Missão impossível
Mariana Mazzucato, uma economista ítalo-americana, que trabalha e reside
em Londres, tornou-se um nome importante naquilo a que podemos chamar o
"centro-esquerda" ou mesmo nos círculos económicos e
políticos dominantes. Publicou um novo livro,
Mission Economy: a moonshot guide to changing capitalism
.
Mazzucato foi, durante algum tempo, consultora económica do Partido
Trabalhista do Reino Unido sob Corbyn e McDonnell; segundo parece, é
muito bem aceite por Alexandria Ocasio-Cortez, representante radical no
Congresso; foi consultora da senadora Elizabeth Warren, candidata Democrata
à presidência, e também de Nicola Sturgeon, o líder
nacionalista escocês. Até a alcunharam de
"a economista mais assustadora do mundo"
porque as ideias delas pareciam abalar as coisas entre o ótimo e
o bom. Segundo o jornal
London Times,
"admirada por Bill Gates, consultada por governos, Mariana Mazzucato
é a especialista com que os outros discutem por sua conta e risco".
Contudo, embora, segundo parece, tenha começado como consultora da
esquerda do espectro político, mais recentemente passou a estar
disponível para toda a gente. Rapidamente abandonou o seu papel de
conselheira de Corbyn. Segundo um crítico do seu novo livro,
"Mazzucato rapidamente reconheceu que o seu papel enquanto consultora de
Corbyn não tinha futuro e demitiu-se ao fim de dois meses".
Ela disse:
"As pessoas que, de facto, puxavam os cordelinhos eram Seumas Milne e
outros. E eu pensei, se querem fazer o que vos apetece, façam-no. Mas
não o façam em meu nome".
disse ela ao
Daily Mail.
O
Mail
comentou:
"Após este breve namoro com o tipo errado de políticos,
está interessada em assinalar que trabalhou de perto com os Tories,
aconselhando Greg Clark, entre outros, sobre a sua estratégia
industrial, quando ele ocupou o papel sempre em mutação de
secretário de Estado para Negócios".
Mazzucato agora é consultora de governos e instituições, a
nível internacional
(
Policy Papers: Mariana Mazzucato
)
e aparece em diversos fóruns e seminários. A
Organização Mundial de Saúde nomeou-a chefe do seu
Conselho sobre a economia da Saúde para Todos em 2020. Recentemente, ela
elogiou a nomeação (sem eleição) de Mario Draghi,
antigo diretor do Banco Central Europeu e banqueiro central, para
primeiro-ministro da Itália, presumivelmente porque ele vai salvar a
economia da Itália. Afinal,
não é assim tão assustadora
.
Analisei os livros anteriores de Mazzucato (muito mais importantes),
The Entrepreneurial State
e
Value of Everything
noutros artigos publicados. Neste último livro, ela retoma o seu
argumento principal nesses outros livros, ou seja, que o setor público
deve ser o líder nas economias modernas. "
Em vez de agir como
investidores de primeiro recurso
, demasiados governos passaram a ser passivos
emprestadores de último recurso
, resolvendo problemas só depois de eles surgirem. Mas, como
devíamos ter aprendido durante a Grande Recessão pós-2008,
é muito mais dispendioso salvar as economias nacionais durante uma crise
do que manter uma abordagem proativa de investimento público".
Com toda a razão, assinala que
"quanto mais subscrevermos o mito da superioridade do setor privado, pior
ficaremos perante crises futuras".
O papel da inovação com financiamento público e da
investigação e desenvolvimento de propriedade pública tem
sido deliberadamente minimizado pelos
media
dominantes. No entanto, foi a investigação financiada com
dinheiros públicos
que levou à produção acelerada das vacinas para a pandemia da Covid
e têm sido os serviços de
saúde públicos que têm proporcionado a melhor resposta na
redução das mortes da pandemia.
Mazzucato deseja, com toda a razão, repor e proclamar a "narrativa
do governo como fonte de
value creation
(embora eu defenda, na minha análise do último livro dela, que o
governo não cria valor enquanto lucro para o capital mas
usa valores para a sociedade uma distinção que
Mazzucato não reconhece, mas os capitalistas sim). Ela menciona, por
exemplo, que um empréstimo da administração de Obama foi
fundamental para o êxito da Tesla e que um programa de literacia
informática da BBC nos anos 80, levou à fundação
duma importante empresa de desenvolvimento de software e à
criação de um computador de baixo custo usado nas
escolas de todo o mundo.
Mas, sobretudo neste livro, ela pretende promover o modelo da missão
espacial Apollo à Lua como a via para o desenvolvimento de
inovações e a sua difusão por toda a economia, aquilo a
que chama uma abordagem "orientada para uma missão".
Conforme ela diz:
"O programa Apollo demonstrou como um resultado claramente definido pode
impulsionar uma mudança organizativa a todos os níveis,
através da colaboração multissetorial
público-privada, contratos de fornecimento orientados para a
missão, e inovação e aceitação de riscos
assumidos pelo estado. Além disso, essas iniciativas têm
tendência a criar efeitos colaterais
software, telemóveis, leite em pó para bebés que
têm benefícios de longo alcance".
E o que esse modelo mostra, afirma ela, é que
"colocar um homem na Lua exigiu um setor público extremamente
competente e uma parceria com o setor privado orientada para o objetivo".
Assim, aquilo de que o capitalismo precisa é uma parceria
"orientada para um objetivo" entre os setores público e
privado:
"Os projetos ambiciosos devem ser considerados não como grandes
empreendimentos isolados, talvez o projeto preferido de um ministro, mas como
metas sociais ousadas que podem ser atingidas com a colaboração
em grande escala entre entidades públicas e privadas".
Segundo parece, precisamos de
"uma abordagem a um portfólio ousado, uma nova
concepção de instrumentos como os suprimentos e uma adequada
teoria económica para confrontar de frente a direccionalidade do
crescimento"
o que quer que signifique "confrontar a direccionalidade do
crescimento".
Mazzucato reconhece que as chamadas parcerias público-privadas do
passado não funcionaram com frequência no interesse
público.
"Não podemos repetir os fracassos associados à economia
digital de hoje, que surgiram na sua atual forma depois de o estado ter
proporcionado
a base tecnológica e depois ter negligenciado a
regulamentação do
que foi criado com ela. Em consequência disso, algumas empresas
dominantes, de alta tecnologia, deram início a uma nova era de
extração de valor
algorítmico, beneficiando essas poucas
às custas de muitas".
Em vez disso, temos de
"captar uma
visão comum
sobre a sociedade civil, as empresas e as instituições
públicas".
Ela argumenta que as parecerias público-privadas concentraram-se em
reduzir os riscos do investimento através de garantias, subsídios
e assistência. Em vez disso, deviam dar preferência à
partilha dos riscos e das recompensas. Assim os governos e as empresas
capitalistas devem partilhar os riscos e depois partilhar as recompensas. Esta
ideia mostra a dificuldade inerente na abordagem da missão. A
missão para ultrapassar a pandemia Covid já mostrou qual o setor
que assumiu os riscos e quem vai ganhar as recompensas como aconteceu
com a missão Apollo.
Mazzucato considera que é necessária uma
reavaliação fundamental do papel do setor público que
vá além da estrutura tradicional de "falha do mercado"
derivada da economia neoclássica de bem-estar, para um papel de
"criação conjunta de mercado" e
"modelação de mercado".
"Não se trata de consertar mercados, mas de criar mercados".
Mas a missão do governo deverá ser "criar mercados" ou
"modelar mercados"? Será realmente possível que o setor
público tenha permissão para assumir a liderança no
investimento para fins sociais em vez do investimento para
obtenção de lucros do capitalismo? Será realmente
possível que possa ser "captada" uma "visão
comum" entre as grandes empresas com o seu fito nos lucros para os
acionistas e os governos que podem ter objetivos diferentes? Poderá a
alteração climática e o aquecimento global serem
invertidos enquanto a indústria de combustíveis fósseis se
mantenha intocada pelos governos? Poderá a desigualdade crescente ser
invertida por intermédio de qualquer "visão comum
público-privada? Poderá o desemprego tecnológico ser
evitado quando as grandes empresas tecnológicas utilizam robôs e a
IA para substituir a mão de obra humana? Poderá realmente ter
êxito uma missão de abordagem tipo "viagem à Lua"
com base numa parceria com grandes empresas e "criando mercados",
dada a estrutura social do capitalismo moderno? Quando fazemos estas perguntas,
penso que a resposta é clara.
Na verdade, alguns destes esquemas de abordagem a uma missão que
Mazzucato cita no seu livro têm tido tão pouco êxito quanto
as "parcerias público-privadas" anteriores. Ela aconselhou a
Energiewende da Alemanha (transição energética para as
renováveis), que não conseguiu melhores resultados do que outros
na redução das emissões de carbono. Aconselhou os
nacionalistas escoceses a lançar o seu Banco Nacional Escocês de
Investimentos. Ao fim de dois meses, o governo SNP cortou o financiamento de
241 milhões de libras para 205 milhões de libras, uma quantia
ridícula para começar. Quando os Trabalhistas, com Corbyn,
propuseram pela primeira vez esse Banco, era para ser capitalizado com
20 000 milhões de libras! E quanto à
'Operation Moonshot'
do primeiro-ministro Johnson do Reino Unido, para testes e rastreamento em
massa, nem vale a pena falar.
E como devem ser controladas democraticamente essas missões para
conseguir "uma visão comum"? Mazzucato diz que será
necessário
"envolver os cidadãos na resolução de problemas
sociais e criar um amplo entusiasmo cívico quanto ao poder da
inovação coletiva".
Utilizando este calão, parece estar a dizer que os
políticos, os investigadores (como ela própria) e as empresas
vão reunir-se e escutar os "cidadãos" não se
sabe como, e daí sairá um conjunto de "missões"
para inovação amplamente aprovado.
Mazzucato resume:
"A Economia da Missão oferece uma via para rejuvenescer o estado e
desse modo emendar o capitalismo, em vez de lhe pôr fim".
Na minha opinião, esta é uma missão impossível.
20/Fevereiro/2021
[*]
Economista. Autor de
Marx 200 - a review of Marx's economics 200 years after his birth
,
The Great Recession
,
The Long Depression
.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2021/02/20/mission-impossible/
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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