas, instalações,
novas matérias primas, etc) para aumentar a produtividade do trabalho,
do que em capital variável (a compra da força de trabalho)
alterando drasticamente a composição orgânica do capital em
favor do trabalho morto; c) o resultado aparentemente paradoxal desse processo
é uma tendência à queda na taxa de lucro, ou seja, quanto
mais o capital cresce, maior é a produtividade do trabalho pela
aplicação consciente da técnica e da ciência ao
processo de trabalho, quanto mais o capital se torna monopolista e mundial,
menor é a taxa de lucro.
Na verdade, a tautologia liberal afirma que quanto mais o capital cresce, mais
ele cresce. O que Marx anunciou pela dialética do capital, compreendido
pela minuciosa análise que se nega a permanecer na superfície
aparente dos fenômenos, é que quanto mais o capital cresce, mais
ele produz a crise que é própria à sua natureza, ou seja,
de ser valor em constante processo de valorização, ou seja, uma
crise de superacumulação que se combina de forma explosiva com
manifestações de superprodução, subconsumo e queda
tendencial da taxa de lucro.
O fato desconcertante para os adeptos dos planos de aceleração do
crescimento, ou da irracionalidade exuberante como batizou Greenspan
(ex-presidente do Banco Central norte-americano), é que o que causa a
crise não é a carência, mas a abundância, a pletora.
Um raciocínio típico de Marx, isto é, não argumenta
com o adversário teórico pela negação de sua tese,
mas pela suposição de sua plena realização. No caso
concreto de nossa análise, afirma que a dinâmica do capital leva
à aparente confirmação do mito liberal, levando a
sociedade a uma espiral irresistível de produção, consumo
e reinvestimento; no entanto este reinvestimento sempre se dá, pela
própria concorrência, seja livre ou monopólica, alterando a
composição orgânica em favor do capital constante e,
portanto, alimentando a queda tendencial da taxa de lucro.
No momento agudo deste processo, o capital realizado ao final do ciclo, e que
deveria voltar ao início como novo capital inicial, encontra todo o
metabolismo do capital saturado de investimentos, muitos meios de
produção instalados, muitos trabalhadores empregados, muitas
mercadorias produzidas, e tudo isso com taxas de lucro menores. Em momentos
normais, o capital migra para outra área, seja para produzir outro tipo
de mercadoria, seja para outra região em busca de elementos que possam
baratear seus custos com força de trabalho, matérias primas ou
outros elementos do capital constante. No entanto, nas épocas que
antecedem às crises, considerando o capital total, é como se o
capital não encontrasse onde aportar e começa a parar.
Como o capital é, antes de qualquer coisa, movimento do valor em
constante processo de valorização, sua crise ocorre quando este
movimento se paralisa em algum ponto do ciclo do capital: como dinheiro que
não consegue virar crédito, como capacidade instalada e ociosa,
como força de trabalho contratada e impedida de trabalhar, como
mercadoria produzida e que não encontra o consumo na
proporção de sua oferta, ou ainda pior, como consumo realizado
que alimenta a fogueira da superacumulação.
Para que possamos entender o desfecho da crise e, principalmente, os efeitos
sobre a classe trabalhadora, é necessário recorrer a um
raciocínio essencial que Marx desenvolve ao tratar de sua tese sobre a
queda tendencial da taxa de lucro no Livro III de
O Capital:
as contratendências.
Marx precisava defender sua tese em um momento no qual o mito liberal esbanjava
saúde. A primeira grande crise do capital, entre os anos 1870 e 1880,
ofereceu para o autor os elementos centrais de sua afirmação. No
entanto, o capital estava destinado a sair dessa crise e de outras. É
preciso não confundir a teoria de Marx sobre a crise com qualquer
afirmação messiânica sobre uma crise final
catastrófica que levaria por si mesma ao fim do capitalismo
[5]
. Para o autor, o capital desenvolveria elementos contra-tendenciais que fariam
da queda na taxa de lucro uma tendência e das crises uma realidade
cíclica, ou seja, em outras palavras, não se trata de uma linha
descendente que culmina no fim do poço, mas de um movimento de
crescimento, auge, crise e retomada até novo ápice que leva a uma
nova crise.
As chamadas contratendências
[6]
seriam todas as ações empreendidas pelo capital no sentido de se
contrapor à queda na taxa de lucro. Podemos resumi-las da seguinte
maneira: a) aumento do grau de exploração da classe trabalhadora,
seja pelo aumento da jornada de trabalho, seja pela
intensificação do trabalho; b) redução dos
salários; c) redução dos preços dos elementos do
capital constante, tais como buscar matérias-primas mais baratas,
máquinas mais eficientes, subsídios para insumos e
serviços essenciais como aço, mineração, energia,
armazenamento, transporte e outros; d) formação de uma
superpopulação relativa, ou seja, reunir um contingente de
força de trabalho muito além das necessidades do capital e mesmo
além do exército industrial de reserva como forma de pressionar o
valor da força de trabalho para baixo; e) ampliação e
abertura de mercado externo como forma não apenas de desovar o excedente
produzido, como de encontrar fontes de matéria prima e recursos
abundantes, barateando seus custos; d) o aumento do capital em
ações, isto é, buscando compensar a queda na taxa de lucro
com juros oferecidos pelo mercado de papéis oferecidos por empresas ou
por títulos do Estado.
Notem que todas as contratendências escondem um sujeito oculto. Trata-se,
já no final de
O Capital,
de mais um embate, este decisivo, contra a ideologia liberal. Quem administra
os limites da exploração do trabalho, seja pelo tamanho da
jornada, seja pelas condições gerais da
contratação? Quem determina os limites legais da compra da
força de trabalho e seu valor? Quem pode baratear os elementos do
capital constante por meio de subsídios, créditos facilitados,
isenções e outros meios conhecidos? Quem assume o custo de
administração, manutenção e controle sobre uma
superpopulação relativa cujo papel é nunca entrar no
mercado e trabalho? Quem representa os interesses das corporações
monopólicas na ampliação, conquista e
manutenção de mercados em disputa com outros monopólios?
Finalmente, quem se presta ao papel de oferecer títulos que remuneram
com taxas de juros generosas sem se preocupar em perder dinheiro ou comprar de
volta títulos podres e sem valor?
Esse sujeito, que mal se oculta, só pode ser o Estado! Eis que se
desmorona a mãe de todos os mitos liberais: o Estado não deve
intervir na livre concorrência entre os indivíduos pela disputa de
riquezas e propriedades, resumido na tese da não
intervenção estatal na economia. Para Marx, o Estado sempre foi
um fator determinante no sociometabolismo do capital, em seu nascimento na
acumulação primitiva de capitais, na garantia das
condições gerais chamadas de extraeconômicas (garantia da
propriedade, subordinação legal e institucional da força
de trabalho ao capital, defesa da ordem, etc.) no período de ouro do
liberalismo, na representação dos monopólios na partilha e
repartilha do mundo, fazendo dos interesses das corporações o
interesse nacional; e, por fim e mais importante, nos momentos de crise em que
o custo da exuberância irracional, que levou à
apropriação indecente da riqueza socialmente produzida na forma
de acumulação privada, tem que ser socializado por toda a
Nação.
Além do evidente papel do Estado no comando e gerenciamento das
contratendências, fica evidente o caráter de classe destes
mecanismos, o que nos ajuda a entender os efeitos que recairão sobre os
trabalhadores. A intensificação da exploração, que
leva ao aumento do desgaste da força de trabalho e à
intensificação dos acidentes e das doenças profissionais;
a redução de salários, assim como a
precarização das condições de
contratação, com relativização e perda de direitos;
o aumento da superpopulação relativa, que tem por base a
intensificação da expropriação dos camponeses e de
todos que ainda conseguem manter seus meios diretos de trabalho, e que leva
à explosão urbana com todas suas consequências conhecidas
no campo da habitação, dos serviços essenciais como
educação e saúde, mas também no que se refere a
questão da violência e da criminalidade.
Mesmo as ações que aparentemente não se relacionam
diretamente com o agravamento das condições de
exploração e a precarização das
condições de vida dos trabalhadores acabam por ter efeitos muito
sérios sobre a vida de quem trabalha. Os subsídios e
isenções ao capital, para baratear os elementos do capital
constante ou ajudá-los a manter seus patamares de venda, só podem
sair do fundo comum do Estado e, portanto, à custa de cortes
dramáticos em serviços públicos duramente conquistados.
Só em uma semana, o governo brasileiro gastou R$50 mil milhões
para manter o valor do dólar, enquanto durante todo o ano anterior foram
gastos um pouco mais de R$ 20 mil milhões com a saúde, apenas
para ficar em um exemplo. As fortunas gastas para manter bancos em
funcionamento só podem sair do recurso público numa clara
expressão de privatizar a pequena parte da produção social
da riqueza que ficou no espaço publico, sem que em nenhum momento se
questione o volume da riqueza que no ciclo de crescimento permaneceu na esfera
da acumulação privada.
Talvez o mais grave quanto aos efeitos da ação do Estado na
gestão das contratendências para os trabalhadores e a
própria humanidade seja um aspecto para o qual Marx não deu maior
atenção: a expansão do mercado externo. Quando Marx
escrevia o último livro de
O Capital,
a ordem monopolista mal fazia sua estreia histórica. Para o autor,
tratava-se apenas de encontrar mercados para os produtos e encontrar fontes de
matérias-primas. Ocorre que, com o pleno desenvolvimento dos
monopólios, passa a ser decisivo, como estudou mais tarde Lenin, a
exportação de capitais, e daí a necessidade de controle
das áreas de influência, levando a constante partilha e repartilha
do globo, primeiro entre os monopólios e depois entre as
nações que os representam, levando à Guerra.
A fase imperialista e a prática da guerra, que lhe é
inseparável, fizeram desta contratendência quase que a
síntese da ação do Estado em defesa do capital e da
manutenção de suas taxas de lucro contra a tendências das
mesmas em cair. Não apenas pela enorme destruição material
que a Guerra causa, abrindo campo para novas inversões em
condições de lucratividade retomada em patamares
aceitáveis para o capital, como pelo próprio estabelecimento de
um complexo industrial-militar que vende ao Estado mercadorias que terão
que ser substituídas quer sejam ou não usadas (como no caso do
arsenal nuclear), como teorizou de forma precisa Mészáros.
Podemos resumir, afirmando que, na dinâmica das contratendências,
as vítimas são os trabalhadores, os beneficiários a
burguesia monopolista e o instrumento o Estado, não apenas como aparato
técnico jurídico-adiministrativo, mas também e
principalmente pela capacidade que lhe é própria de apresentar
como universal um interesse que é particular. Nesse campo, o da luta
política, a crise é o momento de retirar da gaveta do arsenal da
política burguesa a tese do pacto social.
No momento da crise se reapresentam todas as alternativas em disputa. Podemos
resumi-las em três posições: a) a afirmação
de que tudo não passa de um incidente, mais ou menos grave, mas de
qualquer forma um incidente que não compromete a estrutura do mito, ou
seja, basta voltar a crescer que os empregos voltam, o consumo cresce, e tudo
volta ao círculo virtuoso do capital; b) a retomada da crítica
keynesiana, que aparece simultaneamente como afirmação da ordem
do capital com todos os elementos que lhe são próprios (inclusive
a livre concorrência), mas que afirmará a necessidade de retomar
mecanismos de regulação, ou seja, não se trata de evitar a
livre concorrência, mas de regular certos aspectos para que suas
consequências inevitáveis não gerem condições
catastróficas que possam levar ao questionamento do sistema; c) a
alternativa socialista, ou seja, aquela que se fundamenta na
afirmação sobre a necessidade da produção social da
riqueza ser gerida também de forma social, levando à
acumulação social da riqueza ser concebida como valor de uso e
não mercadoria.
No presente quadro, a primeira, um pouco na defensiva e sem a arrogância
que caracterizou o último ciclo, não desaparecerá. Ela se
inscreverá na afirmação que basta o Estado dar os
elementos para que o capital volte a crescer, sem que interfira na disputa
econômica direta, por exemplo, através das
estatizações. A segunda, de corte keynesiana, será a mais
ativa e, portanto, mais enganosa e perigosa para os trabalhadores. Sob o manto
de uma necessidade comprovada de maior regulação, que
deverá se inscrever nos limites do mundo financeiro, pode chegar
até a defender, como aliás já está acontecendo,
algumas ações estatizantes. No entanto, esta opção
mal esconde uma enorme luta política que marcou o século XX. Foi
preciso ceder a determinadas demandas dos trabalhadores, por direitos e
condições de vida, frente à ameaça de
superação revolucionária da ordem, representada pelo
advento da revolução Russa de 1917.
A solução keynesiana, que não se revestiu no século
XX necessariamente com a forma de um Welfare State social democrata de perfil
europeu, nos EUA prevaleceu com o New Deal, mantendo a base de uma economia de
mercado fundada na livre concorrência, e na América Latina, por
exemplo, a regulação estatal se deu na forma de ditaduras
militares mais preocupadas com o Estado do que com o bem-estar. No quadro
conjuntural atual, de inflexão política, de desmonte e isolamento
das tímidas alternativas de transição socialista iniciadas
no século XX, os regulacionistas tendem a se comportar mais como
liberais contidos e responsáveis do que como social democratas.
Aos trabalhadores cabe uma outra ordem de tarefas. Primeiro: resistir,
não aceitando que o ônus da crise recai sobre o setor que mais se
penalizou no ciclo de crescimento. Não apenas lutando para que nenhum
direito lhe seja retirado, como se recusando a proposta do tipo
redução de jornada com redução de salário ou
qualquer precarização de suas já precárias
condições de contrato e de trabalho. Segundo: forçar o
Estado para que se recuse a usar o recurso público para dirimir perdas
ou incentivar produtividade de um setor da economia monopolizada, que lucrou
fortunas e as acumulou privadamente. Enquanto o governo se regojiza com a
informação de que os 20% mais pobres passaram de U$1,00 por dia
para U$2,00 de maneira que saíram de uma posição que os
colocava abaixo da linha da miséria para uma condição de
dignidade duvidosa na linha da miséria, as 500 maiores empresas do
Brasil, entre 2002 e 2007 viram seus lucros saltarem de R$ 2,9 mil
milhões para R$43 mil milhões.
Em terceiro lugar, está na hora de a classe trabalhadora deixar de optar
entre qual é a ortodoxia burguesa que mais lhe convém, se a
liberal ou a keynesiana, e dizer a pleno pulmões que as previsões
liberais ou regulacionistas, que prometiam que o crescimento econômico
levaria a uma paulatina diminuição das desigualdades sociais e a
um mundo justo e equilibrado, naufragaram triunfalmente. Depois os marxistas
é que são acusados de "determinismo econômico"! O
que é a tese de que os problemas sociais só se resolverão
com o crescimento econômico de tipo capitalista senão a mais
mecânica afirmação economicista?
O Brasil tinha como modelo os EUA e a Europa. Queríamos, na
expressão de Galeano, ser como eles. Pois bem, já somos. Somos
parte integrante do sistema capitalista mundial, no papel que nos cabe, como
área de saque do imperialismo. Uma área especial que, devido ao
grau de investimento imperialista dos grandes monopólios,
constituímos como uma formação social com um capitalismo
moderno e completo que inclusive ensaia seus primeiros movimentos no sentido do
imperialismo tupiniquim, como tem teorizado Virgínia Fontes, sem,
contudo, nunca sair de baixo das asas dos centros hegemônicos do
imperialismo mundial.
Devemos recusar o papel miserável de entrar no debate que busca
"como sair da crise". Devemos pautar o debate, o único que
interessa aos trabalhadores, sobre qual forma de sociabilidade atende os
interesses reais dos trabalhadores e da humanidade e pode, de quebra, evitar
que ciclicamente todo o esforço produtivo seja destruído por uma
nova crise que, para salvar o capital e suas taxas de lucro, destrói
produtos, fábricas e seres humanos em uma escala genocida. Para
nós, marxistas, existe essa alternativa: é necessário e
urgente que a produção social da vida liberte-se das
relações sociais de produção de tipo capitalista,
superando a propriedade privada dos meios de produção e
desenvolvendo as forças produtivas materiais como recursos coletivos e
patrimônio da humanidade, e não propriedade dos monopólios
burgueses, de maneira que possamos caminhar para a superação da
forma mercadoria e afirmar a centralidade do valor de uso.
Nossa meta socialista pode ser compreendida por aqueles que nos interessam que
a compreendam? Em grande parte esta é a arte da política, como
disse Bourdieu: a política é a arte de "fazer crer que se
pode fazer o que se diz"
[7]
. Nós acreditamos que sim e que podemos expressar os fundamentos de
nossa proposta através de três afirmações muito
simples: 1) ninguém pode se apropriar de recursos necessários
à produção das condições que garantem a
existência coletiva da humanidade; 2) ninguém pode se apropriar em
caráter privado da força de trabalho humana, pois ela é a
principal força de produção e o principal recurso comum da
espécie para garantir sua existência, não podendo assumir a
forma de uma mercadoria; e 3) a riqueza coletivamente produzida não pode
ser acumulada privadamente.
Como dizia Brecht, "uma coisa muito simples, dificílima de ser
feita". No entanto, nesse ponto a crise nos ajuda, Nunca ficou tão
didático o caráter destrutivo da atual forma do capitalismo
monopolista e imperialista, nunca ficou tão evidente a falácia do
mito liberal, nunca foi tão urgente dotar a humanidade de uma
alternativa para além da ordem do capital.
Os liberais, velhos, neos e recentes; os pós-modernos,
pós-industriais, pós-socialistas; todos timidamente voltam ao
"refugo das livrarias vermelhas", ao qual Keynes havia condenado a
leitura marxista como nada tendo de aplicabilidade prática para os
tempos modernos, para discretamente voltar a ler Marx e entender o que se
passou e o que seus ideólogos não conseguem lhes explicar.
Marx,
hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa América
Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez mais de carne,
osso, sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia em fantasmas.
Notas
1 Apresentado inicialmente no Seminário sobre a Crise Econômica
Mundial, promovido pelo PCB São Paulo em novembro de 2008 e modificado
para a publicação.
2 Offe, Claus.
Capitalismo desorganizado.
São Paulo: Brasiliense, 1984,
p. 195.
3 Keynes, John Maynard.
A short view of Rússia
[1925]. Apud Meszáros, Istvan.
Para além do Capital.
São Paulo: Boitempo, 2002, p. 16.
4 "Max Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx nas suas
previsões". (Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice:
o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:
Cortez, 1999, p. 34.) Do mesmo autor podemos citar a seguinte passagem:
"Se o marxismo é uma ciência tem que se submeter à
prova dos fatos e os fatos não vão no sentido previsto por
Marx" (idem p. 25)
5 Para uma análise crítica sobre a tese da crise final, ver
O encontro da revolução com a História,
de Valério Arcary (São Paulo: Xamã/ Institute Rosa Sundermann, 2006)
6 Ver o capítulo XIV, do livro III, volume 4 de
O Capital
de Karl Marx.
7 Bourdieu, Pierre.
O poder simbólico.
Rio de Janeiro: Bertran Brasil,
1998, p. 185.
[*]
Membro do Comitê Central do
PCB
.
O original encontra-se em
pcb.org.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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