O projecto de alteração das condições de acesso
à ADSE
e a estranha resposta de um secretário de Estado
O governo apresentou aos sindicatos da Função Pública um
projecto de Decreto-Lei
que visa, por um lado, revogar o Decreto-Lei 118/83,
que regula as coberturas na área da saúde dos trabalhadores da
Função Pública, e, por outro, introduzir
alterações profundas na ADSE. É importante que os
trabalhadores saibam quais são essas alterações pois, se
forem aprovadas, elas terão consequências negativas no direito
à saúde garantido pela Constituição da
República.
Neste estudo, para o não alongar muito, vão-se apenas analisar os
aspectos mais importantes e, eventualmente, mais graves para os trabalhadores
da Função Pública do Projecto de Decreto-Lei do governo. E
eles são fundamentalmente três, a saber: (a) Esvaziamento dos
subscritores da ADSE; (b) Limites quantitativos ao número de actos
comparticipados; (c) Redução do valor das
comparticipações. Mas antes interessa recordar e clarificar um
aspecto importante, que é habitualmente esquecido.
OS TRABALHADORES E OS APOSENTADOS DA FUNÇÃO PÚBLICA PAGAM
PARA ADSE 250 MILHÕES POR ANO, PARA ALÉM DOS IMPOSTOS COMO
TODOS OS PORTUGUESES
Em 2011, os trabalhadores da Função Pública
contribuirão com 11% das suas remunerações para a CGA para
financiar as pensões que receberão quando se aposentarem. Mas
para além deste pagamento também contribuem para a ADSE com 1,5%
das suas remunerações, e os aposentados com 1,3%, percentagem
esta que aumenta todos os anos em 0,1% até atingir 1,5%. Portanto, uma
situação diferente da que sucede com os restantes trabalhadores
que não têm de descontar para o SNS. O Serviço Nacional de
Saúde (SNS) é financiado com as receitas de impostos pagos por
todos os portugueses, incluindo pelos trabalhadores da Função
Pública.
O desconto de 1,5% dos trabalhadores da Administração
Pública significa uma contribuição destes para a ADSE de
cerca de 200 milhões de euros por ano, e uma redução nas
suas remunerações de idêntico valor. E o desconto de 1,3%
nas pensões dos aposentados significa que estes contribuem para a ADSE
com cerca de 50 milhões de euros por ano, e uma redução
nas suas pensões de idêntico valor. A ADSE abrangia, em 2009,
1.353.272 portugueses (trabalhadores, aposentados e familiares). Muitos
subscritores da ADSE utilizam o SNS. Quando isso sucede a ADSE paga esses
serviços ao SNS (420,6 milhões em 2009). A partir de 2010,
o Orçamento do Estado transfere para o SNS a importância (470
milhões em 2010) para suportar os custos daí resultantes,
como sucede com quaisquer outros portugueses. As contribuições
que os trabalhadores e os aposentados da Função Pública
pagam à ADSE 250 milhões em 2010 são
utilizados para pagar serviços não fornecidos pelo Serviço
Nacional de Saúde. Ao obter desta forma serviços de
saúde, esses trabalhadores estão a libertar o SNS desse encargo
que, em grande parte, é pago pelas contribuições que pagam
para a ADSE, para além dos impostos como qualquer outro português.
Por isso, a ADSE não é um privilégio mas sim um
serviço que garante aos trabalhadores da Função
Pública o direito à saúde consagrado na
Constituição da República pela qual ainda pagam, para
além dos impostos, uma taxa que não é exigida aos
restantes portugueses.
A TENTATIVA DE ESVAZIAR E DESTRUIR A ADSE
O governo pretende esvaziar a ADSE dos seus subscritores, o que poria
também em causa a sua sustentabilidade financeira, pois ela assenta na
solidariedade de todos os trabalhadores e aposentados da Função
Pública já que estes contribuem com os seus descontos para o
financiamento da ADSE.
De acordo com o nº1 do artº 12º do Projecto, "no prazo de
seis meses a contar da data de constituição da sua primeira
relação jurídica de emprego público, o trabalhador
deve declarar à entidade empregadora se pretende ser inscrito na
ADSE". Se o não fizer, segundo o nº2 do mesmo artigo, tal
facto "determina a caducidade do direito". Portanto, fica
definitivamente excluído da ADSE. Isto em relação aos
novos trabalhadores que entrarem para a Função Pública.
Em relação aos que já estão na
Administração Pública, de acordo com o nº1 do
artº 17º do Projecto de Decreto-Lei "os beneficiários
podem, a todo o tempo, renunciar essa qualidade". E segundo o nº2
"a renúncia tem natureza definitiva, determinando a perda de
qualidade do beneficiário da ADSE e a impossibilidade de nova
inscrição".
O objectivo é claro: reduzir o financiamento e extinguir gradualmente a
ADSE, já que se o número de subscritores diminuir
significativamente, a sustentabilidade financeira da ADSE será posta
rapidamente em causa, até porque as contribuições dos
trabalhadores e aposentados representam uma parcela importante do seu
financiamento. Mas o objectivo do governo em acabar com a ADSE resulta
também de outras disposições constantes do Projecto
Decreto-Lei que vamos analisar seguidamente.
O GOVERNO PRETENDE FIXAR LIMITES QUANTITATIVOS AOS ACTOS COMPARTICIPADOS PELA
ADSE
Outro ponto que poderá ter graves consequências é o que
consta em várias disposições do Projecto de Decreto-Lei
que poderá eventualmente introduzir, se for aprovado, graves
limitações ao direito à saúde consagrado no
artº 64º da Constituição da República.
Assim, o artº 29º do Projecto de Decreto-Lei com o titulo
"Atribuição e montante dos benefícios", no seu
nº 5 dispõe que "Podem ser fixados limites ao valor dos
benefícios e ao número de actos, cuidados ou bens a conceder em
prazos determinados". Neste momento, já existem limites a certos
bens (por ex., próteses que têm um período mínimo de
vida útil) e a certos actos (por ex. número de sessões de
fisioterapia) mas não existem limites em relação a actos
médicos. Por isso, na reunião de 11/11/2010, uma questão
colocada ao
secretário de Estado da Administração Pública
foi a de saber se o termo "actos", constante do
Projecto de Decreto-Lei, incluía também os "actos
médicos" (ex. consultas). E resposta foi surpreendente: O
secretário de Estado não estava preparado para poder responder
naquele momento a essa questão.
Mas não é apenas neste artigo que se encontra a possibilidade de
se introduzirem limites quantitativos ao acesso aos serviços abrangidos
pela ADSE.
Na Secção II do Projecto, que trata da "Rede de entidades
convencionadas", a alínea d) do nº1 do artº 35, com o
titulo "Tabela de Preços", dispõe que "Os
benefícios podem ser limitados quantitativamente.
Para se poder ficar com uma ideia clara do que representaria a eventual
introdução de limites quantitativos aos actos médicos,
interessa referir que esta questão já foi estudada por uma
comissão nomeada pelo ex-ministro da Saúde, Correia Campos,
aquando da elaboração do Relatório sobre sustentabilidade
financeira do Serviço Nacional de Saúde tendo concluído
que "de um ponto de vista jurídico-constitucional, a
introdução de limitação das coberturas cria
dificuldades de natureza jurídico-constitucional ao se colocar em causa
a universalidade e a generalidade do SNS" (pág.155 do
Relatório ver também Anexo 4). E o que se aplica ao SNS
naturalmente se aplica à ADSE
O GOVERNO PRETENDE REDUZIR AS COMPARTICIPAÇÕES DA ADSE
Mas as restrições que o governo pretende impor os trabalhadores
da Função Pública em relação ao direito
constitucional à saúde não se limitam aos casos referidos.
Assim, em relação à tabela de preços, o nº2 do
artº 35 dispõe que "Na fixação dos preços
não devem ser excedidos os preços médios ou os
preços mais frequentes praticados no mercado".
Esta disposição em relação ao "Regime
livre" é concretizada no nº2 do artº 38º da seguinte
forma: "O montante de reembolso, para cada tipo, grupo ou conjunto de
cuidados de saúde, não deve exceder 80% do valor médio dos
preços ou do valor mais frequente praticado no mercado". Portanto,
o trabalhador deixaria, se esta norma fosse aprovada, de ter direito a 80% do
que pagou, mas sim a 80% do "preço médio ou valor mais
frequente praticado no mercado" que poderá ser bastante inferior ao
que pagou, já que este preço médio é determinado
pela ADSE. Portanto, é uma forma indirecta de reduzir a
comparticipação. Suponha-se o seguinte exemplo imaginado. O
trabalhador recorre a um médico privado e paga pela consulta 60 euros.
Actualmente tem direito a ser reembolsado em 80%, ou seja, recebe 48 euros.
Suponha-se que a ADSE fixa o preço de 30 euros. A
comparticipação passa a ser 80% de 30 euros, ou seja, recebe
apenas 24 euros, que corresponde apenas a 40% do valor que pagou ao
médico. É evidente que o objectivo é, por um lado,
transferir custos para os trabalhadores; por outro lado, desmobilizá-los
na utilização deste direito que actualmente têm; e,
finalmente, levá-los a anular a sua inscrição na ADSE, o
que é facilitado por uma alteração que o governo pretende
introduzir na lei que já analisamos anteriormente. Também
relativamente a este ponto o secretário de Estado da
Administração Pública afirmou que não estava
preparado para o esclarecer.
UM SECRETÁRIO DE ESTADO QUE NÃO ESTAVA PREPARADO PARA ESCLARECER
OS PONTOS MAIS GRAVES DO PROJECTO QUE ELE PRÓPRIO ENVIOU AOS SINDICATOS
Durante a reunião realizada em 11/11/2010 com os sindicatos da Frente
Comum, o secretário de Estado da Administração
Pública recusou-se a esclarecer os pontos mais graves do Projecto de
Decreto-Lei com a justificação que "não estava
preparado para responder a essas questões". E essa
justificação não deixa de ser bastante estranha pois foi
precisamente o mesmo secretário de Estado que enviou o Projecto de
Decreto-Lei aos sindicatos. Parece então que nem o leu nem o estudou.
Mas deste governo já nada surpreende. O secretário de Estado
prometeu enviar uma explicação escrita, que se aguarda.
15/Novembro/2010
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Economista,
edr2@netcabo.pt
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