Um guia popular para o capitalismo
Não é fácil explicar ideias relativamente complexas de uma
maneira simples e clara. Pergunte a qualquer professor. É uma habilidade
que falta a muita gente.
Nesse desafio, Hadas Thier alcançou um êxito brilhante com seu livro de introdução à teoria económica marxista
. Ela apresentou uma explicação clara, directa e interessante de
todas as percepções teóricas básicas de Marx sobre
a natureza e o desenvolvimento do capitalismo.
E ela fez isso usando exemplos modernos que ajudam o leitor a entender por que
a economia política marxista é tão clínica na sua
análise da realidade das economias capitalistas modernas. Eu diria que
ninguém fez melhor e eu sei porque
já tentei o mesmo no passado
, mas sem o êxito de Thier.
Acho que em parte o feito de Thier decorre do facto de ela ser
activista do movimento trabalhista e não uma economista
académica. Na minha experiência, aos economistas marxistas
académicos habitualmente falta capacidade para explicar claramente aos
outros as ideias da economia política marxista. Thier menciona a
sua própria experiência:
"quando pela primeira vez apanhei um livro sobre teoria económica,
li cerca de duas páginas at&eaacute; romper em lágrimas,
sentindo-me
sem esperança de poder entender teoria económica. O
sistema capitalista em geral, e a teoria económica em particular,
são propositadamente mistificados. Analisar como o capitalismo funciona
é deixado para "os peritos", e se as coisas lhe parecem um
pouco enviesadas, bem, deve ser porque você sabe pouco. Isto é
duplamente e triplamente grave para as pessoas da classe trabalhadora,
mulheres, pessoas de cor e outros segmentos oprimidos que são
diariamente bombardeados com a mensagem de que não podemos ter
esperança de compreender sistemas e ideias complexas, muito menos
esperar causar impacto".
Assim, Thier propõe-se a contornar esta situação:
"Faço o meu melhor para apresentar bastantes exemplos concretos e
descrições sem jargão a fim de esclarecer os pontos, o que
o ajudará a continuar a avançar com o mínimo de
afobação" .
Ela têm êxito nisso, admiravelmente. Este livro é
adequadamente chamado de
Um guia popular para o capitalismo.
Thier diz que o seu livro
"pretende seguir o conteúdo e o arco do Capital de Marx. Os
três volumes do
Capital
foram escritos para fornecer um arsenal
teórico ao movimento de trabalhadores para o derrube
revolucionário do sistema e para fazê-lo com o melhor
fundamento científico possível".
Mas Thier correctamente começa com a história da
emergência do capitalismo antes de passar para a teoria (o oposto da
abordagem de Marx em
O capital
). Ela habilmente descreve os principais conceitos da teoria económica
marxista, intercalados com inserções de caixa excelentes em
várias questões-chave que se destacam por suas
explicações perspicazes. Os assuntos nessas
inserções incluem: Marx sobre a natureza; a teoria da utilidade
marginal versus a teoria do valor de Marx; como o capitalismo
desperdiça tantos recursos; o que é bitcoin?; capitalismo como
modo de produção e assim por diante.
Após o capítulo sobre a emergência do capitalismo a partir
de organizações sociais humanas anteriores, Thier tem dois
capítulos sobre as "questões sumarentas de onde vêm os
lucros e a forma particular de exploração do capitalismo".
Nestes, ela "desembrulha os conceitos vitais de capital, trabalho e
sociedade de classes", de modo a que
"possamos ver as tendências condutoras do sistema, de
competição e acumulação". Não
há espaço nesta resenha para examinar
em pormenor a narrativa apresentada por Thier; afinal de contas, o leitor pode
fazer isso. Mas, em resumo, Thier cobre o mito dos assim chamados mercados
livres e a superioridade da teoria do valor de Marx de que apenas o trabalho
cria valor para a sociedade em oposição às teorias de
valor da "economia vulgar" da "utilidade" e da
"escassez".
Ela também trata do papel da moedas em economias modernas como
"um equivalente universal"
de troca de mercadorias. Em contraste com
a moderna teoria monetária actualmente na moda
, a qual afirma que a moeda é o produto do Estado, ela argumenta que o
dinheiro "necessariamente se cristaliza fora do processo de troca".
(Marx). E Thier trata claramente da moeda fiduciária que substituiu
o ouro e a prata nas economias modernas e com o papel crescente de moedas
digitais ou criptodivisas como o bitcoin.
Ela destaca que Marx argumentou que preço não é o mesmo
que valor. Como explicou Marx:
"Os valores das coisas necessárias ... podem permanecer os mesmos,
mas pode ocorrer uma mudança nos seus preços monetários,
em consequência de uma mudança prévia no valor da moeda.
Nada teria mudado, excepto as denominações monetárias
daqueles valores".
Uma mudança no valor de troca de uma divisa específica
não muda o valor embutido numa mercadoria, mas mudará o
preço. Portanto, temos aqui
o cerne de uma teoria da inflação
.
Thier mostra também como os capitalistas devem acumular capital
incessantemente (valor apropriado da força de trabalho), levando a uma
maior concentração e centralização de activos com
uns poucos a expensas de muitos. Existe uma tendência rumo ao
monopólio, por um lado, mas
"o capitalismo ainda mantém o seu dinamismo através da
competição
(jostling)
constante pelo posicionamento de mercado
por parte de grandes e pequenas empresas. Em alguns casos, um negócio
mais novo, não tão profundamente enraizado em métodos
antiquados, pode sair na frente".
Se não fosse esse o caso,
"veríamos a economia cada vez mais dominada por cada vez menos
empresas, até que um dia nos encontrariamos com uma única
McGoogleAmazon".
O conceito de imperialismo também é adoptado por Thier. Ele pode
não ter sido analisado especificamente no
Capital
de Marx mas, como observa Thier, Marx e Engels escreveram:
"A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus
produtos persegue a burguesia por toda a superfície do globo. Deve-se
aninhar por toda a parte, colonizar todos os lugares, estabelecer
conexões onde quer que seja".
Os capítulos finais do livro examinam as contradições
inerentes ao capitalismo: a anarquia da produção capitalista bem
como um impulso incessante para acumular dá lugar a crises regulares na
produção e nos mercados financeiros,
"as quais marcam a fundo e de modo grotesco pontuam nossa paisagem
económica actual".
Ela expõe o fracasso da análise económica convencional
para explicar estas crises regulares e recorrentes na produção e
investimento capitalista que periodicamente levam ao desemprego em massa e
perda de meios de subsistência por todo o mundo. A teoria
económica dominante não pode explicar isto porque a sua
análise
"começa e termina na superfície da economia
flutuações de preços, política monetária e
mercados financeiros. Mas os marxistas argumentam que as crises têm
origem no núcleo do sistema e não são impostas ao sistema
do lado de fora".
Ela destaca que, embora "os economistas keynesianos ofereçam uma
explicação para as crises como inerentes ao sistema, em
última análise, uma vez que
Keynes não via o crescimento ou os lucros como essenciais ao sistema,
ele assumia que a regulamentação poderia providenciar um meio de
reafirmar a harmonia do capitalismo".
Por isso, respostas políticas keynesianas tem-se mostrado inadequadas
para barrar crises.
Isso me leva à própria visão de Thier da teoria marxista
da crise e aqui divirjo. Thier adverte seus leitores de que "marxistas
têm discordado sobre como aspectos dos escritos de Marx
queda da lucratividade, superprodução (ou em alguns casos,
subprodução), desproporcionalidade entre ramos, o papel do
crédito são enfatizados e como essas peças se
encaixam".
Thier segue Marx e Engels ao, correctamente, rejeitar a versão mais
popular: a do subconsumo; nomeadamente que os trabalhadores não podem
comprar todos os bens que produziram e que os capitalistas tentam vender,
provocando uma queda
(slump)
devido à 'falta de procura.
Em vez disso, Thier adota
uma teoria de superprodução
. Aqui ela segue de perto o trabalho do teórico da
superprodução, o
bolchevique Pavel Maksakovsky
, e do
economista marxista Simon Clarke
, o qual escreveu:
"os capitalistas lançam uma massa crescente de mercadorias no
mercado. No entanto, este aumento na produção não foi
motivado pelo desejo de atender à procura em expansão, mas por um
desejo de aumentar a produção de valor excedente
(surplus value)
.
Esta compulsão cria uma tendência para os capitalistas
superproduzirem para que a produção seja superior à
procura, muitas vezes muito além do que o mercado pode absorver".
Thier conclui que
"a expectativa febril da expansão acaba por sobrecarregar o
mercado. Demasiados bens foram produzidos para poderem ser vendidos aos
preços exagerados produzidos pelo boom, ou mesmo pelo seu valor. A
inflação de preços atinge um ponto em que ameaça a
procura efectiva" e então segue-se uma queda.
Thier observa que "A significância e o efeito da tendência
para a queda da taxa de
lucro, e o seu papel dentro de uma teoria mais ampla da crise, é
tópico de debates profundos e de longa data entre marxistas".
Mas ela descarta esta lei que Marx descreve em três capítulos do
Volume 3 de
O Capital
como uma teoria das crises. Para ela, esta é uma teoria de longo prazo
"em vez de produzir crises económicas regulares, a tendência
da queda da taxa de lucro cria um entrave de longo prazo para o
capitalismo".
Ela segue, ao invés, Simon Clarke quando argumenta que
"Marx não identificou a tendência de queda da taxa de lucro
como uma "causa privilegiada de crises",
mas mesmo assim ela
"desempenha o papel de um factor que torna as crises mais
prováveis, primariamente porque leva a uma intensificação
da luta competitiva entre os capitalistas".
Portanto, a lei da lucratividade de Marx não é uma causa
subjacente de crises, embora intensifique a competição.
Quem acompanha este blog e tem lido os meus livros sabe que não concordo
com essa interpretação da teoria da crise de Marx. Na minha
opinião, a teoria da crise de Marx com base na sua lei da lucratividade
é
tanto cíclica como secular.
Sua lei da lucratividade sugere crises regulares e recorrentes de
superprodução e queda, seguidas pela recuperação
por algum tempo; mas
também
por um declínio inexorável ao longo de décadas (e mais
ainda) na lucratividade da acumulação de capital, sugerindo um
fim para o capitalismo. Mas deixo o leitor decidir.
O último capítulo do livro também inclui uma
análise substantiva da Grande Recessão, a maior crise
económica anterior do mundo. Neste capítulo, Thier apresenta uma
análise vívida das causas da maior queda no século XX
(até a presente queda pandémica!). Ela explica os meandros da
Grande Recessão através das lentes do papel do crédito
("engraxar as engrenagens do capital") e do conceito de Marx de
"capital fictício" (o resultado da especulação a
crédito). Ela não considera que foi
"primariamente uma crise financeira" (como argumentam alguns)".
Para ela, "as raízes da Grande Recessão de 2007 a 2009
são mais
profundas do que o mundo da banca e da finança".
Thier nota a enorme ascensão do sector financeiro nos últimos 50
anos que acabou por levar ao colapso financeiro global de 2008-9, mas ela
correctamente dá pouca importância ao termo
'financiarização'
, agora tão prevalecente entre economistas radicais, porque
ele pressupõe "uma divisão entre a economia "real"
do capital industrial, que se dedica à produção e venda de
bens, mas tem pouco capital próprio para disseminar essa actividade, e
do capital
financeiro, o qual desempenha um papel puramente facilitador da
circulação. Na realidade, não há uma linha
rígida entre as empresas financeiras e não financeiras".
No entanto, sua explicação da Grande Recessão recai sobre
o que ela chama de "duas crises de superprodução":
a superprodução da China tornando os mercados globais
"incapazes de absorver este aumento da produção";
e o aumento da dívida dos EUA, o qual
"sustentou uma expansão global da produção e a
realização de lucros extraordinários, apesar de nunca
resolver o excesso mundial de bens".
Aqui temos mais uma vez a teoria das crises de superprodução, com
um cheiro de Keynes.
As quedas são causadas pela superprodução, gerando um excesso de mercadorias
. A lucratividade e os lucros desapareceram da explicação causal
das crises.
Para mim, 'superprodução' é a
manifestação
de uma crise capitalista, mas não a sua
causa;
essa está na queda da lucratividade do capital
.
Ao invés disso, Thier adopta uma teoria de
"estagnação secular" favorecida por muitos keynesianos
e a escola das "finanças monopolistas"; a saber, que as crises
não são o produto da queda da lucratividade levando a um colapso
do investimento, mas são causadas pelo capitalismo que acha
difícil obter "saídas adicionais para o investimento".
Por outras palavras, é
muito
investimento e produção ao invés de
muito pouco
lucro que causa as crises. Mais uma vez, considero que isto é uma
teoria inadequada das crises e certamente não a de Marx.
Seja como for, Thier escreveu uma excelente introdução à
análise do capitalismo de Marx a que se pode ser recorrer regularmente a
fim de compreender o desperdício, a destruição e a
miséria causados pelo moderno sistema capitalista de
exploração.
25/Outubro/2020
A People's Guide to Capitalism : An Introduction to Marxist Economics
[*]
Economista, as suas obras estão
aqui
.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2020/10/25/a-peoples-guide-to-capitalism/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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