Déficits, dívidas e deflação após a pandemia

por Michael Roberts [*]

O grande bloqueio imposto pela pandemia do COVID-19 levou os governos em todo o mundo a aplicar extensos programas de resgate e de estímulo fiscal. Em média, essas medidas de suplementos salariais, pagamentos aos trabalhadores licenciados pelas empresas, empréstimos e doações às empresas, gastos emergenciais em saúde e outros serviços públicos, foram responsáveis por gastos extras do governo, equivalentes a cerca de 5-6% do PIB. Um valor semelhante foi dispendido em garantias de empréstimos e outros apoios de crédito para bancos e empresas. Esse montante é pelo menos duas vezes maior do que os pacotes de estímulo e resgate fiscal e monetário feitos durante a Grande Recessão de 2008-9.

Globalmente, o FMI prevê que os déficits orçamentários dos governos em geral atingirão 10% do PIB em 2020, acima dos 3,7% ocorridos em 2019. Nas economias capitalistas avançadas, o déficit será de 10,7%, ou seja, três vezes maior que em 2019. O governo dos EUA terá um déficit de 15,4% do PIB. Como resultado, os níveis de dívida do setor público devem exceder a quaisquer outros nos últimos 150 anos – inclusive aqueles ocorridos após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. O índice de dívida do setor público, em 2020, atingirá 122% do PIB nas economias capitalistas avançadas e 62% nas chamadas economias emergentes.

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Todos, sejam governos, investidores ou economistas, concordam que não havia alternativa a não ser expandir os gastos públicos durante o Grande Bloqueio para evitar ou melhorar a catástrofe que impacta a economia global. Eis que ela se encontra num grau de paralisação muito forte. Mas, com o término dos bloqueios (quanto a pandemia acabar de fato), a questão será saber se esse aumento nos gastos do governo pode continuar e se os níveis de dívida do setor público devem ser controlados e reduzidos.

Ao longo da Grande Recessão, a visão predominante entre governos e economistas era que os níveis de dívida pública eram muito altos e que eles prejudicariam as taxas de crescimento econômico e/ou até gerariam uma nova crise financeira. Economistas de renome, como Rogoff e Reinhart, argumentaram que havia evidências empíricas ao longo dos séculos que mostravam um limite para o endividamento público: quando os índices de dívida pública ficavam acima de 90% do PIB, a probabilidade de um colapso financeiro tornava-se muito alta.

Essa evidência foi contestada na época, mas, mesmo assim, sustentou-se geralmente que medidas para controlar os gastos públicos e aumentar os impostos para reduzir ou eliminar os déficits do governo eram necessárias; o que estava em jogo, segundo se dizia, era garantir o crescimento econômico sustentável futuro. Essa visão "austeriana" dominou; a visão keynesiana aparentemente alternativa de que, numa crise, os "déficits e dívidas não importam" foi rejeitada, às vezes até mesmo pelos keynesianos. Quando o governo grego enfrentou um desastre durante a crise da dívida do Euro em 2012-15, os poderes da União Europeia foram impiedosos; eles mantiveram e impuseram a tese de que não havia alternativa.

Mas desta vez, pelo menos, as coisas são diferentes. Os governos, em geral, não estão falando em manter as finanças do setor público "sob controle". Ademais, os economistas, também em geral, parecem confortáveis com os déficits governamentais, mesmo que isso signifique um aumento nos níveis de dívida do setor público.

Eis o que afirmou recentemente o ex-economista-chefe do Goldman Sachs e gerente de fundos de hedge Gavyn Davies: "Ainda mais notável foi a unanimidade entre os macroeconomistas de que um estímulo fiscal e monetário maciço é a resposta apropriada a uma emergência econômica 'em tempo de guerra'. Quase ninguém discute seriamente se a política deveria estar fazendo "o que for preciso" para superar o choque causado pelo vírus. Esse acordo reflete uma conclusão importante da teoria das finanças públicas: que uma dívida pública mais alta é o amortecedor correto para o setor privado diante de crises econômicas imprevisíveis e temporárias. Evita as distorções que se seguiriam às grandes variações nas taxas marginais de imposto que seriam necessárias para financiar um aumento nos gastos públicos em um curto período ." Portanto – deve-se concluir – o setor público existe para resgatar o setor privado (capitalista) quando ele entra numa "crise imprevisível e temporária".

Davies continua: "A maioria dos novos economistas keynesianos, incluindo Paul Krugman e Lawrence Summers, acredita que altos níveis de dívida não serão em si um problema para as economias avançadas. Eles até sugerem que aumentos adicionais da dívida seriam desejáveis, pois isso ajudaria a reverter a tendência à estagnação secular na Europa e nos EUA." Um dos principais motivos de otimismo é que o custo anual do serviço da dívida está abaixo da taxa de crescimento nominal da economia e os bancos centrais parecem preparados para mantê-lo assim por um tempo indefinido.

De fato, as taxas de juros do banco central estão próximas ou mesmo abaixo de zero; ademais, os rendimentos dos títulos de longo prazo estão em mínimos históricos. Portanto, se o custo dos juros da dívida pública permanecer abaixo da taxa de crescimento, a relação dívida/produto interno bruto acabará se estabilizando. E, à medida que o crescimento econômico aumenta, as receitas tributárias serão elevadas, permitindo que o "superávit primário" (impostos menos gastos, excluindo os juros pagos) aumente. Então, os bancos centrais podem gradualmente permitir que as taxas de juros subam para níveis mais normais. E a dívida poderia, assim, ser gerenciada sem que sobrevenha uma crise.

A posição keynesiana mais extrema, agora muito popular, é que nem mesmo o gerenciamento dos níveis de dívida importa. A Teoria Monetária Moderna (MMT) calcula que, enquanto houver "folga" na economia capitalista, isto é, desemprego, os governos podem gastar indefinidamente. Eis que os bancos centrais podem apoiá-los "imprimindo dinheiro" sem nenhum risco de inadimplência ou colapso financeiro.

No entanto, pode não ser tão simples assim. Calcular se o serviço da dívida é sustentável envolve vários elementos chave: 1) o nível da dívida, 2) a taxa de juros média da dívida, 3) o déficit fiscal (que aumenta a dívida), 4) o tamanho e o crescimento da despesa pública e 5) a taxa de expansão da economia. A sustentabilidade do serviço da dívida pública depende de dois montantes, do déficit fiscal e do tamanho inicial da dívida pública.

Se os gastos governamentais, excetuando-se o pagamento dos custos associados aos juros da dívida existente, continuarem a aumentar mais rapidamente do que as receitas fiscais, esse "déficit primário" aumentará continuamente o total da dívida pública. Isso significa que o custo dos juros dessa dívida aumentará mesmo que a taxa de juros seja muito baixa. O custo dos juros nos orçamentos governamentais nas principais economias já atingiu 10% da receita tributária, apesar das taxas de juros terem caído fortemente (cf. gráfico da esquerda). Esse custo está gradualmente reduzindo os gastos com assistência social, investimentos do setor público e serviços públicos.

Nas economias avançadas, o vencimento da dívida pública (o período até o vencimento do título) é de cerca de 7 anos em média (mas é muito maior no Reino Unido). Quanto maior a maturidade, menor o impacto do aumento dos déficits e da dívida no serviço da dívida (cf. gráfico acima da direita).

Portanto, a restrição ao crescimento é o principal fator que faz com que os níveis de dívida do setor público sejam importantes. "Dívida excessiva" significa uma dívida do governo que come a lucratividade das corporações por meio da extração de mais impostos, menos subsídios, custos de inflação mais altos e taxas de juros mais altas para empréstimos em geral. Portanto, os gastos do governo, no estilo keynesiano, só podem substituir os investimentos e o consumo privados quando estes fracassam por pouco tempo. Em última análise, pode se tornar um fardo para o capitalismo e não o seu salvador. É por isso que surge a exigência de que deve ser reduzido. Se a lucratividade do setor capitalista permanecer baixa – e a rentabilidade média do capital no G7 está no nível mais baixo de todos os tempos –, o crescimento do investimento e do PIB será fraco. Ora, desse modo, "produtividade da dívida" continuará a cair.

Os governos poderiam simplesmente imprimir dinheiro para pagar suas dívidas (como se sabe e como argumenta a TMM, eles têm esse poder). Porém, esse recurso extremo acabaria por desvalorizar a moeda empregada para custear os gastos do governo. E isso, no caso dos EUA, aparece por meio de seus déficits externos. Como resultado da emissão de dólares acima do valor necessário para manter a circulação mercantil, o valor de compra do dólar caiu nos últimos 30 anos em mais de 25%.

Da mesma forma, se os governos imprimem dinheiro para pagar as suas dívidas domésticas, acabarão aumentando a inflação e desvalorizando os salários e as poupanças. O "mal" da inflação é aceito como dificuldade pela TMM, mesmo que apenas quando o pleno emprego é alcançado e a tal "folga" econômica desaparece. Os governos podem tomar empréstimos e os bancos centrais podem imprimir dinheiro para financiar as atuais despesas públicas. No entanto, isso também envolve assumir riscos futuros. Como Stephanie Kelton disse em seu novo livro, O mito do déficit:   "Podemos imprimir sempre achando assim o caminho para a prosperidade? Absolutamente não! A teoria monetária moderna não é um almoço grátis. Existem limites muito reais. Deixar de identifica-los, deixar de respeitar esses limites pode trazer grandes danos. A TMM trata de distinguir os limites reais das restrições autoimpostas; estas últimas são possíveis de superar" (Kelton 2020, p. 37).

Mas a questão da dívida, pós-COVID, não versa apenas, ou mesmo principalmente, sobre dívida pública. Eis que a dívida corporativa é aquela que realmente importa. A crise da pandemia começou com um "choque de oferta", o qual adveio à medida que os principais setores da economia foram sendo travados. Tornou-se depois um "choque de demanda", pois as famílias pararam de gastar e as empresas pararam de investir. Um terceiro momento da é iminente: um choque financeiro.

Os níveis de dívida corporativa em todo o mundo já estavam em níveis recordes antes da crise da pandemia (cf. gráfico da esquerda abaixo).

As "inadimplências" do setor corporativo (quando a empresa não faz os pagamentos da dívida no prazo contratual) e as falências estão aumentando (cf. gráfico da direita abaixo). Uma camada inteira de "empresas zumbis" (aquelas que não consegue pagar os juros da dívida com os lucros) provavelmente quebrarão antes que a "normalidade" seja restaurada. E se houver algum aumento nas taxas de juros, esse gotejamento de quebras poderá se transformar num jorro e, em seguida, num borbotão que derrubará outras empresas, assim como o sistema bancário.

O montante da dívida classificada como em estado de estresse, nos EUA, subiu 161% nos últimos dois meses, isto é, para mais de meio trilhão de dólares. Em abril, os mutuários corporativos deixaram de pagar US$ 35,7 mil milhões em títulos e empréstimos, o quinto maior volume mensal já registrado, segundo o JPMorgan Chase & Co. E até agora, em 2020, o ritmo de pedidos de falências corporativas nos EUA já supera todos os anos desde 2009, após a crise financeira global, conforme mostram os dados da Bloomberg.

Portanto, os níveis de dívida do setor público e corporativo estão em níveis bem pesados. Se os governos continuarem aumentando os gastos públicos e os déficits orçamentários, eles espremerão o setor capitalista, sugando toda a demanda por dívida, enquanto aumentam a parcela de gastos improdutivos em detrimento de serviços públicos e investimentos. Se os governos financiarem esses gastos por meio de 'financiamento monetário' do banco central, o risco de inflação retornará.

Por quê? O governo japonês mantém déficits orçamentários permanentes desde a década de 1990 e o índice de dívida do governo vai ultrapassar 250% do PIB este ano. O Banco do Japão possui a maior parte da nova dívida pública em circulação, ativos equivalentes a 75% do PIB. Mas o Japão não tem inflação nos preços de bens e serviços. Há, de fato, deflação – e não inflação. Então, por que os déficits orçamentários e o aumento da dívida podem gerar inflação?

As causas da inflação exigem um livro inteiro para serem expostas. As teorias tradicionais se enquadram em duas vertentes: numa delas, conhecida como teoria monetarista, são as mudanças na quantidade de dinheiro em relação ao nível da produção é que vai definir a taxa de inflação; na outra, conhecida como keynesiana ou como kaleckiana, a inflação de preços é causada por mudanças no custo de produção (salários, matérias-primas, preços do petróleo etc.). Nenhuma delas é, de uma perspectiva marxista, convincente como teoria.

Atualmente, há um aumento maciço da quantidade de moeda nas economias capitalistas: a oferta de moeda, representada pela base monetária mais os depósitos nos bancos (M2) aumentou 25% numa comparação de ano para ano. Mas os preços dos bens e serviços estão subindo muito pouco – de fato, até o final deste ano, a taxa de inflação ao consumidor nos EUA talvez seja negativa. E isto pela primeira vez desde a Grande Recessão ocorrida nos anos 1970; possivelmente, se apresentará como a maior redução anual desde 1955.

A razão é óbvia: os gastos do consumidor e o investimento capitalista caíram enormemente. Grande parte do dinheiro e doações do governo não está destinada a gastos ou investimentos, mas ao pagamento de dívidas ou acumulação de capital por parte das empresas. Foi o que aconteceu no Japão. De fato, o que descobrimos é que houve um declínio significativo na velocidade da moeda desde o início dos anos 2000. A velocidade do dinheiro mede o estoque de dinheiro em relação ao PIB nominal - e está caindo. Esta é uma boa medida de acumular dinheiro.

A tendência coincide com a queda da taxa de lucro do capital e a inflação dos preços ao consumidor. À medida que a lucratividade do investimento em ativos produtivos diminuiu, o crescimento do investimento diminuiu. As empresas investiram em ativos financeiros (capital fictício) ou em dinheiro acumulado (as grandes empresas). As taxas de juros e a inflação caíram, enquanto as bolsas de valores cresceram. E é isso que está acontecendo agora. A inflação é inexistente porque novo valor não está sendo criado e, portanto, os lucros e os salários estão caindo ainda mais rapidamente do que a oferta de dinheiro pode ser injetada.

No entanto, essa situação mudará quando os bloqueios diminuírem durante o próximo ano (faça o que fizer o coronavírus). Então os lucros e os salários aumentarão (não para os mesmos níveis de antes, mas ainda assim aumentarão). Se os bancos centrais bombearem ainda mais dinheiro e crédito, os preços subirão porque o crescimento econômico permanecerá fraco. A demanda (de dinheiro) excederá a oferta (novo valor). O efeito de acumulação se dissipará e os preços subirão.

Uma estimativa da inflação baseada na convencional teoria quantitativa da moeda sugere que as taxas de inflação podem subir para 4-6% se os bancos centrais continuarem imprimindo dinheiro. Minha própria estimativa sugere que a inflação seria de cerca de 3-4% no próximo ano. A inflação é uma péssima notícia para os trabalhadores, porque ela come a renda real dessa classe social, uma renda que foi encolhida pelo presente afundamento econômico. Essas, no entanto, são boas notícias para as empresas que tentam aumentar os preços para restaurar os lucros, mas são más notícias para o setor financeiro e para os investidores em títulos, pois seus ganhos reais serão reduzidos.

No próximo ano, o peso da dívida pública e corporativa pressionará a recuperação econômica, enquanto a inflação aumentará, pressionando as taxas de juros. Essa é uma receita para falências corporativas e uma crise financeira, ao lado de economias 'estagnadas', semelhantes à década de 1970.

29/Junho/2020

[*] Economista, britânico.

O original encontra-se em thenextrecession.wordpress.com/...
e a tradução em eleuterioprado.files.wordpress.com/...


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
14/Jul/20