As ideias feitas e a verdade escondida sobre Cuba

por Rémy Herrera [*]

'Di$$identes ou mercenários?', livro de Hernando Calvo Ospina e Katlijn Declercq. Se quiser ler o livro clique a capa para ir ao sítio indicado e descarregue-o em formato PDF. Precisamos falar mais de Cuba, camaradas. Porque muito foi dito mas talvez nem tudo. O que não o foi — o que não pôde ser dito —, é que devemos apoiar Cuba. É dever nosso, dos progressistas franceses, de prestar, hoje mais que nunca, o nosso apoio ao povo cubano e à sua revolução, frente ao imperialismo.

É urgente o apoio a Cuba, não apenas porque ela é alvo de uma verdadeira guerra de propaganda, de ataques mediáticos feitos de mentiras e de calúnias, visando estabelecer um pensamento único anti-cubano, mas também porque a luta do povo cubano não diz apenas respeito ao seu próprio futuro, nem mesmo apenas ao da América Latina, esmagada por um neoliberalismo militarista que os povos rejeitam, mas que por todo o lado lhes é imposto, à excepção de Cuba:  a luta do povo cubano diz-nos respeito a todos.

Cuba prova-nos, com efeito, que é possível resistir. Ela demonstra-nos que um povo unido pode resistir à mundialização capitalista e à sua ordem iníqua, definidora dos contornos de um apartheid mundial e dos traços de um imperialismo com cara de «smiling fascism» («fascismo sorridente»). Este povo consciente, consequente, corajoso, que aguentou o choque durante a gravíssima crise dos anos 90, reafirma cada vez mais a sua vontade de prosseguir um processo revolucionário, cuja finalidade consiste num projecto de sociedade autónoma, soberana, alternativa. Um projecto que se reivindica sempre do socialismo .

É uma evidência que uma alternativa socialista na América latina é intolerável para os Estados Unidos. Também não é surpreendente que a fracção mais reaccionária do seu establishment se encarnice contra a Cuba socialista. O que é surpreendente, pelo contrário, é ver a nossa imprensa e os nossos dirigentes políticos ditos de esquerda tomarem a iniciativa de escrever cartas e editoriais para condenar Cuba, rivalizando na baixeza e na ignorância com a reacção, sem considerarem necessário procurar saber algo mais do que aquilo que diz a máquina de guerra mediática, accionada pela extrema direita estadunidense. A pressão imperialista contra Cuba levou a esquerda francesa a esfrangalhar-se pelas suas próprias mãos e a apartar-se ainda mais das suas bases.

Para compreender o que anima e faz viver esta revolução, e também o porquê de, apesar do bombardeamento dos médias, tantos homens e mulheres se solidarizarem com Cuba, um pouco por todo o mundo — inclusive nos Estados Unidos, onde numerosos partidos políticos, sindicatos, intelectuais se solidarizam com Cuba —, é preciso ter a noção (e a consciência) da violência das relações que lhe são impostas pelos Estados Unidos. E por isso torna-se necessário romper com este pensamento único anti-cubano e desembaraçar-se das ideias feitas que nos impõem a propósito de Cuba.

O bloqueio seria um «pretexto» para dissimular o «pesadelo castrista». O bloqueio não é um pretexto, mas sim, na medida em que atenta contra a integridade física de todo um povo, um crime contra a humanidade — e todos os membros da ONU o rejeitam, à excepção dos Estados Unidos, de Israel… e das ilhas Marshall. O bloqueio não afecta apenas a entrada de bens e de capitais, mas atinge a alimentação, a saúde… mesmo os medicamentos infantis! Sofrimentos injustificáveis! É necessário que termine!

Cuba seria o resíduo anacrónico do sovietismo. Isto é esquecer que a revolução cubana é o produto da história das lutas do seu proletariado multirracial (rebeliões de escravos, guerras de independência, lutas operárias e de camponeses sem terra…), que convergiram e conduziram à vitória de 1959.

Os Estados Unidos teriam desenvolvido a economia. É falso! Antes da Revolução, o crescimento obedecia a uma lógica de financeira: lucros repatriados (por Morgan, Rockefeller…) sem desenvolvimento local. Os Estados Unidos eram proprietários da ilha. A revolução é anti-imperialista.

A URSS teria mantido Cuba no estado de «neocolonia». Cuba não era certamente um país desenvolvido em 1990; mas poderemos esquecer que a ajuda soviética foi decisiva para, pela primeira vez, colocar a economia do país ao serviço do povo? Cuba não tem nada a ver com o resto da América Latina, entregue à pilhagem da finança.

A miséria reinaria em Cuba. Não será verdade que, mesmo no auge da crise, em 1994, a FAO e a OMS publicaram dados sobre taxas de carências nutricionais três vezes mais baixas em Cuba que no Chile (modelo económico neoliberal), duas vezes mais baixas que na Costa Rica (modelo social neoliberal)? Em 2003, Cuba é, segundo o PNUD, o país que apresenta o IDH (indicador de desenvolvimento humano) mais largamente superior ao PIB; o que significa que obtém os melhores resultados sociais tendo em conta os recursos de que dispõe. Não há em Cuba crianças iletradas, sem assistência, sem abrigo, ou passando fome, porque os pilares do seu sistema social, apesar de abalados, continuam de pé. Porque Cuba permaneceu socialista.

O capitalismo teria sido restaurado. Prova: a dolarização. Actualmente, não é possível falar de transição para o capitalismo em Cuba. Os mecanismos de mercado (turismo…) aumentaram as desigualdades, mas estas são limitadas pelo facto de as reformas da revolução se fazerem sem privatização, nem mercado financeiro, nem acumulação de capital privado. A revolução é anti-capitalista.

Os fabricantes de ideias feitas sabem mentir, e melhor ainda caluniar. Parece que os portadores do vírus HIV são encerrados em sidatórios. Os doentes de SIDA beneficiam, em meio aberto, dos cuidados terapêuticos mais avançados, gratuitos. Porque é que não se diz que alguns investigadores cubanos se inocularam voluntariamente com o vírus, a fim de testar em si próprios os tratamentos que desenvolveram?

Na «maior prisão do mundo» , raros são os que podem sair do país. E que fazem os milhares de médicos das missões internacionalistas? Este internacionalismo seria «cínico». A ajuda à FLN argelina desde 1961, ao Vietname nos anos de guerra? Cínica a luta (de armas na mão) pelo fim do apartheid sul-africano? Ter-me-ia agradado tanto que o nosso país tivesse sido assim cínico!

Não há eleições em Cuba? É falso. É preciso pertencer ao Partido Comunista para ser eleito? É falso. E o partido único? O partido único não foi imposto nem importado para Cuba. Surgiu como uma necessidade histórica: a de unir a resistência de um povo face à agressão imperialista. Seria preferível um partido único do capital, sob a capa do multipartidarismo?

Diz-se que a corrupção é geral. Existe, e é combatida. Mas se há algo que sabem os capitalistas estrangeiros, é que não podem agir aí como fazem por vezes no Sul: em Cuba, os altos responsáveis da revolução e do exército não são corrompíveis.

De Fidel Castro, o que não dizem! Mas Fidel — não seria preciso, mas é melhor dizê-lo,— é admirado, é amado pela grande maioria do seu povo, e por muitos outros além do seu. Porque a categoria de homens a que pertence é a dos grandes libertadores: os Bolívar, Martí, Lenine…

Mas enfim, é uma ditadura, toda a gente o diz! Sim. todos aqueles que estão autorizados a exprimirem-se nos media do mercado. Há desaparecidos, torturados, assassinatos políticos em Cuba? Não. Goulags, «purgas estalinistas», terror? Na imaginação dos nossos especialistas em «barbárie moderna» certamente, mas não em Cuba.

E os 75 jornalistas e intelectuais, dissidentes «capturados, atirados para o calabouço» ?  Será esta acusação bem fundamentada, e serão as sanções da União Europeia justificadas? Jornalistas e intelectuais? 14 são diplomados pela universidade, dos quais 4 em jornalismo ou comunicação, e entre estes 1 foi durante algum tempo jornalista. Independentes? Mas não certamente do Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Havana e do seu chefe, Cason, enviado por Bush para organizar a peso de dólares a «dissidência». Os testemunhos de membros da Segurança do Estado cubano, infiltrados há 10 anos no Partido dos Direitos do Homem ou Associação dos Jornalistas Independentes, lançaram luz sobre a forma como os ditos dissidentes trabalhavam ao serviço de uma potência estrangeira. Qual delas? Aquela mesma que impõe o bloqueio e acolhe os grupos «anti-castristas» ! A que incita à emigração ilegal, recusando conceder vistos, mas oferecendo a nacionalidade estadunidense a todo o cubano que entre no seu território (ainda que seja pela violência), que classifica os fluxos migratórios procedentes de Cuba como uma ameaça à sua segurança e a este pretexto ameaça a ilha com uma guerra! Quem aceitaria em França a actividade de agentes pagos pelo estrangeiro para desestabilizar o país?

Não defendem eles a democracia ? Qual? A do povo? Ou a do país mais rico do mundo, que é incapaz de alimentar, de alojar, de educar, de prestar assistência médica a toda a sua população , que através de uma fraude eleitoral, colocou no poder um presidente milionário, que espezinha o direito internacional, a ONU, a opinião pública mundial, que faz sofrer ao povo iraquiano o que se sabe, que domina sem partilha o sistema capitalista mundial, enquanto todos nós desejamos «um outro mundo possível»?

Dos cinco cubanos prisioneiros nos Estados Unidos, por terem tentado prevenir as acções terroristas dos grupos anti-cubanos de Miami; das centenas de prisioneiros da base de Guantanamo, ocupada pelos Estados Unidos sobre o solo de Cuba; dos piratas do ar cubanos libertados sob caução na Florida, não se fala. A retórica dos direitos humanos é usada pelos Estados Unidos contra Cuba como arma ideológica de destruição maciça para manipular as consciências e neutralizar as resistências. Aos que já não se lembram, os chilenos encarregam-se de lhe lembrar, 30 anos depois, o golpe de Estado fascista contra Allende.

Como apoiar um regime que recorre à pena de morte? Os acontecimentos recentes, graves (execução de três sequestradores), não são o modo de existência da Revolução, mas uma resposta à medida da terrível ameaça que o actual governo dos Estados Unidos faz pesar sobre a ilha. O autor destas linhas, opositor à pena de morte, recorda ainda com emoção e orgulho o dia, não muito longínquo, em que ela foi banida do Direito francês. Mas também compreende que o povo cubano tem o direito de se defender contra os seus inimigos, contra os que querem destruir a Revolução, pelo exemplo e pela esperança que ela representa para todos os povos do mundo, contra os que a ameaçam com uma guerra militar.

Não nos enganemos no campo de combate! Tenhamos mais discernimento! Era preciso Cuba, era preciso este povo heróico, era precisa esta Revolução para desencadear tais calúnias! «Que poder mágico é este de transformar a virtude em vício e o vício em virtude?», perguntava Robespierre, acrescentando: é preciso «passar a verdade de contrabando».   Então, camaradas, sejamos os contrabandistas da verdade!  E esta verdade, podemos exprimi-la alto e bom som:

Viva Cuba!


[*] Economista, investigador no CNRS. É autor de um relatório apresentado à ONU sobre os efeitos do bloqueio e coordenou a edição da obra colectiva Cuba révolutionnaire (L'Harmattan, 2003).

O original foi publicado em L'Humanité , 29/Set/2003. Tradução de Carlos Coutinho

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

06/Out/03