É impressionante a facilidade com que o império ocidental
está a conseguir destruir os países "rebeldes" que
estão no seu caminho, sem que haja resistência.
Trabalho em todos os cantos do planeta, onde "conflitos" kafkianos
forem desencadeados por Washington, Londres ou Paris.
O que vejo e descrevo, não são apenas aqueles horrores que
estão a acontecer à minha volta; horrores que estão a
arruinar vidas humanas, a destruir aldeias, cidades e países inteiros. O
que tento perceber é que, nas telas da televisão e nas
páginas dos jornais e da Internet, os crimes monstruosos contra a
Humanidade são descritos até certo ponto, mas as
informações são distorcidas e manipuladas de tal forma que
os leitores e os espectadores de todas as partes do mundo, acabam por
não saber quase nada sobre o seu próprio sofrimento e/ou o
sofrimento dos outros.
Por exemplo, em 2015 e em 2019, tentei reunir-me e argumentar com manifestantes
de Hong Kong. Foi uma experiência verdadeiramente reveladora! Eles
não sabiam nada, absolutamente nada sobre os crimes que o Ocidente
cometeu em lugares como o Afeganistão, Síria ou Líbia.
Quando tentei explicar-lhes quantas democracias latino-americanas Washington
havia derrubado, pensaram que eu era um lunático. Como é que o
Ocidente, bom, terno e "democrático", tinha matado
milhões de pessoas e mergulhado continentes inteiros em sangue?
Não foi o que nos ensinaram nas universidades. Não foi o que a
BBC, a CNN ou mesmo o que o
China Morning Post
disseram e escreveram.
Olhem, estou a falar a sério. Mostrei-lhes fotografias do
Afeganistão e da Síria; fotos armazenadas no meu telefone. Eles
deviam ter de compreender que era algo genuíno, em primeira mão.
Ainda assim, eles observavam, mas os seus cérebros não eram
capazes de processar o que lhes estava a ser mostrado.
Imagens e palavras; essas pessoas estavam condicionadas a não
compreender certos tipos de informações.
Mas isto não está a acontecer só em Hong Kong, uma antiga
colónia britânica.
Talvez considerem difícil de acreditar, mas mesmo num país
comunista como o Vietname; um país orgulhoso, um país que sofreu
enormemente com o colonialismo francês e o imperialismo louco e brutal
dos EUA, as pessoas com quem me relacionei (e morei em Hanói durante
dois anos) não sabiam quase nada sobre os crimes horríveis
cometidos pelos EUA e pelos seus aliados durante a chamada "Guerra
Secreta" contra os pobres e indefesos habitantes do país vizinho, o
Laos; crimes que incluíam o bombardeio de camponeses e búfalos de
água, dia e noite, por bombardeiros estratégicos B-52. E no Laos,
onde fiz uma reportagem sobre os trabalhos de desminagem, as pessoas não
sabiam nada sobre as mesmas monstruosidades que o Ocidente tinha cometido no
Camboja; onde haviam assassinado centenas de milhares de pessoas através
de atentados à bomba e desalojado milhões de camponeses das suas
casas, provocando a fome e abrindo as portas para o domínio do Khmer
Vermelho.
Quando falo dessa falta de conhecimento chocante no Vietname, sobre a
região e sobre o que esse povo foi forçado a suportar, não
falo apenas de vendedores ou de fabricantes de vestuário. Aplica-se a
intelectuais, artistas, professores vietnamitas. É uma amnésia
total e surgiu com a chamada 'abertura' para o mundo, o que significa com o
consumo da comunicação mediática ocidental e, mais tarde,
com a infiltração das redes sociais.
Pelo menos, o Vietname partilha fronteiras com o Laos e o Camboja, além
de uma história turbulenta.
Mas imaginem dois grandes países só com fronteiras
marítimas, como as Filipinas e a Indonésia. Alguns moradores de
Manilha que conheci, pensavam que a Indonésia se situava na Europa.
Agora, adivinhem, quantos indonésios têm conhecimento dos
massacres que os Estados Unidos efectuaram nas Filipinas há um
século, ou como as pessoas nas Filipinas foram doutrinadas pela
propaganda ocidental sobre todo o Sudeste Asiático? Ou quantos filipinos
têm conhecimento do golpe militar de 1965, desencadeado pelos EUA, que
depôs o Presidente Sukarno, matando entre 2 a 3 milhões de
intelectuais, professores, comunistas e sindicalistas na "vizinha"
Indonésia?
Consultem as secções estrangeiras dos jornais indonésios
ou filipinos e o que verão? As mesmas notícias da Reuters, AP,
AFP. De facto, também verão os mesmos relatórios nas
agências de notícias do Quénia, da Índia, do Uganda,
do Bangladesh, dos Emirados Árabes Unidos, do Brasil, da Guatemala e a
lista continua. Este esquema foi planeado para produzir um único
resultado: a fragmentação completa!
A fragmentação do mundo é incrível e está a
aumentar com o passar do tempo. Aqueles que esperavam que a Internet melhorasse
a situação, pensaram erradamente.
Com a falta de conhecimento, a solidariedade também desapareceu.
Neste momento, em todo o mundo, decorrem tumultos e revoluções.
Estou a noticiar as mais significativas; no Médio Oriente, na
América Latina e em Hong Kong.
Deixem-me ser franco: não há absolutamente nenhuma
percepção no Líbano sobre o que está a acontecer em
Hong Kong, ou na Bolívia, no Chile ou na Colômbia.
A propaganda ocidental joga tudo no mesmo saco.
Em Hong Kong, os manifestantes doutrinados pelo Ocidente são
apresentados como "manifestantes pró-democracia". Eles matam,
queimam, espancam pessoas, mas ainda são os favoritos do Ocidente.
Porque estão a antagonizar a República Popular da China,
considerada agora, o maior inimigo de Washington.
E porque esses manifestantes foram criados e apoiados pelo Ocidente.
Na Bolívia, o Presidente anti-imperialista foi derrubado por um golpe
orquestrado por Washington, mas a maioria da população
indígena, que exige o seu regresso, é citada como um bando de
arruaceiros.
No Líbano, assim como no Iraque, os amotinados são tratados
gentilmente pela Europa e pelos Estados Unidos, principalmente porque o
Ocidente espera que o Hezbollah pró-iraniano e outros grupos e partidos
xiitas, possam vir a ser enfraquecidos pelos protestos.
A revolução, visivelmente anti-capitalista e anti-neoliberal no
Chile, bem como os protestos legítimos na Colômbia, são
relatados como uma espécie de combinação de
explosão de queixas genuínas e hooliganismo e saques. Mike Pompeo
alertou, recentemente, que os Estados Unidos apoiarão os governos de
direita da América do Sul, na tentativa de manter a ordem.
Todas essas reportagens são um absurdo. De facto, têm um
único objectivo: confundir os espectadores e os leitores. A fim de
assegurar que eles não saibam nada ou que percebam muito pouco. E que,
no final do dia, aterrem nos sofás com suspiros profundos, exclamando:
"Oh, o mundo está um caos!"
Também conduz à tremenda fragmentação dos
países em cada continente e em todo o hemisfério sul do globo.
Os países asiáticos conhecem muito pouco uns dos outros. O mesmo
acontece com a África e com o Médio Oriente. Na América
Latina, são a Rússia, a China e o Irão que estão,
literalmente, a salvar a vida da Venezuela. Os outros países
latino-americanos, com a excepção brilhante de Cuba, não
fazem nada para ajudar. Todas as revoluções latino-americanas
estão fragmentadas. Todos os golpes produzidos pelos EUA, basicamente,
não têm oposição.
A mesma situação está a acontecer em todo o Médio
Oriente e na Ásia. Não há brigadas internacionalistas que
defendam os países destruídos pelo Ocidente. O grande predador
vem e ataca a sua presa. É uma visão horrível, como um
país morre perante o mundo, em terrível agonia. Ninguém
interfere. As pessoas apenas vêem.
Um após o outro, os países estão a render-se.
Não é assim que, no século XXI, os Estados devem
comportar-se. Esta é a lei da atracção da selva. Quando eu
morava em África, fazia documentários no Quénia, no Ruanda
e no Congo, conduzindo através do deserto; era assim que os animais se
comportavam, não as pessoas. Os grandes felinos a encontrarem a sua
vítima. Uma zebra ou uma gazela. E a caça começava: uma
ocorrência terrível. Depois, a morte lenta comendo a
vítima viva.
Muito semelhante à designada Doutrina Monroe
O Império tem de matar. Periodicamente. Com regularidade
previsível.
E ninguém faz nada. O mundo está a assistir. Fingindo que nada de
extraordinário está a acontecer.
Perguntem a si mesmos: A revolução legítima pode ser bem
sucedida em tais condições? Qualquer governo socialista eleito
democraticamente poderá sobreviver? Ou tudo que é decente,
esperançoso e optimista acaba sempre vítima de um império
degenerado, brutal e vulgar?
Se for esse caso, qual é o sentido de seguir regras? Obviamente, as
regras estão podres. Existem só para manter o
status quo.
Protegem os colonizadores e castigam as vítimas das rebeliões.
Mas não é este assunto que eu queria discutir aqui, hoje.
O que quero dizer é que as vítimas estão divididas. Sabem
muito pouco umas das outras. As lutas pela verdadeira liberdade estão
fragmentadas. Aqueles que lutam e sangram, mas que mesmo assim lutam, muitas
vezes são hostilizados pelos seus companheiros que são
mártires menos ousados.
Eu nunca vi o mundo tão dividido. Afinal, o Império está a
vencer?
Sim e não.
A Rússia, a China, o Irão, a Venezuela já
acordaram. Ergueram-se. Estão a adquirir conhecimento sobre os outros,
uns com os outros.
Sem solidariedade, não pode haver vitória.
Sem conhecimento, não pode haver solidariedade.
Nitidamente, a coragem intelectual vem agora da Ásia, do
"Oriente". Para mudar o mundo, a comunicação
mediática de destaque ocidental precisa de ser marginalizada,
confrontada. Todos os conceitos ocidentais, incluindo a "democracia",
a "paz" e os "direitos humanos" devem ser questionados e
redefinidos.
E naturalmente, o conhecimento.
Precisamos de um mundo novo, não de um mundo melhorado.
O mundo não precisa de Londres, Nova York e Paris para ensiná-lo
sobre si mesmo.
A fragmentação tem de terminar. As nações precisam
de aprender, directamente, umas sobre as outras. Se o fizerem, dentro em breve,
as verdadeiras revoluções serão bem sucedidas, enquanto os
tumultos e as falsas revoluções coloridas, como as de Hong Kong,
da Bolívia e de todo o Médio Oriente, serão confrontadas
regionalmente e impedidas de arruinar milhões de vidas humanas.
[*]
Filósofo, romancista, cineasta e jornalista investigativo.
É o criador de
Vltchek's World in Word and Images
. Escreve especialmente para a revista online
New Eastern Outlook
.
O original encontra-se em
journal-neo.org/2019/12/10/i-never-saw-a-world-so-fragmented/
e a versão em português em
nowarnonato.blogspot.com/2019/12/pt-andre-vltchek-nunca-vi-o-mundo-tao.html
. Tradução de Maria Luísa de Vasconcellos,
luisavasconcellos2012@gmail.com
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.