O complexo militar-industrial-humanitário:
A expansão da hegemonia ocidental com o pretexto da virtude
por Tomasz Pierscionek
[*]
Shakespeare escreveu uma vez que até o diabo pode citar as Escrituras
para alcançar os seus objetivos. Hoje em dia, vemos termos como
"humanitário" e "democracia" serem usados de forma
abusiva para justificar a morte e a destruição.
Palavras tradicionalmente dignas, como "humanitarismo" e
"democracia", adquiriram um significado sombrio e cínico
depois de sua apropriação indevida para justificar a
invasão de nações soberanas e promover o domínio
militar e cultural ocidental pelo mundo. Os grandes media, ao lado de alguns
ativistas de direitos humanos, ajudam este empreendimento colaborando na
difusão de mentiras e aproveitando as emoções de medo,
hostilidade e repulsa para tornar a opinião pública dócil
e fazer com que a agressão contra um Estado soberano pareça
justificada.
Em consonância com às mentiras vindas de políticos de que
Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa que
podiam ficar disponíveis em 45 minutos, foi lançada uma
estratégia para chocar a opinião pública e aceitar a
invasão através de manchetes que chamavam a atenção
para indignar leitores com "provas" das carnificinas de Saddam,
gerando fortes reações emocionais que levariam as pessoas a
pensar com seus corações e não com suas cabeças.
Uma dessas histórias, escrita pela parlamentar trabalhista Ann Clwyd e
publicada no
The Times
dois dias antes da coligação liderada pelos EUA
começar a destruir o Iraque, afirmava que Saddam possuía uma
"máquina destruidora de humanos" na qual os adversários
eram transformados em comida para peixes. O artigo, intitulado: "Vejam
homens feitos em pedaços e depois digam que não apoiam a
guerra", teve o duplo efeito de levar o leitor a sentir repulsa e de fazer
os grupos contra a guerra parecessem insensíveis e indiferentes à
situação do povo iraquiano. A existência de um triturador
de humanos foi posteriormente
contestada
e tal máquina nunca foi encontrada.
Os verdadeiros crimes de Saddam eram conhecidos pelos serviços de
intelligencia
dos EUA, que o informavam sobre a localização de tropas
iranianas durante a guerra Irão-Iraque nos anos 80, sabendo que ele
usaria gás mostarda e gás sarin. Os EUA também forneceram
bombas de fragmentação
(cluster bombs)
a Saddam e ajudaram-no a adquirir agentes para a
preparação de armas químicas. A Human Rights Watch, com
sede nos EUA, estimou que Saddam matou pelo menos
290 mil
pessoas de seu próprio povo enquanto esteve no poder. No entanto, este
número é diminuto em relação ao número de
iraquianos que se acredita terem morrido na sequência da invasão
de 2003, devido às forças de ocupação,
violência sectária ou ISIS
estimado
em centenas de milhares, se não superior a um milhão.
A estratégia psicológica de choque e terror foi novamente
empregada na preparação do bombardeamento da NATO à
Líbia, já que o
relacionamento
dos EUA e Reino Unido com Kadafi pioraram depois de ele planear
começar a vender petróleo em dinares (uma nova moeda pan-africana
apoiada em ouro) em vez de dólares ou euros, encorajando os seus
vizinhos africanos a seguirem o exemplo. A divulgação dos e-mails
de Hillary Clinton no final de 2015 revelou que esse movimento teria
fortalecido
as economias africanas e levado à competição entre o dinar
e o dólar ou o euro.
Nessa ocasião, fomos enganados com a desculpa de que bombardear a
Líbia e apoiar os rebeldes anti-Kadafi, incluindo
elementos
filiados na Al-Qaeda, era necessário dado que Kadafi estava prestes a
cometer um
massacre
contra o povo da cidade de Benghazi controlada pelos rebeldes. Outra
afirmação emotiva destinada a moldar a opinião
pública para aceitar a guerra afirmou que Kadafi estava a dar aos seus
soldados Viagra para que eles pudessem cometer violações em
massa. Uma investigação da Amnistia Internacional não
encontrou evidências que apoiassem essa alegação e revelou
que em várias ocasiões as forças anti-Kadafi em Benghazi
haviam
feito
falsas alegações e fabricado provas de violações
dos direitos humanos.
Kadafi foi derrubado e um dos países mais ricos e mais estáveis
da África tornou-se um Estado falido e sem lei, controlado por uma
amálgama de grupos rebeldes, alguns filiados ou simpatizantes da
Al-Qaeda. Estes grupos
começaram
a perseguir, prender e assassinar africanos subsarianos em larga escala,
muitos dos quais tinham chegado à Líbia como imigrantes
económicos, acusando-os de lealdade a Kadafi. Além disso, a
destruição da Líbia desencadeou uma guerra no vizinho Mali
e ajudou a fortalecer a Al-Qaeda e o ISIS no Norte de África. Alguns dos
rebeldes anti-Kadafi mais tarde encontraram o caminho
para a Síria
..
O mesmo guião foi usado em relação à Síria
por políticos ocidentais, juntamente com seus aliados dos media e
ativistas, trabalharam arduamente a angariar apoio público para remover
do poder o presidente do país. Em 2013, as emoções do
público ocidental foram alvo de alegações de que Assad
usara gás sarin contra civis, o que significava que sua
remoção do poder precisava ser executada sem demora. A
alegação permanece não comprovada e um inquérito
liderado pela ONU indicou mais tarde que os próprios
rebeldes
anti-governo podem ter sido responsáveis pelo ataque. As
alegações de que Assad usou armas químicas contra seu
próprio povo parecem surgir sempre que o governo sírio recupera
grandes quantidades de território às forças rebeldes ou
jihadistas.
O presidente Assad foi acusado de causar centenas de milhares de mortes num
conflito na Síria, em que a Arábia Saudita e o Qatar (entre
outros Estados) criaram
financiaram e armaram
grupos rebeldes que os serviços secretos ocidentais consideram os
"moderados". WikiLeaks
publicou
mensagens diplomáticas nas quais políticos dos EUA expressavam
preocupação com o facto de que os dadores da Arábia
Saudita estavam a enviar dinheiro e armas para grupos como o Al-Nusra Front
(também conhecido como o ramo sírio da Al-Qaeda) e o ISIS.
Ativistas da oposição síria afirmavam que em setembro de
2018 cerca de
164336
a
522000
pessoas (dependendo de qual grupo anti-Assad o afirma) foram mortas desde o
início do conflito em 2011. Embora a oposição síria
e seus partidários ocidentais e do Golfo sejam rápidos a culpar o
presidente Assad por essas mortes, os mortos incluem soldados sírios e
milícias pró-governo que morreram defendendo seu país de
rebeldes "moderados" (e não tão moderados) apoiados por
inimigos da Síria, bem como civis mortos por esses grupos rebeldes.
Quando a Síria foi socorrida pela Rússia em setembro de 2015, a
pedido do governo do país, para ajudar na luta contra o ISIS, Al-Nusra e
outros grupos rebeldes, enfrentou críticas dos media ocidentais e grupos
sírios de oposição que acusaram a Rússia de apoiar
um ditador algo no qual o Reino Unido e os EUA têm muita
experiência. Presumivelmente, o desejo dos EUA e seus aliados de derrubar
Assad valia o risco de o ISIS continuar a sua marcha de terror e
destruição pela Síria até que as suas bandeiras
flutuassem sobre Damasco. A enxurrada de ataques contra a Rússia
intensificou-se em 2016, quando esta nação forneceu apoio
aéreo às tropas sírias na sua campanha para retomar Aleppo
antes
a maior cidade e centro financeiro e industrial do país, na posse de
grupos rebeldes como Al-Nusra Front e combatentes jihadistas. Jornais de todo o
espectro político derramam lágrimas de crocodilo sobre o
número de civis e bebés mortos no bombardeamento russo,
presumivelmente esquecendo que as crianças de Gaza e do Iémen
não são menos mortais quando se trata de bombardeamentos.
Os media ocidentais escolhem para onde direcionar as emoções do
público. A
desacreditada
organização conhecida como Capacetes Brancos, que recebe
financiamento dos EUA e de vários governos europeus, injetou uma dose
adicional de emoção e sofrimento doentio, mostrando o que
alegaram serem fotos e vídeos de seus membros tirando crianças e
civis dos escombros em Aleppo. As
controvérsias
em torno desse grupo estão bem documentadas.
Então vimos noutro media, uma menina síria de sete anos Bana
al-Abed, supostamente
tuitando
pedidos de intervenção do Ocidente,
incluindo
Querido mundo, é melhor começar a 3ª guerra mundial ao
invés de deixar a Rússia & assad cometerem #HolocaustAleppo.
É questionável se ela produziu esses twits sem a ajuda de
adultos.
A organização sediada nos EUA, Human Rights Watch, que
recebeu
recebeu milhões de dólares do bilionário George
Soros, citou um relatório de um grupo sírio de
oposição afirmando que
446
civis foram mortos por aviões russos e sírios durante a batalha
de Aleppo no mês de setembro de 2016. Noutra altura, a Human Rights Watch
citou
o Observatório Sírio para Direitos Humanos,
pro-oposição
com sede no Reino Unido, que afirmou que os ataques aéreos da
coligação liderada pelos EUA
mataram
1 064 civis, incluindo 248 crianças, durante a batalha de Raqqa, entre o
começo de junho e 20 de setembro de 2017. Embora seja difícil
estimar com precisão as populações de Aleppo e Raqqa em
2016 e 2017, porém em 2018 a população de Aleppo é
de 1,6 milhões; enquanto a de Raqqa é de 61.000.
Cada morte de um civil é uma tragédia por si só,
independentemente de ser causada por aeronaves americanas, russas,
sírias ou de qualquer outra nação. No entanto, é
preciso reconhecer que apenas a Rússia e o Irão intervieram no
conflito sírio a pedido do governo legítimo da
nação. Todas as outras nações que se envolveram no
conflito sírio violaram o direito internacional justificando-se a sua
expulsão do território sírio. Devido à
intervenção da Rússia, a Síria não
seguirá o caminho do Iraque ou da Líbia e está a caminho
de se tornar novamente uma nação unida e estável com uma
identidade secular e diversificada. Esta foi uma intervenção que
impediu a destruição de uma nação e salvou
milhões do inimaginável pesadelo da vida sob o ISIS ou grupos
similares. Porém, isto é o oposto da abordagem ocidental, pela
qual uma nação unificada é mergulhada no caos com
terroristas que aparecem somente após a intervenção
"humanitária" ter ocorrido.
[*]
Médico especializado em psiquiatria. Fez parte do conselho da
instituição beneficente Medact, é editor do
London Progressive Journal
e colabora na Sputnik, da RT e Al-Mayadeen's Kalima Horra.
O original encontra-se em
www.rt.com/op-ed/440336-western-military-humanitarian-democracy/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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