O DL 10-G/2020 permite às empresas despedir milhares de trabalhadores

– A necessidade de reorganizar a economia de um modo diferente e de voltar ao trabalho, mas com segurança
– A economia não aguenta muitos meses esta situação, como a DGS prevê que seja necessário

por Eugénio Rosa [*]

Embora sendo quase uma heresia neste momento, é importante falar, serena e objetivamente, da situação da economia, enquanto tudo se faz, e bem, para enfrentar a grave crise de saúde publica causada pelo "coronavírus". Isto porque se a economia entrar numa recessão prolongada ou mesmo numa depressão profunda, os sofrimentos para os portugueses serão ainda maiores que os da crise de 2008. Mas antes analisemos a nova lei do "lay-off" rápido e fácil que vai permitir milhares de despedimentos

Contrariamente ao que aconteceu em Espanha onde o governo proibiu os despedimentos durante o período da crise de saúde pública causada pelo "coronavírus" (o despedimento resultante COVID-19 é considerado automaticamente despedimento injustificado), em Portugal o governo, cedendo às pressões dos patrões, aprovou uma lei que permite às empresas despedirem os trabalhadores que queiram, ficando dependente do arbítrio dos patrões a seleção dos que serão despedidos.

O DECRETO-LEI 10-G/2020, OU LEI DO "LAY-OFF" FÁCIL E RÁPIDO, PERMITE AOS PATRÕES DESPEDIR CENTENAS DE MILHARES DE TRABALHADORES

O Decreto-Lei 10-G/2020, aprovado pelo governo e promulgado pelo presidente da República por pressão dos patrões e suas associações, permite às empresas, se quiserem, despedir os trabalhadores com contratos a termo (a prazo), os trabalhadores a "recibos verde" e mesmo trabalhadores com contratos de trabalho por tempo indeterminado. E podem despedir mesmo nas situações em que a entidade patronal esteja a receber apoios do Estado para não despedir.

E isto porque, de acordo com este decreto-lei, devido à redução significativa da atividade ou do fecho temporário causado pelo "coronavírus" o empregador pode optar pelo "lay-off", ou seja, suspender os contratos de trabalho dos empregados da sua empresa. Mas esta suspensão pode não abranger a totalidade dos trabalhadores pois, segundo o nº2 do artº 4º, compete ao empregador elaborar a "listagem dos trabalhadores abrangidos e respetivo número de segurança social". Portanto a lei não obriga que a totalidade dos trabalhadores da empresa entrem em "lay-off" nem estabelece critérios. É dada à entidade patronal o direito de selecionar os trabalhadores que quer manter e os trabalhadores que quer despedir.

E isto é reforçado pelo artº 13 do mesmo decreto-lei (proibição de despedimentos) que dispõe o seguinte: "Durante o período das medidas de apoio previstas no presente decreto-lei, bem como nos 60 dias seguintes, o empregador não pode fazer cessar contratos de trabalho de trabalhadores abrangidos pelo lay-off", ou seja, constantes da lista elaborada pela entidade patronal, e só estes é que ele não pode despedir para obter as ajudas do Estado. E apenas "durante o período de aplicação das medidas de apoio previstas no decreto-lei, bem como nos 60 dias seguintes" (artº13º). Os que não constarem da lista elaborada pelo empregador podem ser despedidos com a justificação, por ex. de "extinção do posto de trabalho".

É previsível que os patrões aproveitem a lei para reduzir o número de trabalhadores, e assim custos atuais e os futuros, tendo em conta a forte recessão económica que se seguirá após a crise de saúde publica causada pelo "coronavírus". Esta é prevista por todos os economistas embora com dimensões diferentes (queda do PIB entre 5,7% segundo o Banco de Portugal e 20% de acordo com outra mais pessimista de economistas da Universidade Católica). E isto até porque reduz as despesas imediatas que teria de suportar se colocasse todos os trabalhadores em " lay-off".

Efetivamente de acordo com o nº1 do artº 343 do Código de Trabalho, que se aplica, os trabalhadores colocados em "lay-off" têm direito "a receber apenas o "equivalente a dois terços da sua retribuição normal ilíquida", portanto sofrem uma redução imediata de um terço na sua remuneração bruta. E os dois terços são pagos 30% pelo empregador e 70% pela Segurança Social. Portanto a entidade patronal tem todo o interesse em reduzir o número de trabalhadores em "lay-off" para reduzir o pagamento daqueles 30%. E o decreto-lei 10-G/2020 aprovado pelo governo deixa a entidade patronal de mãos livres para o poder fazer os despedimentos que pretende.

Portanto, correm sério risco de despedimento os trabalhadores com contrato a termo (a prazo) cujo número no fim de 2019 era de 706.600, bem como os com " recibo verde " que, na mesma data, eram cerca de 124.800 segundo dados do INE. A estes ainda se podem juntar muitos com contrato por tempo indeterminado (todos aqueles que a entidade patronal tem interesse em despedir ou para pagar salários mais baixos contratando outros no futuro de acordo com a recuperação da economia, ou com maior escolaridade), ou seja, todos aqueles que intencionalmente não incluiu na listagem para "lay-off"

O Decreto-Lei 10-G/2020, concede uma série de apoios às empresas mesmo que despeçam trabalhadores utilizando o expediente de não os incluir na lista para "lay-off". Segundo a alínea d) do nº1 do artº 4º do mesmo decreto-lei as empresas gozam de uma "isenção temporária do pagamento de contribuições para a Segurança Social, a cargo da entidade empregadora " dos trabalhadores abrangidos, ou seja, constantes da referida lista. E quando retomarem a atividade, segundo o artº 10º do mesmo decreto-lei, " os empregadores (mas não os trabalhadores), têm direito a um incentivo financeiro extraordinário para apoio à retoma de atividade da empresa, a conceder pelo IEFP, pago de uma só e com o valor de uma RMMG (635€) por trabalhador". Para além disso, ainda podem utilizar linhas de credito de apoio à liquidez garantidas em 90% pelo Estado.

A colocação de trabalhadores na situação de "lay-off" (suspensão do contrato de trabalho ou redução do período normal de trabalho) pela entidade patronal é extremamente rápida e fácil de acordo com o artº 3º do Decreto-Lei nº 10-G/2020. Basta enviar para a Segurança Social a listagem de trabalhadores que a empresa pretende colocar em "lay-off" acompanhada de " uma declaração do empregador conjuntamente com certidão do contabilista certificado que ateste a paragem total ou parcial da atividade da empresa ou a quebra abrupta e acentuada de pelo menos 40% da faturação num período de 30 dias…" e preencher um formulário que está disponível no "site" da Segurança Social . E, quanto muito, poderão ser fiscalizadas "a posteriori" (nº2 do artº 3º). Portanto, a aceitação do "lay-off" é imediato com a entrega da declaração da entidade patronal e da certidão do contabilista. A única obrigação que tem a entidade patronal em relação aos trabalhadores, é comunicar por escrito aos trabalhadores abrangidos a respetiva decisão, indicando a duração previsível, ouvindo os delegados sindicais e comissões de trabalhadores, quando existam" (artº4º nº2) mas estas não têm qualquer poder para se opor à decisão patronal. No entanto, é importante que estas e os respetivos sindicatos bem como os próprios trabalhadores denunciem, pois caso contrário poderemos assistir a milhares e milhares de despedimentos selvagens.

A NECESSIDADE URGENTE DE REORGANIZAR DE UMA FORMA DIFERENTE TODA A NOSSA ECONOMIA PARA A TORNAR MENOS DEPENDENTE E MENOS VULNERÁVEL: eis uma lição da crise

Nos dois estudos anteriores que publicamos (estudos 11-2020 e 12-2020) disponíveis no "site" www.eugeniorosa.com , na pasta "ULTIMOS ESTUDOS", analisamos, com base em dados oficiais, as fragilidades da nossa economia e do Estado que dificultam e enfraquecem muito o combate a esta crise: Destacamos de uma forma sintética o seguinte, pois é importante ter presente, na reflexão e no debate de "COMO REORGANIZAR A NOSSA ECONOMIA PARA SAIR DESTA CRISE E ENFRENTAR AS CRISES FUTURAS":
(1) Uma economia extremamente dependente do exterior
(entre 2008 e 2019, a percentagem que a soma das importações mais exportações representam em relação ao valor do PIB aumentou de 68,2% para 82,8%, e a vulnerabilidade é ainda maior, se tiver presente que, em 2019, 31,8% das exportações portuguesas foram serviços, e a grande maioria é constituída por receitas do turismo que enfrenta uma profunda crise). Tal dependência, está a ter graves consequências para o nosso país devido à quebra nas exportações causada pelo "coronavírus" nos países compradores de bens a Portugal, e também a nível de importações dificultando a obtenção de abastecimentos e de matérias primas, incluindo peças, o que está a paralisar muitas empresas. Tudo isto acontece porque o nosso "modelo de desenvolvimento", impulsionado pelos sucessivos governos, assentou fundamentalmente nas exportações/importações e no desprezo pela produção nacional.
(2) Um crescimento económico baseado num modelo trabalho intensivo e de redução do investimento (entre 2012/2018, a Formação Bruta de Capital Fixo, ou seja o investimento, foi inferior ao Consumo de Capital Fixo, ou seja, ao desinvestimento causado pelo uso ou pela obsolescência em 19.208 milhões €). No período 2015-2018, com o governo Costa/Centeno o saldo foi também negativo em 6.989 milhões € motivado essencialmente pela quebra do investimento público). Tal facto determinou que, entre 2012 e 2019, o "Stock de capital liquido por trabalhador" tenha diminuído na economia portuguesa de 122.000€ para apenas 110.000€ (-9,9%), o que teve como consequência que a produtividade aparente do trabalho (PIB a preços constantes a dividir pelo numero de trabalhadores) tenha-se reduzido de 48.380€/ano para 47.039€/ano no mesmo período.
(3) Um forte endividamento do Estado (entre 2011 e 2019, a divida das Administrações Públicas aumentou de 214.178 milhões € para 310.114 milhões €, e a divida na ótica de Maastritch tenha passado, no mesmo período, de 138.111 milhões € para 249.740 milhões €, tendo aumentado com os governos Costa/Centeno em 32.793 milhões €), o que torna muito mais difícil o combate à crise de saúde publica causada pelo "coronavírus" e também muito mais difícil depois a retoma da economia por falta de recursos do Estado, a não ser que recorra maciçamente a empréstimos o que determinará que Portugal ficará totalmente dependente dos mercados financeiros, ou seja, dos grandes grupos financeiros, devido também à falta de solidariedade que existe na UE. já que os países mais ricos recusam os "coronabonds", empréstimos, por ex. a 30 anos com taxas de juro próximas de zero para não estrangular os países que enfrentam graves dificuldades.

Tudo isto e o sofrimento enorme que causará aos portugueses, muito maior do que o da crise de 2008/2015, deve obrigar a reflexão sobre a situação da economia e do Estado, visando a reorganização da economia, tornando o país menos dependente do exterior e das "ajudas" da U.E., investindo fortemente na saúde, na educação e na modernização do aparelho produtivo nacional, e na produção nacional tornando o pais menos dependente do exterior.

É urgente substituir o atual modelo de trabalho intensivo, de baixos salários e baixa produtividade, por um modelo de capital, conhecimento e inovação intensivo visando o aumento da produtividade e melhores salários. É urgente substituir o modelo atual baseado fundamentalmente nas exportações, que tornou o pais dependente e vulnerável a crises como a atual, crises essas cada vez mais frequentes, por um modelo de desenvolvimento baseado no aumento e valorização da produção nacional, sendo as exportações um complemento desta, e não o inverso como atualmente sucede, o que dificulta a recuperação económica e a melhoria das condições de vida dos portugueses.

É URGENTE RETOMAR O TRABALHO, MAS DE FORMA SEGURA, POIS A ECONOMIA NÃO AGUENTA MUITOS MESES ESTA SITUAÇÃO COMO PREVÊ A DGS QUE SEJA NECESSÁRIO PARA DEBELAR A EPIDEMIA, CASO CONTRÁRIO OS SACRIFICIOS SERÃO ENORMES PARA OS PORTUGUESES

Embora correndo o risco de ser acusado de neoliberal e de não me importar com as pessoas, é preciso ter a coragem dizer (é a realidade), que cada semana e mês que passem, em que a maioria do país está parado e em casa, mais se afunda a economia e o Estado. É preciso falar aos portugueses com verdade. É esse o dever e a obrigação, a meu ver, dos economistas, obrigando a um reflexão nacional para encontrar uma via para sair da atual situação, defender a saúde e a vida dos portugueses, mas também evitar o colapso da economia pois, caso contrário, os sofrimentos humanos serão enormes e prolongados, pois uma percentagem importante da população trabalhadora perderá o emprego e, consequentemente, a única fonte de rendimentos para viver, e o Estado ficará estrangulado. Para evitar falsas acusações, quero já dizer que não defendo o regresso ao trabalho sem segurança para as pessoas e de qualquer forma. Mas antes interessa relembrar o frágil tecido empresarial do país.

Segundo o INE, o tecido empresarial português é constituído, maioritariamente, por micro e pequenas empresas (em média, dois trabalhadores por empresa, com salários entre 735€ e 994€), cujo número era 1.287.076 de empresas em 2018, dando emprego a 2.613.811 pessoas sendo 1.652.378 trabalhadores remunerados. Muitas destas empresas já fecharam e milhares desaparecerão se a economia se mantiver parada durante muito tempo como prevê a DGS que seja necessário para debelar a epidemia

Por outro lado, é preciso também dizer que o Estado não tem possibilidades de suportar, durante muitos meses, quase um ano como prevê a DGS que seja necessário para debelar o "coronavírus", pagar subsídios às empresas e às pessoas, pagar uma parte das próprias remunerações do setor privado para garantir os rendimentos das famílias, conceder múltiplos apoios financeiros que os diversos setores não se cansam de pedir, e ao mesmo tempo as receitas fiscais do Estado, que é a sua fonte de financiamento, caiem abrupta e significativamente devido à queda acentuada da atividade económica, ao perdão ou adiamento de cobrança de impostos e contribuições. "Só nas medidas de apoio às famílias (240 milhões € às 750.000 famílias com crianças até aos 12 anos) e de manutenção dos postos de trabalho que aprovámos, nós temos um impacto previsível de cerca de dois mil milhões de euros por mês", disse Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho. Portanto, é urgente preparar as condições para que o regresso ao trabalho se faça de forma gradual mas segura para os trabalhadores.

Em países como a Inglaterra e Espanha, os governos, para além dos testes moleculares que são os únicos que se fazem (ainda em numero insuficiente) em Portugal para identificar as pessoas com coronavírus, para os tratar e isolar, já começaram a fazer também testes de anticorpos, que têm como objetivo identificar aqueles que, devido a terem já tido "coronavírus" benigno ficaram imunes (na Islândia estes testes feitos a toda a população concluíram que 50% da população tinha sido infetada e curada sem se aperceber, permitindo também obter taxas de mortalidade mais verdadeiras) podendo regressar gradualmente e com segurança ao trabalho e por a funcionar parte da economia parada. É importante que esses testes sejam adquiridos em países da UE e em Portugal com forte poder regulatório para garantir a sua fiabilidade, e evitar a multiplicação de falsos negativos que seria perigoso. E mesmo esse regresso gradual ao trabalho devia ser feito de uma forma planeada, por ex., com horários de entrada e saída diferenciados por setores para evitar grandes ajuntamentos nos transportes públicos, e nas empresas criando equipas rotativas (umas trabalhando numa semana, outros em outra) para reduzir os riscos. E os testes moleculares para identificar pessoas infetadas com coronavírus deviam-se multiplicar para segurança desses portugueses e dos restantes.

Este debate – como e quando regressar ao trabalho – é necessário que se comece já a fazer e a preparar a sua implementação, pois leva tempo, a não ser que se queira, repito, pôr o país à mercê dos grandes fundos financeiros predadores, já que os países ricos da UE, cuja riqueza tem sido obtida também à custa dos outros países, como é a Holanda, que funciona como um paraíso fiscal, para onde as grandes empresas a operar em Portugal vão para não pagar impostos no nosso país, recusam os "coronabonds", numa prova clara da falta de solidariedade que existe a nível europeu.

30/Março/2020

[*] edr2@netcabo.pt

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
31/Mar/20