G20: a solução da dívida
Neste fim-de-semana
haverá a cimeira de líderes do G20
não fisicamente é claro, mas através de
vídeo. Orgulhosamente hospedada pela Arábia Saudita, aquela
fortaleza de democracia e direitos civis, os líderes do G20 estão
a centrar-se no impacto da pandemia COVID-19 sobre a economia mundial.
Os líderes estão particularmente alarmados pelo enorme aumento
nos gastos governamentais engendrados pela recessão
(slump)
que obrigou os principais governos capitalistas a fim de atenuar o impacto
sobre os negócios, grandes e pequenos, e sobre extractos amplos da
população trabalhadora. O
FMI estima
que os estímulos orçamentais e monetários somados
apresentados pelas economias avançadas foram iguais a 20 por cento do
seu produto interno bruto. Países de rendimento médio no mundo em
desenvolvimento só conseguiram fazer menos mas ainda assim eles
avançaram com uma resposta combinada conjunta igual a 6 ou 7 por cento
do PIB, segundo o FMI. Para os países mais pobres, contudo, a
reacção foi muito mais modesta. Em conjunto eles injectaram
gastos iguais a apenas 2 por cento do seu produto nacional muito mais pequeno
em reacção à pandemia. Isto deixou as suas economias muito
mais vulneráveis a uma recessão prolongada, empurrando
potencialmente milhões de pessoas para a pobreza.
A situação está a tornar-se mais urgente pois o sofrimento
da crise da pandemia começa a ser sentido. A
Zâmbia nesta semana
tornou-se o sexto país em desenvolvimento a incumprir ou reestruturar
dívidas em 2020 e outros mais são esperados quando o custo
económico do vírus aumenta mesmo em meio a boas
notícias acerca de vacinas potenciais.
O
Financial Times
comentou que: "alguns observadores pensam que mesmo grandes países
em desenvolvimento tais como o Brasil e a África do Sul, os quais
estão no grupo G20 de países grandes, poderiam enfrentar desafios
severos em obter financiamento nos próximos 12 a 24 meses".
Até agora muito pouco tem sido feito pelos governos G20 para evitar ou
atenuar este desastre da dívida que se aproxima. Em Abril, Kristalina
Georgieva, a directora administradora do FMI, disse que as necessidades de
financiamento dos mercados emergente e países em desenvolvimento
estariam nos "milhões de milhões de dólares". O
próprio FMI concedeu US$100 mil milhões em empréstimos de
emergência. O Banco Mundial reservou US$160 mil milhões para
emprestar ao longo de 15 meses. Mas mesmo o Banco Mundial considera que
"países de baixo e médio rendimento precisarão de
US$175 a US$700 mil milhões por ano".
A única inovação coordenada foi uma iniciativa de
suspensão do serviço de dívida (DSSI) anunciada em Abril
pelo G20. O DSSI permitiu que 73 dos países mais pobres do mundo
adiassem reembolsos. Mas fazer uma pausa nos pagamentos não é
solução a dívida permanece e mesmo que os governos
G20 façam alguma nova atenuação, credores privados
(bancos, fundos de pensão, hedge funds e
bonds vigilantes
") continuam a exigir o seu quinhão.
Em economias avançadas e em algumas economias de mercado emergentes,
compras pelo banco central de dívidas do governo ajudaram a manter taxas
de juro em baixas históricas e apoiaram tomadas de empréstimos
governamentais. Nestas economias, a resposta orçamental para a crise tem
sido maciça. Contudo, em muitos mercados emergentes de países
altamente endividados e em economias de baixo rendimento, os governos têm
um espaço limitado para aumentar a contracção de
empréstimos, o que prejudica sua capacidade para ampliar o apoio
àqueles mais afectados pela crise. Estes governos enfrentam escolhas
duras. Exemplo: em 2020 [o rácio] dívida-receita governamental
atingirá mais de 480% nos 35 países sub-saarianos
elegíveis para o DSSI.
Mesmo antes de estalar a pandemia, a dívida global já havia
alcançado níveis recorde. De acordo com o IIF, em mercados
"maduros", a dívida ultrapassou 432% do PIB no terceiro
trimestre de 2020, mais de 50 pontos percentuais acima em relação
ao ano anterior. A dívida global no total terá alcançado
US$277 milhões de milhões
(trillion)
no fim do ano, ou 365% do PIB mundial.
Grande parte do aumento da dívida entre as chamadas economias em
desenvolvimento reside na China onde bancos estatais expandiram
empréstimos, enquanto instituições financeiras paralelas
("
shadow banking
") aumentaram e governos locais executaram mais projectos em propriedades
e infraestruturas utilizando vendas de terra para financiá-los ou
mediante contracção de empréstimos.
Muitos sabichões ocidentais consideram
que, em consequência, a China está a caminhar para uma grande
crise de incumprimento que prejudicará seriamente o governo de Pequim e
a economia. Mas tais previsões têm sido feitas durante as
últimas duas décadas desde o pequeno "reajustamento de
activos" depois de 1998. Apesar do aumento nos níveis de
dívida na China, uma tal crise é improvável.
Primeiro, a China, ao contrário de outras grandes e pequenas economias
emergentes com dívidas altas, tem uma reserva maciça de divisas
estrangeiras de US$3 milhões de milhões. Segundo, menos de 10% da
sua dívida é para com estrangeiros, ao contrário de
países como Turquia, África do Sul e grande parte da
América Latina. Terceiro, a economia chinesa está em crescimento.
Ela recuperou-se da recessão da pandemia muito mais rapidamente do que
as outras economias do G20, as quais permanecem em recessão.
Além disso, se quaisquer bancos ou companhias financeiras faliram (e
algumas o fizeram), o sistema bancário do Estado e o próprio
Estado posiciona-se por trás prontos a escorar a despesa ou permitir a
"reestruturação". E o Estado chinês tem o poder
de reestruturar o sector financeiro
como mostra o recente bloqueio do planeado lançamento do "finbank" de Jack Ma
. A qualquer sinal grave de que o sector financeiro chinês e de bens
imóveis está a ficar demasiado "grande para falir", o
governo pode actuar e assim o fará. Não haverá qualquer
colapso financeiro. Este não é quadro no resto do G20.
E o mais importante é que globalmente a ascensão da dívida
não foi apenas da dívida do sector público mas
também do sector privado, especialmente dívida corporativa.
Empresas por todo o mundo expandiram seus níveis de dívida
enquanto as taxas de juro eram baixas ou mesmo zero. As grandes companhias
tecnológicas assim fizeram a fim de entesourar cash, comprar de volta
acções para promoverem o seu preço ou persistirem nas
fusões, mas as companhias mais pequenas, onde a lucratividade tem sido
baixa durante uma década ou mais, mal conseguiram manter as suas
cabeças acima da água. Este último grupo tornou-se cada
vez mais zumbificado (isto é, os lucros não são
suficientes sequer para cobrir os encargos de juros sobre a dívida).
Isto é uma receita para incumprimentos futuros, se e quando, as taxa de
juro ascendessem.
O que deve ser feito? Uma solução apresentada é mais
crédito. No G20, os funcionários do FMI e outros
insistirão não só numa extensão do DSSI, como
também numa duplicação do poder de fogo de crédito
do FMI através dos Direitos de Saque Especiais (DSE). Esta é uma
forma de moeda internacional, tal como o ouro neste sentido, mas ao
invés uma moeda fiduciária avaliada pelo cabaz das divisas
principais como o dólar, o euro e o yen e emitida apenas pelo FMI.
O FMI emitiu-os em crises passadas e proponentes dizem que deveria
fazê-lo agora. Mas a proposta foi vetada pelos EUA em Abril
último. "Os DSE significam dar liquidez incondicional a
países em desenvolvimento", diz Stephanie Blankenburg,
responsável por dívida e desenvolvimento financeiro da UNCTAD.
"Se países avançados não podem concordar sobre isto,
então todo o sistema multilateral está quase na bancarrota".
Quão verdadeiro isto é. Mas será alguma
solução ainda mais dívida (desculpem, 'crédito')
acumulada no topo da montanha, mesmo a curto prazo? Por que é que os
líderes do G2 não concordam em eliminar as dívidas dos
países pobres e por que é que não insistem em que os
credores privados façam o mesmo?
Evidentemente, a resposta é óbvia. Significaria enormes perdas a
nível mundial para os detentores de obrigações e bancos,
possivelmente gerando uma crise financeira nas economias avançadas. Numa
altura em que os governos estão a experimentar enormes défices
orçamentais e níveis de dívida pública bem acima de
100% do PIB, eles então confrontar-se-iam com um mega salvamento de
bancos e instituições financeiras pois o fardo da dívida
emergente viria mordê-los em casa.
Recentemente, o antigo economista chefe do Banco de Pagamentos Internacionais
(BIS, na sigla em inglês), William White,
foi entrevistado sobre o que fazer
. White é um antigo membro da
escola austríaca de teoria económica
, a qual culpa as crises no capitalismo não a quaisquer
contradições inerentes no interior deste modo de
produção mas sim à expansão "excessiva" e
"incontrolada" do crédito. Isto acontece porque
instituições fora do "perfeito" funcionamento dos
mercados monetários capitalistas interferem nos juros e na
criação monetária, em particular os bancos centrais.
White põe a causa da iminente crise de dívida às portas
dos bancos centrais. "Ao longo das últimas três
décadas, eles têm prosseguido políticas erradas, que
têm causado uma dívida cada vez maior e uma instabilidade cada vez
maior no sistema financeiro". E prossegue: "O meu ponto é: os
bancos centrais criam as instabilidades, depois têm de salvar o sistema
durante a crise e com isso criam ainda mais instabilidades. Continuam a
disparar sobre o próprio pé".
Há alguma verdade nesta análise, como mesmo a Reserva Federal
admitiu
no seu último relatório
sobre a estabilidade financeira nos EUA. Houve um aumento de US$7
milhões de milhões nos activos dos bancos centrais do G7 em
apenas oito meses, em contraste com o aumento de US$3 milhões de
milhões no ano que se seguiu ao colapso do Lehman Brothers, em 2008. O
Fed admitiu que a economia mundial estava em dificuldades antes da pandemia e
precisava de mais injecções de crédito: "a seguir a
uma longa recuperação global da crise financeira de 2008, as
perspectivas de crescimento e de lucros empresariais haviam enfraquecido no
início de 2020 e tornaram-se mais incertas". Mas embora as
injecções de crédito tenham engendrado um
"declínio nos custos financeiros reduziu os encargos da
dívida", encorajou uma maior acumulação de
dívida que, juntamente com o declínio da qualidade dos activos e
a redução dos padrões de subscrição de
crédito "significou que as empresas ficaram cada vez mais expostas
ao risco de uma desaceleração económica material ou de um
aumento inesperado das taxas de juro. Os investidores tornaram-se assim mais
susceptíveis a mudanças súbitas no sentimento do mercado e
a um aperto das condições financeiras em resposta a choques".
Na verdade, as injecções dos bancos centrais deram um
pontapé de saída ao problema, mas nada resolveram: "As
medidas tomadas pelos bancos centrais destinavam-se a restaurar o funcionamento
do mercado e não a resolver as vulnerabilidades subjacentes que fizeram
com que os mercados ampliassem o stress. O sistema financeiro permanece
vulnerável a outra tensão de liquidez, pois as estruturas e
mecanismos subjacentes que deram origem à turbulência ainda
estão em vigor". Assim, crédito tem sido acumulado sobre
crédito e a única solução é mais
crédito.
White defende outras soluções. Diz ele: "Não
há retorno a qualquer forma de normalidade sem tratar da dívida
pendente. Esta é o elefante na sala. Se concordarmos em que a
política dos últimos trinta anos foi criada como uma montanha
sempre crescente de dívida e instabilidades sempre crescentes no
sistema, então precisamos de tratar disso".
Ele apresenta "quatro caminhos para nos livrarmos de dívidas podres
pendente. Uma: famílias, corporações e governos tentam
poupar mais para reembolsar a sua dívida. Mas sabemos que isto resulta
no Paradoxo Keynesiano da Frugalidade, em que a economia colapsa. De modo que
isto leva ao desastre". Assim, não vamos para a
"austeridade".
O segundo caminho: "você pode tentar singrar seu caminho de
saída de uma vida pendente através de mais forte crescimento
económico real. Mas sabemos que uma dívida pendente impede o
crescimento económico real. Naturalmente, deveríamos tentar
aumentar o potencial de crescimento através de reformas estruturais, mas
é improvável que isto constitua a bala de prata que nos
salvará". White diz que o segundo caminho não pode funcionar
se o investimento produtivo for demasiado baixo porque o fardo da dívida
é demasiado alto.
O que White omite aqui é que é o baixo nível de
lucratividade do capital existente que dissuade os capitalistas a investirem
produtivamente com o seu crédito extra. Por "reformas
estruturais" White quer dizer despedir trabalhadores e
substituí-los com tecnologia e destruir o que resta de direitos e
condições de trabalho. Isso pode funcionar, diz ele, mas
não pensa que isto será suficientemente implementado pelos
governos.
White prossegue: "Isto deixa apenas os dois caminhos remanescentes:
crescimento nominal mais alto isto é, inflação mais
alta ou tentar livrar-se da dívida podre pela
reestruturação e seu cancelamento". Inflação
mais alta pode bem ser uma opção,
uma opção que políticas keynesianas/MMT adoptariam
[NT]
, mas de facto ela significa que a dívida é liquidada em termos
reais pela redução de padrões de vida da maior parte do
povo e atingindo o valor real dos empréstimos feitos pelos bancos. Os
devedores ganham a expensas dos credores e do trabalho.
White, como bom austríaco, opta pelo cancelamento das dívidas.
"Esta é a opção que aconselharia fortemente. Abordar
o problema, tentar identificar as dívidas podres e reestruturá-la
de um modo tão ordeiro quando possível. Mas sabemos quão
extremamente difícil é juntar credores e devedores para fazer
isto cooperativamente. Nossos procedimentos actuais são completamente
inadequados". Na verdade, além do FMI e do G20 não há
quaisquer "estruturas" para fazer isto, estas
instituições importantes não querem provocar um crash
financeiro e uma recessão mais profunda "liquidando" a
dívida, como foi proposto por responsáveis do US Treasury durante
a Grande Depressão da década de 1930.
Ao invés disso, o G20 concordará em estender o plano de adiamento
de pagamentos do DSSI, mas não em cancelar quaisquer dívidas.
Provavelmente nem mesmo concordará em expandir o fundo de DSE. Em vez
disso, esperará apenas sair-se de alguma maneira deste emaranhado a
expensas dos países pobres e do seu povo e do trabalho
globalmente.
21/Novembro/2020
[NT]
MMT
: Moderna Teoria Monetária.
[*]
Economista, autor de
The Long Depression
.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2020/11/21/g20-the-debt-solution/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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