Esta foi uma história que, durante meses, quis partilhar com os jovens
leitores de Hong Kong. Parece-me ser agora o momento realmente apropriado,
quando a batalha ideológica entre o Ocidente e a China está ao
rubro, e, em resultado, Hong Kong e o resto do mundo estão a sofrer.
Quero dizer que nada disto é novo, o Ocidente já desestabilizou
muitos países e territórios através da lavagem ao
cérebro de dezenas de milhões de jovens.
Eu sei, porque no passado fui um deles. Se não tivesse sido, seria
impossível entender o que acontece em Hong Kong.
Nasci em Leninegrado, uma bela cidade da União Soviética. Agora
chama-se São Petersburgo e o país é a Rússia. Minha
mãe é meio russa, meio chinesa, artista e arquiteta. A minha
infância foi dividida entre Leninegrado e Pilsen, uma cidade industrial
conhecida pela sua cerveja, no extremo ocidental do que costumava ser a
Checoslováquia. O meu pai era cientista nuclear.
As duas cidades eram diferentes. Ambos representavam algo essencial no
planeamento Comunista, um sistema que os propagandistas ocidentais ensinaram
vocês a odiar.
Leninegrado é uma das cidades mais impressionantes do mundo, com alguns
dos maiores museus, teatros de ópera e ballet, espaços
públicos. No passado, foi a capital da Rússia.
Pilsen é pequena, com apenas 180 mil habitantes. Mas quando eu era
criança, contava com várias excelentes bibliotecas, cinemas de
arte, um teatro de ópera, teatros de vanguarda, galerias de arte, um
parque zoológico de pesquisa, e coisas que não se podiam
encontrar, como percebi mais tarde (quando era tarde demais) mesmo em cidades
dos EUA com um milhão de habitantes.
Ambas as cidades, uma grande e uma pequena, tinham excelentes transportes
públicos, vastos parques e florestas que chegavam até aos
arredores, além de cafés elegantes. Pilsen tinha inúmeras
instalações gratuitas de ténis, estádios de futebol
e até quadras de badmington.
A vida era boa e significativa. Era rica. Não rica em termos de
dinheiro, mas rica culturalmente, intelectualmente e em termos de saúde.
Ser jovem era divertido, com ensino gratuito e facilmente acessível, com
cultura por todo o lado e desportos para todos. O ritmo era lento: com tempo de
sobra para pensar, aprender, analisar.
Mas, também estávamos no auge da Guerra Fria.
Éramos jovens, rebeldes e fáceis de manipular. Nunca
estávamos satisfeitos com o que nos era dado. Tomávamos tudo como
garantido. À noite, ficávamos colados aos nossos receptores de
rádio, ouvindo a BBC, a Voice of America, a Radio Free Europe e outros
programas transmitidos com o objectivo de desacreditar o socialismo e todos os
países que lutavam contra o imperialismo ocidental.
As grandes empresas industriais socialistas checas construíam, em
solidariedade, fábricas inteiras, de siderurgias a refinarias de
açúcar, na Ásia, Médio Oriente e África. Mas
não víamos glória nisso porque os meios de propaganda
ocidentais simplesmente ridicularizavam esses empreendimentos.
Os nossos cinemas exibiam obras-primas do cinema italiano, francês,
soviético e japonês. Mas diziam-nos para exigirmos o lixo dos EUA.
A oferta musical era óptima, das exibições ao vivo aos
discos. Quase toda a música estava, na verdade, disponível,
embora com algum atraso, em lojas locais ou mesmo nas salas de
espectáculo. O que não era vendido nas nossas lojas era o lixo
niilista. Mas era exactamente isso que nos diziam para desejar. E nós
passámos a desejar e a copiar essa música com reverência
religiosa, para os nossos gravadores. Se algo não estivesse
disponível, os meios de comunicação ocidentais gritavam
que era uma grave violação da liberdade de expressão.
Eles sabiam, e sabem, como manipular cérebros jovens.
Em dado momento, fomos convertidos em jovens pessimistas, criticando tudo nos
nossos países, sem comparar, sem o mínimo de objectividade.
Parece-vos habitual?
Diziam-nos e repetíamos: tudo na União Soviética ou na
Checoslováquia é mau. Tudo no Ocidente é óptimo.
Sim, era como uma religião fundamentalista ou loucura em massa. Quase
ninguém estava imune. Na verdade, estávamos infectados, doentes,
transformados em idiotas.
Estávamos a usar instalações públicas socialistas,
de bibliotecas a teatros e cafés subsidiados, para glorificar o Ocidente
e manchar as nossas próprias nações. Foi assim que fomos
doutrinados pelas estações de rádio e televisão
ocidentais e pelas publicações contrabandeadas para os nossos
países.
Naqueles dias, os sacos de plástico do Ocidente tornaram-se
símbolos de status social! Sim, aquelas sacolas que se obtêm em
alguns supermercados ou lojas baratas.
Quando penso nisso a uma distância de várias décadas, mal
consigo acreditar: jovens educados, andando pelas ruas com orgulho, exibindo
sacos de plástico baratos, pelos quais pagávamos uma elevada
quantia. Porque vinham do Ocidente. Porque simbolizavam consumismo! E porque
nos diziam que o consumismo era bom.
Disseram-nos que deveríamos desejar a liberdade. Liberdade ao estilo
ocidental. Fomos assim comandados para "lutar pela liberdade".
De várias maneiras, éramos muito mais livres que no Ocidente.
Verifiquei isso quando cheguei a Nova York e vi como os jovens da minha idade
eram tão pouco instruídos e quão pouco conheciam do mundo.
Quão pouca cultura havia, em cidades norte-americanas de média
dimensão.
Nós queríamos, nós exigíamos jeans.
Estávamos ansiosos por música com etiquetas ocidentais exibidas
nos seus LPs. Não era sobre a essência ou a mensagem. Era a forma
sobre o conteúdo.
A nossa comida era mais saborosa, produzida ecologicamente. Mas
queríamos embalagens ocidentais coloridas. Exigíamos produtos
químicos. Estávamos constantemente furiosos, agitados,
provocadores. Antagonizávamos as nossas famílias. Nós
éramos jovens, mas sentíamo-nos velhos.
Publiquei o meu primeiro livro de poesia, depois saí, bati com a porta
atrás de mim e fui para Nova York. Logo depois, apercebi-me de como
estava enganado!
Esta é uma versão muito simplificada da minha história. O
espaço é limitado.
Mas estou feliz por poder partilhá-lo com meus leitores de Hong Kong e,
é claro, com meus jovens leitores de toda a China.
Dois países maravilhosos que costumavam ser a minha casa foram
traídos, literalmente vendidos por nada, por pares de jeans e sacos de
plástico.
O Ocidente festejou! Meses após o colapso do sistema socialista, ambos
os países foram literalmente roubados de tudo pelas empresas ocidentais.
As pessoas perderam suas casas e empregos e o internacionalismo foi dissuadido.
Magníficas empresas socialistas foram privatizadas e, em muitos casos,
liquidadas. Teatros e cinemas de arte foram convertidos em lojas de roupa usada
barata.
Na Rússia, a expectativa de vida caiu para os níveis da
África subsariana. A Checoslováquia foi dividida em duas partes.
Agora, décadas depois, a Rússia e a República Checa
estão novamente prósperas. A Rússia possui muitos
elementos de um sistema socialista com planeamento central.
Mas sinto falta dos meus dois países, tal como costumavam ser e todas as
sondagens mostram que a maioria das pessoas também sente a sua falta.
Também me sinto culpado, dia e noite, por me permitir ter sido
doutrinado, usado e levado a trair.
Depois de ver o mundo, entendo que o que aconteceu com a União
Soviética e na Checoslováquia também aconteceu em muitas
outras partes do mundo. E agora, o Ocidente está a pretender fazer o
mesmo à China, usando Hong Kong.
Quer na China, quer em Hong Kong, continuo sempre a repetir: por favor,
não sigam o nosso terrível exemplo. Defendam o vosso país!
Não o vendam, em termos metafóricos, por alguns sacos de
plástico sujos. Não façam algo que lamentariam pelo resto
das vossas vidas!
21/Junho/2020
[*]
Filósofo, romancista, cineasta e jornalista de
investigação. Fez a cobertura de guerras e conflitos em dezenas
de países. Três dos seus últimos livros são
Revolutionary Optimism, Western Nihilism
, a novela revolucionária
"Aurora"
e a o best-seller político:
"Exposing Lies Of The Empire"
. Atualmente, Vltchek reside no Leste asiático e no Médio Oriente
e continua a trabalhar em todo o mundo. Pode ser contactado através do
seu site e do Twitter. Escreve especialmente para a revista online
"New Eastern Outlook
"
O original encontra-se em
www.chinadailyhk.com/...
e em
orinocotribune.com/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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