Gulliver no país da macroeconomia
Quando Jonathan Swift escreveu
As Viagens de Gulliver,
uma sátira sobre as vaidades que animam a política e as guerras
entre as nações, a teoria económica ainda não havia
nascido. Sem embargo, já existiam reflexões sobre os
preços e a quantidade de moeda em circulação O mesmo Swift
participou de uma controvérsia sobre uma reforma monetária na
Irlanda, opondo-se à introdução de moedas de cobre,
argumentando que o valor de cada unidade se degradaria e a moeda de má
qualidade deslocaria a moeda de boa qualidade da circulação, a
qual seria entesourada.
Em sua história, Lemuel Gulliver chega ao país de Lilliput e se
surpreende com sua população de homúnculos (15
centímetros de altura), mas não estranha que no reino exista uma
economia com moeda própria, um tesouro público,
empréstimos e taxas de juros. Ao mesmo tempo, as classes sociais, a
divisão do trabalho e as diferenças hierárquicas e
órgãos de governo lhe revelam que não é
possível agrupar todo o complexo tecido social numa única
entidade. A heterogeneidade de grupos sociais impedia a agregação
de todos os minúsculos indivíduos para pensar em um único
capaz de representar todo o reino. Gulliver percebeu que Lilliput era mais que
a soma de suas partes.
A obra de Swift foi um êxito. Porém, algum tempo depois os
economistas ressuscitaram a ideia de que a agregação de
indivíduos para conformar uma única entidade era, sim,
possível. Em 1890 Alfred Marshall utilizou a noção de
firma representativa (em seus
"Princípios de Economia"
) para analisar a oferta de mercadorias. O objectivo era representar uma
única curva de oferta de bens a nível agregado com as mesmas
características das curvas de custo médio e marginal das firmas
individuais. Sua ideia era a de que a agregação de todas as
firmas daria como resultado uma firma que pudesse representa-las para fins
analíticos. Em 1928, o economista italiano Piero Sraffa demonstrou que
isso era impossível e desmontou as bases analíticas do conceito
de Marshall. Porém, em 1970 o economista Robert Lucas começou a
utilizar a noção de agente representativo em modelos
macroeconómicos. Nos anos seguintes, o enfoque de Lucas revolucionou a
forma de se fazer teoria e política macroeconómica.
Desgraçadamente, o movimento desencadeado por Lucas e associados
pôs a teoria e a política macroeconómica no caminho do
obscurantismo e da superstição. A noção de agente
representativo foi utilizada por Lucas para agregar fundamentos
microeconómicos à teoria macroeconómica, conferindo-lhe
rigor e consistência. Os modelos inspirados nesta corrente reduzem o
problema económico duma economia às decisões que o agente
representativo deve tomar sobre a optimização, a escolher entre o
consumo, o trabalho e o lazer. Tem-se como dado que em tais modelos não
existe o desemprego involuntário, somente o lazer.
Em 1974, três economistas do
establishment
(Hugo Sonnenschein, Rolf Mantel e Gerard Debreu) demonstraram com seus
teoremas matemáticos que a agregação dos agentes
individuais utilizados nos modelos neoclássicos não permite
reencontrar as propriedades de racionalidade que a teoria convencional atribui
aos agentes individuais, isto é, a ideia de um consumidor racional que
reduz a compra de uma mercadoria quando seu preço se eleva não se
conserva no agregado. Em outras palavras, o consumidor representativo pode
comportar-se de maneira absurda e decidir comprar mais de uma mercadoria ainda
que seu preço esteja a aumentar. Certamente isso destrói a ideia
de que os mercados sempre alcançam um equilíbrio entre a oferta e
a procura.
Porém, a quem os resultados científicos estorvam quando tudo que
se busca é uma bela ideologia? Os teoremas de Sonnenschein-Mantel-Debreu
foram convenientemente ocultados e exilados das aulas onde se ensina a teoria
económica. E os modelos macroeconómicos de expectativas racionais
com agentes representativos seguiram como o cavalo de batalha dos bancos
centrais e dos ideólogos do neoliberalismo. Claro, sofreram
várias metamorfoses (modelos de ciclos de negócios, modelos
neokeynesianos e novos clássicos) e passaram por sessões de
maquiagem matemática e econométrica para disfarçar a
estultice (modelos dinâmicos estocásticos de equilíbrio
geral). Talvez o resultado mais conveniente desses modelos seja que as crises
viram fumaça.
A teoria macroeconómica neoclássica está doente. Do ponto
de vista científico, o programa reducionista da teoria
macroeconómica baseado na possibilidade de agregar os habitantes de
Lilliput para conceber uma espécie de novo Gulliver conduz a resultados
aberrantes. O mundo que nos rodeia é heterogéneo e
orgânico. Se continuamos a utilizar o reducionismo (o todo é igual
à soma de suas partes) na macroeconomia, não é por suas
virtudes analíticas e sim por sua eficácia ideológica.
18/Julho/2018
[*]
Economista.
O original encontra-se em
www.jornada.com.mx/2018/07/18/opinion/020a1eco
. Tradução de LL.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|