Utensílios com vida própria
Quase toda a gente se queixa de vez em quando que as nossas ferramentas
passaram a ser Aprendizes de Feiticeiros; que acabámos por estar ao
serviço das nossas máquinas em vez de ser o contrário; e
que a nossa vida está cada vez mais organizada como se nós
próprios fôssemos meras engrenagens dum grande mecanismo
completamente fora do nosso controlo.
Não somos os primeiros a sentir isto: a crítica à
tecnologia já tem passado. Os 'luditas'
[1]
da Inglaterra dos princípios do século XIX foram dos primeiros a
levantar a voz e martelos! contra os efeitos desumanizadores da
mecanização. À medida que a
industrialização avançava, década após
década dos teares mecânicos até às pás
a vapor, aos aviões a jacto e às escovas de dentes
eléctricas as objecções à
adopção acelerada e insensata de novas tecnologias tornaram-se
mais eruditas. No século passado, os livros de Lewis Mumford, Jacques
Ellul, Ivan Illich, Kirkpatrick Sale, Stephanie Mills, Chellis Glendinning,
Jerry Mander,
John Zerzan
, e Derrick Jensen, entre outros, ajudaram
gerações de leitores a entender o como e o porquê de as
nossas ferramentas terem acabado por nos escravizar, colonizando os nossos
espíritos e as nossas rotinas diárias.
Estes autores chamaram-nos a atenção para que essas ferramentas,
longe de serem moralmente neutras, são amplificadoras dos objectivos
humanos; daí que cada ferramenta contenha em si mesma a inerente
intenção primitiva do seu inventor. Podemos utilizar um
revólver para pregar pregos, mas ele funciona melhor como uma
máquina para a missão imediata de causar danos físicos; e
quanto mais revólveres houver, mais provável se torna que os
conflitos pessoais diários se resolvam inevitavelmente a tiro. Assim,
tal como os conflitos dos objectivos humanos constituem o cerne das
discussões éticas e políticas, também a tecnologia
em si mesma, à medida que se desenvolve, se torna inevitavelmente no
sujeito duma ampla exibição das controvérsias sociais. As
batalhas sobre a tecnologia dizem respeito a nada menos do que à forma e
ao futuro da sociedade.
Em princípio, estas batalhas se não as discussões
académicas em torno delas percorrem todo o caminho desde a idade
neolítica, desde o tempo em que dominámos o fogo há
dezenas de milhares de anos. Mumford escreveu um parágrafo completo
realçando como as modernas megatecnologias são
exteriorizações duma máquina social que teve origem nos
estados primitivos da Idade do Bronze:
"Os inventores das bombas nucleares, mísseis espaciais e
computadores são os construtores em pirâmide da nossa
época: inchados psicologicamente por um tal mito de poder absoluto,
ostentando através da ciência a sua crescente omnipotência,
ou mesmo omnisciência, motivados por obsessões e compulsões
não menos irracionais do que as dos antigos sistemas absolutos:
principalmente a noção de que o próprio sistema tem que se
expandir, qualquer que seja o seu preço". (citado em
Questioning Technology,
publicado por Zerzan e Carnes).
Zerzan vai mais longe, afirmando que os homens têm tendência para
abstrair e manipular, o que está no centro da nossa capacidade de
fabricar utensílios, e que nos isola das nossas relações
inatas com o mundo natural e, por isso, ofuscam a nossa própria natureza.
É certamente útil esta tentativa de mostrar que a actual crise
tecnológica tem origem em antigos padrões. Mas também
é importante ter em mente o facto de que a discussão sobre os
danos colaterais da mecanização intensificou-se relativamente nos
últimos tempos, devido ao facto de que a escala da
introdução da tecnologia nas nossas vidas e o seu preço
sobre o ambiente cresceu enormemente só nos dois séculos passados.
Alguns tecno-críticos tentaram explicar esta recente explosão do
poder e da variedade dos nossos utensílios relacionando-a com os
progressos na filosofia (dualismo cartesiano) ou na economia (capitalismo).
Estranhamente, poucos são os críticos que discutem com alguma
profundidade o papel dos combustíveis fósseis na
revolução industrial. Ou seja, concentram normalmente a sua
atenção nos impactos dos utensílios na sociedade e na
natureza, e nas condições políticas e nas ideologias que
permitiram a sua adopção, mais do que no facto de que a maioria
dos novos utensílios que apareceram ao longo dos dois séculos
passados são dum tipo anteriormente raro as que vão buscar
a energia para o seu funcionamento não à energia muscular, mas
à queima de combustíveis.
Mumford, um dos meus autores favoritos, dedicou apenas um comentário ao
carvão numa das 700 páginas da sua obra-prima em dois volumes,
The Myth of the Machine,
e no índice de qualquer dos volumes nada aparece sobre o
"petróleo". O meu próprio livro de 1996,
A New Covenant with Nature,
que era dedicado na sua maior parte a uma crítica ao industrialismo,
não está melhor: "carvão",
"petróleo" e "energia" estão ausentes do seu
índice.
E contudo parece-me agora que, para avaliar a tecnologia e compreender os seus
efeitos sobre as pessoas e a natureza, é pelo menos tão
importante prestar atenção à energia que move as
ferramentas como às próprias ferramentas e à matriz
político-ideológica envolvente. Em resumo, nós que temos
vindo a criticar a sociedade tecnológica, utilizando os métodos
da análise histórica, ignorámos pelo menos metade da
história que estamos a tentar tecer, quando ignorámos a
evolução energética das ferramentas.
Este artigo é uma breve tentativa de compensar este descuido.
Também tenta analisar porque é que o
pico iminente da produção global do petróleo
fará saltar a rolha do
tipo de "progresso" a que nos habituámos nos últimos
dois séculos, proporcionando uma oportunidade histórica para
reformular as relações da humanidade com a tecnologia e a sua
natureza.
CLASSIFICAÇÃO DOS UTENSÍLIOS
Convém, para os nossos objectivos, ter uma forma de
classificação dos utensílios conforme as suas fontes de
energia. As seguintes quatro categorias, realçadas no meu livro
The Party's Over,
correspondem grosso modo às quatro principais épocas da
evolução social:
Classe A.
Utensílios que exigem apenas energia humana para a sua
manufactura e utilização. Como exemplo, incluem-se as pontas de
lança e pontas de flechas de pedra, utensílios para moer, cestos
e vestuário de peles de animais. Encontramos este tipo de
utensílios nas sociedades recolectoras-caçadoras.
Classe B.
Utensílios que exigem uma fonte de energia externa para o seu
fabrico, mas apenas energia humana para a sua utilização.
Exemplos: todos os utensílios básicos de metal, tais como facas,
armaduras de metal e moedas. Estes utensílios foram a base das primeiras
civilizações agrícolas com centro na Mesopotâmia,
China, Egipto e Roma.
Classe C.
Utensílios que exigem apenas energia humana para o seu
fabrico, mas captam uma fonte de energia externa. Exemplos: o arado de madeira
puxado por animais de carga, a utilização do fogo, o barco
à vela, o moinho de vento e o moinho de água. A
utilização do fogo foi feita pelos caçadores-recolectores,
e o arado de madeira e o barco à vela desenvolveram-se nas primeiras
sociedades agrícolas; o moinho de vento e o moinho de água
apareceram em estádios mais avançados da evolução
social.
Classe D.
Utensílios que precisam de uma fonte de energia externa para o
seu fabrico e também captam ou utilizam uma fonte de energia externa.
Exemplos: o arado de aço, a espingarda, a máquina a vapor, o
motor de combustão interna, o motor a jacto, o reactor nuclear, a
turbina hidroeléctrica, o painel fotovoltaico, a turbina eólica e
todos os equipamentos eléctricos. Estes instrumentos e sistemas de
instrumentos são o fundamento das sociedades industriais modernas; na
verdade, definem-nas.
Durante milhares de anos, os seres humanos empenharam-se numa luta constante
para dominar energia extra-somática (ou seja, fontes de energia
exteriores ao corpo humano). Até há pouco tempo, essa energia
provinha essencialmente da utilização do trabalho desempenhado
pelos músculos de animais. Nos EUA, ainda em 1850, os animais
domésticos cavalos, bois, e mulas representavam cerca de
65 por cento do trabalho físico que sustentava a economia; hoje essa
percentagem é insignificante: praticamente todo o trabalho é
feito por máquinas alimentadas por combustível. A escravatura foi
uma estratégia para o domínio da energia muscular humana, e o fim
da escravatura mais visível durante o século XIX foi mais ou
menos inevitável quando os instrumentos da classe D se tornaram mais
baratos do que possuir e manter escravos humanos ou animais
domésticos, com esse objectivo.
Nas civilizações primitivas, os trabalhadores agrícolas
tentavam captar mais energia solar numa base anual de arar a terra e colher.
É sempre necessário gastar energia para produzir energia
(é necessário esforço para lançar a semente,
construir um moinho de vento ou perfurar um poço de petróleo).
Para as sociedades agrícolas, o lucro líquido em energia era
sempre moderado e por vezes nem existia (daí as fomes recorrentes): na
maior parte dos casos cerca de noventa por cento da população
tinha que trabalhar na agricultura para fornecer o excedente necessário
para sustentar o resto do edifício social incluindo os
guerreiros, o clero e as classes administrativas. A extracção do
carvão, e principalmente do petróleo e do gás natural
substâncias que representam milhões de anos de
acumulação de energia biótica antiga proporcionou
frequentemente um espectacular lucro líquido de energia, por vezes da
ordem das 50 ou 100 unidades obtidas por cada unidade investida. Em
consequência disso, com os combustíveis fósseis e a
maquinaria moderna, bastam dois por cento de população na
agricultura para sustentar o resto da sociedade, permitindo a prosperidade duma
crescente classe média composta por uma quantidade louca de
especialistas.
A crescente especialização também foi favorecida pelo
florescimento de diversos tipos de máquinas, e essa diversidade foi por
seu turno alimentada pela disponibilidade de energia barata para o seu
funcionamento. A produtividade do trabalho manual aumentou sem parar,
não porque as pessoas trabalhassem mais tempo ou mais arduamente, mas
porque tinham acesso a um número cada vez maior de poderosos
utensílios alimentados extra-somaticamente.
A disponibilidade dos utensílios da Classe D provocou
excitação e assombro inicialmente entre as poucas pessoas
suficientemente abastadas para as possuir, e também entre os astutos e
altamente motivados inventores disponíveis para serem contratados. Eram
utensílios que, em certo sentido, tinham vida própria: consumiam
um certo tipo de alimento, sob a forma de carvão ou petróleo
(mesmo indirectamente, no caso da electricidade) e tinham o seu próprio
metabolismo interior. Gradualmente, à medida que a
produção mecanizada se mostrou capaz de produzir bens e artigos
em maior quantidade do que as elites ricas eram capazes de absorver, estas
traçaram uma estratégia para criar uma sociedade de consumo em
que todos pudessem possuir maquinaria que poupasse trabalho. O cidadão
comum foi rapidamente conquistado pelo sonho de eliminar o trabalho pesado. E,
dada a escala das energias que se poupavam, a realização desse
sonho parecia estar facilmente ao seu alcance.
Essa escala é difícil de compreender sem o recurso a exemplos
familiares. Pensem por momentos no esforço necessário para
empurrar mesmo só alguns metros um carro que ficou sem
gasolina. Agora imaginem ter que empurrá-lo durante 30
quilómetros. Esta distância, claro, é o serviço
prestado por um único galão (3,8 litros) de gasolina, e
representa a energia equivalente a pelo menos um mês de trabalho humano
(muito mais do que isso segundo alguns pensam). O total dos combustíveis
gasolina, diesel e petróleo utilizados nos EUA num só dia
aproxima-se ao equivalente energético do trabalho de 20 milhões
de pessoas/ano. Se a construção da Grande Pirâmide exigiu o
trabalho de 10 mil pessoas durante vinte anos, então a energia baseada
no petróleo utilizada nos EUA numa média diária poderia
em princípio, conforme a pedra disponível e a maquinaria
construir 100 Grandes Pirâmides. Evidentemente, não
utilizamos o petróleo para este fim: em vez disso, utilizamo-lo na sua
maior parte, para fazer andar milhões de carros metálicos pesados
ao longo das estradas a fim de podermos ir e vir do trabalho, dos restaurantes
e das lojas de aluguer de vídeos.
Com os computadores e os sistemas cibernéticos, conseguimos criar
instrumentos não só com vida própria, mas com uma
mente
própria. Agora os nossos utensílios não só
"respiram", "comem" e fazem trabalho físico, mas
também "pensam". Cada vez mais nos encontramos em ambientes
sintéticos, auto-reguladores (ou mesmo auto-replicadores) centros
comerciais, aeroportos, edifícios de escritórios onde
estão presentes a fauna e flora não humana multicelular apenas
como ornamentos; onde o trabalho humano consiste apenas em fazer algumas
tarefas que ainda não conseguimos substituir pela invenção
de autómatos rentáveis. O milagre de termos eliminado o trabalho
pesado é acompanhado pelo aborrecimento de sermos dirigidos e dominados
pelas máquinas, e de ficarmos indefesos perante falhas mecânicas
ou horror dos horrores perante falhas de energia.
E o que é preciso para tudo isto? São precisos 84 milhões
de barris de petróleo por dia, globalmente, assim como milhões de
toneladas de carvão e milhões de metros cúbicos de
gás natural. A rede de fornecimento destes combustíveis cobre o
globo e é impressionante. No entanto, do ponto de vista do utilizador
final, esta rede é praticamente invisível e considerada natural.
Accionamos o interruptor, enchemos o depósito com gasolina, ou ligamos o
termostato sem pensar nos processos de extracção que estão
por detrás, ou nos horrores ambientais que representam.
As próprias máquinas tornaram-se tão sofisticadas, os seus
serviços tão sedutores, que se equiparam à magia. Poucas
pessoas compreendem totalmente o funcionamento interno de qualquer instrumento
da Classe D, e os diversos instrumentos exigem as suas próprias equipas
de especialistas para o seu desenho e a sua reparação. Mas o que
é mais importante, no processo de nos tornarmos dependentes deles,
é que quase nos transformámos numa espécie diferente dos
nossos antepassados recentes.
QUESTÕES DE INFRA-ESTRUTURA
Para compreender
como
é que nos tornámos tão diferentes, quão diferentes
nos tornámos, e também como é que o acabar da energia
extra-somática barata nos irá provavelmente afectar, e à
sociedade em que vivemos, será útil ir buscar outra
lição à antropologia cultural.
Estudos comparativos das sociedades humanas têm mostrado consistentemente
que estas últimas são mais bem classificadas quanto aos meios de
obtenção de alimentos dos seus membros. Assim, falamos
vulgarmente de sociedades caçadoras-recolectoras, sociedades
hortícolas, sociedades agrícolas, sociedades piscatórias,
sociedades pastorícias e sociedades industriais. A questão
é que, se soubermos como é que as pessoas obtêm os seus
alimentos, ficaremos certamente aptos a predizer a maior parte das suas
restantes formas sociais os costumes de tomada de decisões e de
educação infantil, as práticas espirituais e por aí
afora.
Evidentemente, dum ponto de vista biológico, comida é energia.
Assim o que queremos dizer é que é essencial compreender as
fontes de energia para compreender as sociedades humanas.
O antropólogo Marvin Harris identificou três elementos
básicos presentes em toda a sociedade humana:
infra-estrutura
(que consiste nos meios de obter e produzir a energia necessária e os
materiais, a partir da natureza ou seja, os meios de
produção);
estrutura
(que consiste na tomada de decisões entre os homens e na actividade de
repartição dos recursos)
super-estrutura
(que consiste nas ideias, rituais, éticas e mitos que servem para
explicar o universo e coordenar o comportamento humano)
As alterações em cada um destes níveis podem afectar os
outros: o aparecimento duma nova religião ou duma
revolução política, por exemplo, pode mudar a vida das
pessoas de forma real e significativa. No entanto, o facto de que tantas formas
culturais pareçam agrupar-se consistentemente em torno da forma de obter
os alimentos, sugere que a mudança cultural
fundamental
ocorre a nível da infra-estrutura: se as pessoas mudam, por exemplo, da
caça para o plantio, ou do plantio para a pastorícia, a sua
política e espiritualidade também acabam por mudar e
provavelmente de forma profunda.
A revolução industrial representou uma das mudanças
infra-estruturais fundamentais da história; tudo o resto na sociedade
humana mudou em resultado disso. Esta revolução
não
resultou principalmente de alterações religiosas ou
políticas, mas dalgumas invenções anteriores (aço,
engrenagens, e uma primitiva máquina a vapor ou seja,
instrumentos da Classe B e C e instrumentos simples da Classe D) que se
juntaram em presença de uma abundante fonte de nova energia: os
combustíveis fósseis primeiro o carvão, depois o
petróleo e o gás natural. As ideias (tais como o dualismo
cartesiano, o capitalismo, o calvinismo e o marxismo), mais do que
impulsionarem a transformação, adquiriram relevância porque
desempenharam funções úteis dentro dum fluxo de
acontecimentos que emanaram da necessidade da infra-estrutura.
QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DA UTILIZAÇÃO DOS HIDROCARBONETOS?
Quais foram os impactos estruturais e super-estruturais do industrialismo?
Como só é necessária uma reduzida porção da
população a trabalhar no campo (agora com tractores e ceifeiras
em vez de bois) para produzir alimentos-energia, uma grande parte do povo
perdeu a ligação directa com o campo e com os ciclos da natureza.
Enquanto que os caçadores obtêm o seu alimento-energia da
caça, nós obtemos o nosso nas compras do supermercado.
O subsequente desenvolvimento, primeiro no trabalho fabril, e depois nas
ocupações especializadas, levou à
implantação da educação pública
obrigatória universal e à ideia de "emprego" uma
noção que muita gente hoje aceita como certa, mas que parece
estranha, humilhante e limitada para pessoas de culturas não
industriais.
Com a expansão da classe média instruída, as simples
formas monárquicas de governo deixaram rapidamente de ser
defensáveis. Na parte final do século XVIII, desenvolveu-se uma
forte tendência, dentro dos países industriais, para a
revolução e para uma ampla e crescente expectativa de
participação democrática na governação
embora evidentemente essa expectativa tenha sido rapidamente suprimida
pelas novas elites mercantis. Um pouco mais tarde, a exploração
económica do trabalho, típica tanto nas
civilizações agrícolas anteriores como nos novos estados
industriais tornou-se também o alvo da revolução; mais uma
vez, o efeito da revolução foi basicamente um rearranjo de
cadeirões: o trabalho diário real e a vida psíquica do
povo continuaram a ser moldados pelas máquinas e, a um nível mais
profundo, pelas fontes de energia que as punham em funcionamento.
Não podemos esquecer que o industrialismo veio na sequência do
controlo europeu dos recursos e do trabalho da maior parte do resto do mundo
durante séculos de conquista e de colonialismo. Assim a
experiência e a expectativa do crescimento económico já se
tinha introduzido no espírito dos membros da classe mercantil europeia
antes da chegada do industrialismo. Depois do início da
revolução dos combustíveis, com muitíssimo mais
energia disponível per capita, a actividade económica atingiu um
crescimento logarítmico aparentemente perpétuo, e surgiram
teorias económicas não só para explicar esse crescimento
em termos de "mercados", mas para afirmar que, agora, por causa dos
mercados, o crescimento era necessário, inevitável e
infindável: o mundo sem fim, amen. Uma banca de reservas
mínimas, baseada no milagre dos juros acumulados, serviu de
personificação prática dessas novas expectativas. Com
efeito, dentro do espírito dos gestores da sociedade e dos
políticos, a fé na tecnologia e nos mercados suplantaram a
fé religiosa de antigamente nas divindades visionárias
agrícolas e pastorícias que presidiam sobre a
civilização ocidental dos milénios anteriores.
No princípio do século XX, quando a produção
mecanizada cresceu rapidamente suplantando a procura existente (entre pessoas
que ainda viviam na sua maioria de forma rural e bastante auto-suficientemente)
de produtos manufacturados, as elites começaram a experiência da
publicidade de massas sob a forma de anúncios e relações
públicas. Posteriormente, a televisão iria aumentar
dramaticamente a eficácia destes esforços, que se elevaram a nada
menos do que à arregimentação da imaginação
humana de acordo com as exigências do sistema do capitalismo industrial.
Como as mulheres eram agora necessárias quer como consumidoras quer como
operárias a fim de continuar a expansão perpétua deste
sistema, apareceu como inevitável subproduto o feminismo (pela via da
destruição do antigo papel doméstico e pela
promoção de novas ambições e gostos consumistas).
Em resumo, tal como previmos com base na teoria do determinismo da
infra-estrutura, quando os combustíveis fósseis alteraram
profundamente os meios de a humanidade obter o sustento a partir da terra, tudo
mudou na sociedade humana desde a educação infantil
até à política; desde os mitos culturais até aos
sonhos pessoais.
Claro que muitas embora não todas destas mudanças
foram destrutivas das pessoas e da natureza. E assim, enquanto a maioria das
lutas políticas do século XX se centraram em questões de
distribuição do poder e da riqueza (como foi o caso desde que os
primeiros excedentes agrícolas foram postos de lado há dez mil
anos), muitas dessas lutas também nasceram das tentativas de controlar
os impactos cáusticos da tecnologia, os quais os críticos sociais
relacionavam tanto com os próprios instrumentos como com as atitudes das
pessoas para com eles. Os políticos tecnológicos concentraram-se
numa gama de problemas: armas nucleares e energia nuclear, químicos
poluentes, clorofluorcarbonetos destruidores do ozono, gases com efeitos de
estufa, e engenharia genética dos alimentos, para dar apenas alguns
exemplos familiares
Entretanto, os mais radicais dos tecno-críticos foram buscar
inspiração à tendência para o relativismo cultural
que convenceu os antropólogos dos meados do século XX, tais como
Stanley Diamond, que manifestou profunda admiração pelos
caçadores-recolectores que ainda restam no mundo. Para o filósofo
anarco-primitivista John Zerzan,
toda
a tecnologia é prejudicial, perversa, destrutiva, e degradante, e
só um regresso à nossa condição primitiva,
pré-linguística, pré-técnica nos permitirá
recuperar inteiramente a nossa liberdade e espontaneidade inatas.
Mas todos os tecno-críticos, do mais brando ao mais radical, tendem a
aceitar que, de há décadas a esta parte, a não haver uma
intervenção, a humanidade continuará uma
trajectória permanente de transformação
tecnológica: a única coisa que pode travar este
"progresso" em curso será o despertar duma nova sensibilidade
moral que leve os humanos a rejeitar a tecnologia, no seu todo ou em parte.
O PICO PETROLÍFERO E OS LIMITES DA TECNOLOGIA
Com o discurso do Pico Petrolífero, que começou principalmente no
princípio do novo milénio, a energia passou a ser o centro das
atenções enquanto factor determinante na evolução
social, pelo menos tão importante como a tecnologia
per se,
ou as ideias, ou as lutas políticas. E com esta viragem, também
apareceu o sentimento de que são os limites dos recursos que
provavelmente acabarão por desencadear uma mudança cultural
profunda, mais do que a persuasão moral, o esclarecimento das massas, ou
qualquer nova invenção.
À medida que sobem os preços do petróleo e do gás,
assinalando o início do período do pico, continuamos a assistir
ao anúncio de novas invenções sob a forma do último
iPod
, da próxima geração de bombas nucleares, de
instrumentos aperfeiçoados de vigilância, e por aí afora. No
entanto, também há indícios de que essa corrente de novas
invenções, tal como a corrente global do petróleo,
está a começar a secar.
O físico Jonathan Huebner do Centro de Defesa Aeronaval do
Pentágono em China Lake, na Califórnia, tem vindo a estudar
há vários anos a marcha da mudança e
invenção tecnológicas, como vem catalogado na
publicação
The History of Science and Technology.
Depois de aplicar matemáticas elaboradas, chegou à
conclusão que o ritmo de invenções de instrumentos
significativamente novos e diferentes atingiu o seu pico em 1873 e tem vindo a
diminuir gradualmente desde então. Huebner calcula o actual ritmo de
inovação em sete inovações tecnologicamente
importantes por cada mil milhões de pessoas por ano o que
é sensivelmente o mesmo ritmo que existia na Europa em 1600. Se esta
tendência continuar, em 2024 o ritmo de inovações
estará reduzido ao da Idade das Trevas.
Supondo que Huebner tem razão, a adopção dos
combustíveis fósseis no século XIX teria provocado uma
curva de pico precoce das invenções, que se encontram actualmente
na curva descendente. Como os combustíveis fósseis vão
igualmente atingir o pico e entrar em queda, provavelmente não
voltaremos a ver outra explosão de tipo semelhante ou de semelhante grau
de inovação; pelo contrário, assistiremos a uma
adaptação
a um ambiente cultural de menor quantidade de energia. E essa
adaptação pode ocorrer por intermédio de versões de
padrões culturais mais antigos que emanaram das respostas de
gerações anteriores a níveis semelhantes de energia
disponível.
O Pico Petrolífero será uma fronteira cultural fundamental, pelo
menos tão importante como a revolução industrial ou o
desenvolvimento da agricultura. No entanto, poucos comentadores predominantes
vêem as coisas deste modo. Discutem a probabilidade dos picos dos
preços da energia e tentam quantificar os prejuízos
económicos que resultarão desse facto. A solução
é sempre a tecnologia: a solar ou a eólica e talvez um pouco de
hidrogénio para os idealistas pintados de verde; a nuclear, as areias
betuminosas, os hidratos de metano, e os carvões liquefeitos para os
cabeças duras, economistas e engenheiros pró-crescimento; os
geradores magnéticos Tesla sem consumo de energia para os
ingénuos residentes marginais.
Mas a tecnologia não pode solucionar o dilema de base que enfrentamos em
resultado da nossa aplicação de combustíveis
fósseis a todos os problemas ou desejos humanos: a nossa
população está a aumentar, estamos a destruir o habitat (e
a pôr em perigo a estabilidade climática global), e estamos a
delapidar recursos duma forma e a um ritmo que não podem ser minimizados
por
nenhuma
nova ferramenta ou fonte de energia. A única forma possível que
não acabe na extinção da humanidade e de milhões de
outras espécies é o abandono de todo o projecto humano
tanto em termos de números humanos como de ritmos de consumo per-capita.
E é exactamente isso o que o Pico Petrolífero significa.
Quão dramático será o recuo de que estamos a falar?
Ninguém sabe. Depende em grande medida da forma como gerirmos o
inevitável colapso dos sistemas financeiros e de
governação, e se os países de todo o mundo podem ser
persuadidos a adoptar um Protocolo Global de Redução do
Petróleo; ou se, em vez disso, as nações apenas se
guerrearem sem dó nem piedade pelas últimas reservas de
petróleo até os próprios "vencedores" ficarem
totalmente exaustos e os recursos em disputa tiverem sido gastos ou
destruídos no próprio conflito.
No pior dos casos, o ideal de Zerzan de regresso à caça e
à recolecção talvez se realize não por
escolha moral, mas pelo cruel destino.
Se os utensílios da Classe D alimentados a petróleo barato
eliminaram o trabalho pesado, a vida sem uma abundante energia
extra-somática implicará mais trabalho pelo menos para a
produção de alimentos. O regresso à escravatura é
uma possibilidade assustadoramente real. Estes cenários de pesadelo
só podem ser evitados por um trabalho cuidadoso, difícil e
cooperativo.
OLHANDO PARA O TECNO-COLAPSO
E, entretanto, o que podemos esperar e o que devemos fazer?
Racionalmente, penso que podemos esperar ver alguns dos piores excessos da
história humana, mas talvez de forma breve e só em certos locais.
Dentro de algumas décadas as estruturas governamentais e corporativas
capazes de perpetrar tais horrores desmoronar-se-ão por falta de
combustível. Também podemos imaginar e participar
tentativas cooperativas localizadas para reorganizar a sociedade numa escala
mais pequena.
Dadas as circunstâncias, acho que não faz sentido e é
errado
tentar
levar o industrialismo a uma ruína prematura: a ruína
chegará dentro em breve e por si só. É melhor investir o
tempo e os esforços na preparação pessoal e da comunidade.
Reforcem as vossas possibilidades de sobrevivência. Aprendam
técnicas práticas, incluindo o fabrico e a
utilização de utensílios paleolíticos. Aprendam a
conhecer e a consertar (tanto quanto possível) os instrumentos
existentes da Classe B e C que provavelmente ainda virão a ser
úteis quando não houver gasolina nem electricidade.
Preservem todas as coisas belas, sãs e inteligentes. Isto inclui o
conhecimento científico e cultural, e os exemplos das
realizações humanas nas artes. Ninguém pode preservar
tudo, nem mesmo uma parte substancial; escolham o que mais vos agrada. Uma
grande quantidade deste conhecimento é actualmente guardado pelos media
com duvidosas perspectivas de sobrevivência discos ou fitas
magnéticas, discos laser compactos, ou papel ensopado em ácidos.
Se ninguém fizer esforços, o melhor do que fizemos nos
últimos séculos e décadas desaparecerá juntamente
com o pior.
No melhor do casos, as próximas gerações ver-se-ão
num regime de baixa energia onde as lições morais da era dos
combustíveis fósseis e da sua morte foram incineradas na
memória cultural. Talvez elas consigam manter redes eléctricas
baseadas em energias renováveis, e talvez também alguns
transportes motorizados, de forma a terem ainda acesso a alguns
utensílios com vida própria. E talvez não. Em qualquer dos
casos, podemos ter esperança que, tal como os americanos nativos, que
aprenderam com as extinções do Pleistoceno que a caça em
excesso resulta em fome, elas venham a descobrir que o crescimento nem sempre
é bom, que as metas materiais modestas são normalmente melhores
para todos a longo prazo do que as exageradas, e que toda a tecnologia tem um
custo escondido. Temos esperança, como os Haudinausaunee, que há
muito tempo atrás chegaram à conclusão que lutar por
territórios e recursos escassos apenas significava a
perpetuação infindável da violência, que elas
também tenham aprendido os métodos e a cultura da paz.
Nós, humanos, temos a tendência de só aprender
lições realmente duras através da experiência
amarga. Estas são na verdade lições duras. Se as
aprendermos, talvez a experiência a princípio excitante, mas agora
bem amarga de termos ficado dependentes dos combustíveis fósseis
e depois termos de comer o peru frio, não tenha sido inteiramente em
vão.
01/Novembro/2005
Leituras recomendadas
John Zerzan and Alice Carnes, eds.,
Questioning Technology: Tool, Toy or Tyrant?
(New Society, 1991)
Bryan Appleyard, "Waiting for the lights to go out",
The Sunday Times
(October 16 2005)
MuseLetter #160, "How to Avoid Resource Wars, Terrorism, and Economic
Collapse",
www.museletter.com
[1]
Termo utilizado para designar os que são contra "toda" a
tecnologia moderna. O termo original refere-se aos trabalhadores
britânicos (1811) que se revoltaram e destruíram as maquinarias
têxteis, convencidos de que estas máquinas iam favorecer o
desemprego.
[*]
Jornalista, editor, conferencista e músico; membro da faculdade New
College of California, onde lecciona cursos sobre
Energia e Sociedade
e
Sociedade, Cultura, Ecologia e Sociedade Sustentada
. Autor de
The Party's Over: Energy Resources and the Fate of Industrial Societies;
e
Powerdown: options and actions for a post-carbon world.
O original encontra-se em
http://billtotten.blogspot.com/2005/11/tools-with-life-of-their-own.html
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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