Déficits, dívidas e deflação após a pandemia
O grande bloqueio imposto pela pandemia do COVID-19 levou os governos em todo o
mundo a aplicar extensos programas de resgate e de estímulo fiscal. Em
média, essas medidas de suplementos salariais, pagamentos aos
trabalhadores licenciados pelas empresas, empréstimos e
doações às empresas, gastos emergenciais em saúde e
outros serviços públicos, foram responsáveis por gastos
extras do governo, equivalentes a cerca de 5-6% do PIB. Um valor semelhante foi
dispendido em garantias de empréstimos e outros apoios de crédito
para bancos e empresas. Esse montante é pelo menos duas vezes maior do
que os pacotes de estímulo e resgate fiscal e monetário feitos
durante a Grande Recessão de 2008-9.
Globalmente, o FMI prevê que os déficits
orçamentários dos governos em geral atingirão 10% do PIB
em 2020, acima dos 3,7% ocorridos em 2019. Nas economias capitalistas
avançadas, o déficit será de 10,7%, ou seja, três
vezes maior que em 2019. O governo dos EUA terá um déficit de
15,4% do PIB. Como resultado, os níveis de dívida do setor
público devem exceder a quaisquer outros nos últimos 150 anos
inclusive aqueles ocorridos após a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial. O índice de dívida do setor público, em 2020,
atingirá 122% do PIB nas economias capitalistas avançadas e 62%
nas chamadas economias emergentes.
Todos, sejam governos, investidores ou economistas, concordam que não
havia alternativa a não ser expandir os gastos públicos durante o
Grande Bloqueio para evitar ou melhorar a catástrofe que impacta a
economia global. Eis que ela se encontra num grau de paralisação
muito forte. Mas, com o término dos bloqueios (quanto a pandemia acabar
de fato), a questão será saber se esse aumento nos gastos do
governo pode continuar e se os níveis de dívida do setor
público devem ser controlados e reduzidos.
Ao longo da Grande Recessão, a visão predominante entre governos
e economistas era que os níveis de dívida pública eram
muito altos e que eles prejudicariam as taxas de crescimento econômico
e/ou até gerariam uma nova crise financeira. Economistas de renome, como
Rogoff e Reinhart, argumentaram que havia evidências empíricas ao
longo dos séculos que mostravam um limite para o endividamento
público: quando os índices de dívida pública
ficavam acima de 90% do PIB, a probabilidade de um colapso financeiro
tornava-se muito alta.
Essa evidência foi contestada na época, mas, mesmo assim,
sustentou-se geralmente que medidas para controlar os gastos públicos e
aumentar os impostos para reduzir ou eliminar os déficits do governo
eram necessárias; o que estava em jogo, segundo se dizia, era garantir o
crescimento econômico sustentável futuro. Essa visão
"austeriana" dominou; a visão keynesiana aparentemente
alternativa de que, numa crise, os "déficits e dívidas
não importam" foi rejeitada, às vezes até mesmo pelos
keynesianos. Quando o governo grego enfrentou um desastre durante a crise da
dívida do Euro em 2012-15, os poderes da União Europeia foram
impiedosos; eles mantiveram e impuseram a tese de que não havia
alternativa.
Mas desta vez, pelo menos, as coisas são diferentes. Os governos, em
geral, não estão falando em manter as finanças do setor
público "sob controle". Ademais, os economistas, também
em geral, parecem confortáveis com os déficits governamentais,
mesmo que isso signifique um aumento nos níveis de dívida do
setor público.
Eis o que afirmou recentemente o ex-economista-chefe do Goldman Sachs e gerente
de fundos de hedge Gavyn Davies:
"Ainda mais notável foi a unanimidade entre os macroeconomistas de
que um estímulo fiscal e monetário maciço é a
resposta apropriada a uma emergência econômica 'em tempo de
guerra'. Quase ninguém discute seriamente se a política deveria
estar fazendo "o que for preciso" para superar o choque causado pelo
vírus. Esse acordo reflete uma conclusão importante da teoria das
finanças públicas: que uma dívida pública mais alta
é o amortecedor correto para o setor privado diante de crises
econômicas imprevisíveis e temporárias. Evita as
distorções que se seguiriam às grandes
variações nas taxas marginais de imposto que seriam
necessárias para financiar um aumento nos gastos públicos em um
curto período
." Portanto deve-se concluir o setor público existe
para resgatar o setor privado (capitalista) quando ele entra numa "crise
imprevisível e temporária".
Davies continua:
"A maioria dos novos economistas keynesianos, incluindo Paul Krugman e
Lawrence Summers, acredita que altos níveis de dívida não
serão em si um problema para as economias avançadas. Eles
até sugerem que aumentos adicionais da dívida seriam
desejáveis, pois isso ajudaria a reverter a tendência à
estagnação secular na Europa e nos EUA."
Um dos principais motivos de otimismo é que o custo anual do
serviço da dívida está abaixo da taxa de crescimento
nominal da economia e os bancos centrais parecem preparados para mantê-lo
assim por um tempo indefinido.
De fato, as taxas de juros do banco central estão próximas ou
mesmo abaixo de zero; ademais, os rendimentos dos títulos de longo prazo
estão em mínimos históricos. Portanto, se o custo dos
juros da dívida pública permanecer abaixo da taxa de crescimento,
a relação dívida/produto interno bruto acabará se
estabilizando. E, à medida que o crescimento econômico aumenta, as
receitas tributárias serão elevadas, permitindo que o
"superávit primário" (impostos menos gastos, excluindo
os juros pagos) aumente. Então, os bancos centrais podem gradualmente
permitir que as taxas de juros subam para níveis mais normais. E a
dívida poderia, assim, ser gerenciada sem que sobrevenha uma crise.
A posição keynesiana mais extrema, agora muito popular, é
que nem mesmo o gerenciamento dos níveis de dívida importa. A
Teoria Monetária Moderna (MMT) calcula que, enquanto houver
"folga" na economia capitalista, isto é, desemprego, os
governos podem gastar indefinidamente. Eis que os bancos centrais podem
apoiá-los "imprimindo dinheiro" sem nenhum risco de
inadimplência ou colapso financeiro.
No entanto, pode não ser tão simples assim. Calcular se o
serviço da dívida é sustentável envolve
vários elementos chave: 1) o nível da dívida, 2) a taxa de
juros média da dívida, 3) o déficit fiscal (que aumenta a
dívida), 4) o tamanho e o crescimento da despesa pública e 5) a
taxa de expansão da economia. A sustentabilidade do serviço da
dívida pública depende de dois montantes, do déficit
fiscal e do tamanho inicial da dívida pública.
Se os gastos governamentais, excetuando-se o pagamento dos custos associados
aos juros da dívida existente, continuarem a aumentar mais rapidamente
do que as receitas fiscais, esse "déficit primário"
aumentará continuamente o total da dívida pública. Isso
significa que o custo dos juros dessa dívida aumentará mesmo que
a taxa de juros seja muito baixa. O custo dos juros nos orçamentos
governamentais nas principais economias já atingiu 10% da receita
tributária, apesar das taxas de juros terem caído fortemente (cf.
gráfico da esquerda). Esse custo está gradualmente reduzindo os
gastos com assistência social, investimentos do setor público e
serviços públicos.
Nas economias avançadas, o vencimento da dívida pública (o
período até o vencimento do título) é de cerca de 7
anos em média (mas é muito maior no Reino Unido). Quanto maior a
maturidade, menor o impacto do aumento dos déficits e da dívida
no serviço da dívida (cf. gráfico acima da direita).
Portanto, a restrição ao crescimento é o principal fator
que faz com que os níveis de dívida do setor público sejam
importantes. "Dívida excessiva" significa uma dívida do
governo que come a lucratividade das corporações por meio da
extração de mais impostos, menos subsídios, custos de
inflação mais altos e taxas de juros mais altas para
empréstimos em geral. Portanto, os gastos do governo, no estilo
keynesiano, só podem substituir os investimentos e o consumo privados
quando estes fracassam por pouco tempo. Em última análise, pode
se tornar um fardo para o capitalismo e não o seu salvador. É por
isso que surge a exigência de que deve ser reduzido. Se a lucratividade
do setor capitalista permanecer baixa e a rentabilidade média do
capital no G7 está no nível mais baixo de todos os tempos ,
o crescimento do investimento e do PIB será fraco. Ora, desse modo,
"produtividade da dívida" continuará a cair.
Os governos poderiam simplesmente imprimir dinheiro para pagar suas
dívidas (como se sabe e como argumenta a TMM, eles têm esse
poder). Porém, esse recurso extremo acabaria por desvalorizar a moeda
empregada para custear os gastos do governo. E isso, no caso dos EUA, aparece
por meio de seus déficits externos. Como resultado da emissão de
dólares acima do valor necessário para manter a
circulação mercantil, o valor de compra do dólar caiu nos
últimos 30 anos em mais de 25%.
Da mesma forma, se os governos imprimem dinheiro para pagar as suas
dívidas domésticas, acabarão aumentando a
inflação e desvalorizando os salários e as
poupanças. O "mal" da inflação é aceito
como dificuldade pela TMM, mesmo que apenas quando o pleno emprego é
alcançado e a tal "folga" econômica desaparece. Os
governos podem tomar empréstimos e os bancos centrais podem imprimir
dinheiro para financiar as atuais despesas públicas. No entanto, isso
também envolve assumir riscos futuros. Como Stephanie Kelton disse em
seu novo livro,
O mito do déficit:
"Podemos imprimir sempre achando assim o caminho para a prosperidade?
Absolutamente não! A teoria monetária moderna não é
um almoço grátis. Existem limites muito reais. Deixar de
identifica-los, deixar de respeitar esses limites pode trazer grandes danos. A
TMM trata de distinguir os limites reais das restrições
autoimpostas; estas últimas são possíveis de superar"
(Kelton 2020, p. 37).
Mas a questão da dívida, pós-COVID, não versa
apenas, ou mesmo principalmente, sobre dívida pública. Eis que a
dívida corporativa é aquela que realmente importa. A crise da
pandemia começou com um "choque de oferta", o qual adveio
à medida que os principais setores da economia foram sendo travados.
Tornou-se depois um "choque de demanda", pois as famílias
pararam de gastar e as empresas pararam de investir. Um terceiro momento da
é iminente: um choque financeiro.
Os níveis de dívida corporativa em todo o mundo já estavam
em níveis recordes antes da crise da pandemia (cf. gráfico da
esquerda abaixo).
As "inadimplências" do setor corporativo (quando a empresa
não faz os pagamentos da dívida no prazo contratual) e as
falências estão aumentando (cf. gráfico da direita abaixo).
Uma camada inteira de "empresas zumbis" (aquelas que não
consegue pagar os juros da dívida com os lucros) provavelmente
quebrarão antes que a "normalidade" seja restaurada. E se
houver algum aumento nas taxas de juros, esse gotejamento de quebras
poderá se transformar num jorro e, em seguida, num borbotão que
derrubará outras empresas, assim como o sistema bancário.
O montante da dívida classificada como em estado de estresse, nos EUA,
subiu 161% nos últimos dois meses, isto é, para mais de meio
trilhão de dólares. Em abril, os mutuários corporativos
deixaram de pagar US$ 35,7 mil milhões em títulos e
empréstimos, o quinto maior volume mensal já registrado, segundo
o JPMorgan Chase & Co. E até agora, em 2020, o ritmo de pedidos de
falências corporativas nos EUA já supera todos os anos desde 2009,
após a crise financeira global, conforme mostram os dados da Bloomberg.
Portanto, os níveis de dívida do setor público e
corporativo estão em níveis bem pesados. Se os governos
continuarem aumentando os gastos públicos e os déficits
orçamentários, eles espremerão o setor capitalista,
sugando toda a demanda por dívida, enquanto aumentam a parcela de gastos
improdutivos em detrimento de serviços públicos e investimentos.
Se os governos financiarem esses gastos por meio de 'financiamento
monetário' do banco central, o risco de inflação
retornará.
Por quê? O governo japonês mantém déficits
orçamentários permanentes desde a década de 1990 e o
índice de dívida do governo vai ultrapassar 250% do PIB este ano.
O Banco do Japão possui a maior parte da nova dívida
pública em circulação, ativos equivalentes a 75% do PIB.
Mas o Japão não tem inflação nos preços de
bens e serviços. Há, de fato, deflação e
não inflação. Então, por que os déficits
orçamentários e o aumento da dívida podem gerar
inflação?
As causas da inflação exigem um livro inteiro para serem
expostas. As teorias tradicionais se enquadram em duas vertentes: numa delas,
conhecida como teoria monetarista, são as mudanças na quantidade
de dinheiro em relação ao nível da produção
é que vai definir a taxa de inflação; na outra, conhecida
como keynesiana ou como kaleckiana, a inflação de preços
é causada por mudanças no custo de produção
(salários, matérias-primas, preços do petróleo
etc.). Nenhuma delas é, de uma perspectiva marxista, convincente como
teoria.
Atualmente, há um aumento maciço da quantidade de moeda nas
economias capitalistas: a oferta de moeda, representada pela base
monetária mais os depósitos nos bancos (M2) aumentou 25% numa
comparação de ano para ano. Mas os preços dos bens e
serviços estão subindo muito pouco de fato, até o
final deste ano, a taxa de inflação ao consumidor nos EUA talvez
seja negativa. E isto pela primeira vez desde a Grande Recessão ocorrida
nos anos 1970; possivelmente, se apresentará como a maior
redução anual desde 1955.
A razão é óbvia: os gastos do consumidor e o investimento
capitalista caíram enormemente. Grande parte do dinheiro e
doações do governo não está destinada a gastos ou
investimentos, mas ao pagamento de dívidas ou acumulação
de capital por parte das empresas. Foi o que aconteceu no Japão. De
fato, o que descobrimos é que houve um declínio significativo na
velocidade da moeda desde o início dos anos 2000. A velocidade do
dinheiro mede o estoque de dinheiro em relação ao PIB nominal - e
está caindo. Esta é uma boa medida de acumular dinheiro.
A tendência coincide com a queda da taxa de lucro do capital e a
inflação dos preços ao consumidor. À medida que a
lucratividade do investimento em ativos produtivos diminuiu, o crescimento do
investimento diminuiu. As empresas investiram em ativos financeiros (capital
fictício) ou em dinheiro acumulado (as grandes empresas). As taxas de
juros e a inflação caíram, enquanto as bolsas de valores
cresceram. E é isso que está acontecendo agora. A
inflação é inexistente porque novo valor não
está sendo criado e, portanto, os lucros e os salários
estão caindo ainda mais rapidamente do que a oferta de dinheiro pode ser
injetada.
No entanto, essa situação mudará quando os bloqueios
diminuírem durante o próximo ano (faça o que fizer o
coronavírus). Então os lucros e os salários
aumentarão (não para os mesmos níveis de antes, mas ainda
assim aumentarão). Se os bancos centrais bombearem ainda mais dinheiro e
crédito, os preços subirão porque o crescimento
econômico permanecerá fraco. A demanda (de dinheiro)
excederá a oferta (novo valor). O efeito de acumulação se
dissipará e os preços subirão.
Uma estimativa da inflação baseada na convencional teoria
quantitativa da moeda sugere que as taxas de inflação podem subir
para 4-6% se os bancos centrais continuarem imprimindo dinheiro. Minha
própria estimativa sugere que a inflação seria de cerca de
3-4% no próximo ano. A inflação é uma
péssima notícia para os trabalhadores, porque ela come a renda
real dessa classe social, uma renda que foi encolhida pelo presente afundamento
econômico. Essas, no entanto, são boas notícias para as
empresas que tentam aumentar os preços para restaurar os lucros, mas
são más notícias para o setor financeiro e para os
investidores em títulos, pois seus ganhos reais serão reduzidos.
No próximo ano, o peso da dívida pública e corporativa
pressionará a recuperação econômica, enquanto a
inflação aumentará, pressionando as taxas de juros. Essa
é uma receita para falências corporativas e uma crise financeira,
ao lado de economias 'estagnadas', semelhantes à década de 1970.
29/Junho/2020
[*]
Economista, britânico.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/...
e a tradução em
eleuterioprado.files.wordpress.com/...
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