A longa emergência

"Quando o petróleo deixar de ser barato e as suas reservas começarem a esgotar-se, confrontar-nos-emos com um enorme excedente de população que o planeta não poderá sustentar"

por James Howard Kunstler [*]

The Long Emergency.
Não sei por que razão, convencemo-nos que os combustíveis fósseis nunca haviam de acabar. Mas a verdade é que isso irá acontecer e muito mais cedo do que julgamos. Num extracto do seu arrepiante novo livro, James Howard Kunstler descreve a perigosa situação que se avizinha diante dos nossos olhos.

Carl Jung fez notar sabiamente que "as pessoas não aguentam realismo a mais". O que se segue pode entrar em conflito com as vossas concepções sobre o tipo de mundo em que vivemos e, em especial, sobre o tipo de mundo para o qual o tempo e os acontecimentos nos estão a dirigir. Estamos numa corrida difícil através dum território desconhecido.

A guerra contra o fundamentalismo militante islâmico é apenas um dos elementos no meio de uma lista de acontecimentos já em marcha que irão alterar as nossas relações com o resto do mundo, e nos obrigam a viver de forma diferente no nosso próprio país quer queiramos quer não. Acima de tudo, e quase de imediato, enfrentamos o fim da era dos combustíveis fósseis baratos. Não é exagero afirmar que o abastecimento regular e barato de petróleo e gás natural estão na base de tudo aquilo que identificamos como um benefício da vida moderna. Todas as necessidades, o conforto, o luxo e os milagres da nossa época – aquecimento central, ar condicionado, automóveis, aviões, iluminação eléctrica, vestuário barato, música gravada, cinema, supermercados, ferramentas motorizadas, cirurgia de substituição de ancas, defesa nacional, o que quiserem – deve a sua origem ou a sua existência continuada aos combustíveis fósseis baratos, duma maneira ou doutra. Vendo bem, até mesmo as instalações de energia nuclear dependem do petróleo e gás baratos para a sua construção, manutenção e extracção e processamento dos combustíveis nucleares.

A sedução do petróleo e gás baratos foi tão grande, e provocou um tal estado de satisfação hipnótica, que deixámos de prestar atenção à verdadeira natureza destas dádivas milagrosas da natureza: ou seja, que existem em reservas finitas, não renováveis, distribuídas desigualmente pelo planeta. Para agravar a situação, as maravilhas do constante progresso tecnológico durante o reinado do petróleo criou-nos uma espécie de "síndroma do Grilo Falante", levando a que muita gente acreditasse que tudo o que desejássemos firmemente se tornaria realidade. Hoje em dia, mesmo as pessoas que deviam ter mais conhecimentos, desejam ardentemente que seja possível, dentro de pouco tempo, uma transição suave, sem tropeços, dos combustíveis fósseis para os seus supostos substitutos – hidrogénio, energia solar, o que quer que seja. Isto é uma ilusão perigosa. Na melhor das hipóteses podem passar-se décadas a desenvolver algumas destas tecnologias – o que significa que podemos contar com um intervalo extremamente conturbado entre o fim do petróleo barato e o que quer que seja que venha a seguir. O cenário mais provável é que os novos combustíveis e tecnologias nunca consigam substituir os combustíveis fósseis ao ritmo, escala e modo como o mundo os consome actualmente.

O que a maioria não percebe é que o mundo desenvolvido vai começar a sofrer muito antes de o petróleo e o gás acabarem de todo. A forma de viver ocidental – que hoje é praticamente sinónimo de urbanismo de subúrbio – só pode existir com base num abastecimento regular de petróleo e gás baratos e de confiança. As simples oscilações, mesmo muito pequenas, tanto no preço como no abastecimento, esmagarão a nossa economia e tornarão impossível a logística da vida quotidiana. As reservas de combustíveis fósseis não estão distribuídas uniformemente pelo planeta. Tendem a estar concentradas em locais onde as populações locais não gostam do ocidente, locais fisicamente muito distantes, locais onde exercemos pouco controlo.

O decrescimento dos combustíveis fósseis despoletará certamente uma luta permanente entre as nações que disputam as reservas disponíveis. As guerras por esses recursos já começaram. Mas haverá mais. Provavelmente arrastar-se-ão durante décadas. Mas apenas contribuirão para agravar uma situação que, por si mesma, pode derrubar civilizações. A dimensão dos prejuízos no ocidente dependerá evidentemente da tenacidade com que tentarmos agarrar-nos a hábitos, usos e preconceitos obsoletos – por exemplo, a ferocidade com que tentarmos lutar para manter o estilo de vida suburbano que já não pode continuar a justificar-se.

A população mundial foi calculada em cerca de mil milhões no princípio do século XIX quando a industrialização mal começava a adquirir embalagem. Daí concluiu-se que mil milhões de pessoas era praticamente o limite que o planeta Terra podia aguentar quando governado numa base não-industrial. A população mundial é hoje superior a seis mil e quinhentos milhões de pessoas, tendo mais que duplicado desde a minha infância nos anos 50. Os meados do século XX foram uma época de ansiedade crescente por causa da "explosão populacional". A maravilhosa vitória tecnológica contra a escassez de alimentos, incluindo a "revolução verde" na cultura cerealífera, acelerou o salto já de si robusto da população mundial, salto esse que tinha começado com a modernidade. Os progressos espectaculares no saneamento e na medicina prolongaram a vida humana. A indústria absorveu as populações em crescimento e transferiu-as das zonas rurais para o trabalho nas cidades florescentes. A comprovada capacidade do mundo para acomodar estes recém-chegados e retardatários numa forma completamente nova de arranjo social e económico pareceu ser o último prego no caixão de Thomas Robert Malthus, o autor tão maltratado de Um Ensaio sobre o Princípio da População, naquilo que Afecta o Progresso Futuro da Sociedade. (1798).

Malthus (1766-1834), um clérigo rural inglês, foi o bode expiatório dos idealistas e tecno-optimistas durante 200 anos. O seu famoso ensaio defendia que, se o crescimento da população humana não fosse refreado, esta cresceria exponencialmente ao passo que os recursos alimentares cresceriam apenas aritmeticamente e que, portanto, o crescimento da população iria deparar-se com limites naturais estritos e inevitáveis. Eu estaria disposto a defender que Malthus tinha razão, mas que o petróleo barato desequilibrou a equação nos últimos cem anos, durante os quais a raça humana desfrutou duma orgia sem precedentes da energia solar condensada e não renovável, acumulada durante eternidades na pré-história. A "revolução verde" nas culturas cerealíferas teve pouco a ver com inovações científicas na área da genética cerealífera e muito a ver com a aplicação nas culturas de quantidades astronómicas de fertilizantes e pesticidas fabricados a partir de combustíveis fósseis, assim como com a utilização da irrigação numa escala grandiosa, só possível pela abundância do petróleo e do gás. A era do petróleo barato criou uma bolha artificial de abundância durante um período pouco maior do que o tempo de vida de uma geração, um século. No interior dessa confortável bolha, formou-se a ideia de que só os resmungões, os desmancha-prazeres e os hereges maníacos consideravam que o crescimento exagerado da população era um problema, e que até era indecoroso levantar esta questão. Arrisco-me a afirmar que, quando o petróleo deixar de ser barato e as reservas mundiais se aproximarem do esgotamento, nos defrontaremos com um enorme excesso de população que a ecologia do Planeta Terra não conseguirá aguentar. Nessa altura não haverá programa político de controlo de nascimentos que possa ajudar. As pessoas já cá estão.

A chamada economia global não é uma instituição perene, como parece que há quem acredite, mas um conjunto de circunstâncias passageiras próprias duma determinada época: o verão indiano da era dos combustíveis fósseis. De facto, o que a tornou possível foi um sistema de distribuição do mercado do petróleo à escala mundial capaz de funcionar num período extremamente prolongado de relativa paz mundial. O petróleo barato, disponível por todo o lado, juntamente com maquinaria generalizada para construção de outras máquinas, neutralizou muitas vantagens comparativas anteriores, principalmente a da geografia, ao mesmo tempo que criou outras novas – trabalho extremamente barato, por exemplo. Deixou de ser importante o local onde uma nação se situa, ou se tem alguma experiência anterior em manufacturas. O petróleo barato levou a electricidade a longínquas partes do mundo onde antigas sociedades tradicionais dependiam anteriormente de energias renováveis como a madeira e o adubo, principalmente para a cozinha. Foi possível montar fábricas em países como o Sri Lanka ou a Malásia, onde populações em excesso forneciam trabalhadores potenciais desejosos de trabalhar por muito menos do que os dos Estados Unidos ou da Europa. Nessa altura os produtos viajaram por todo o globo num sistema altamente racionalizado, não muito diferente do sistema de distribuição do petróleo, utilizando navios enormes, instalações portuárias automatizadas, e contentores marítimos próprios para camiões, a um custo minúsculo por unidade do que quer que fosse fabricado e transportado. Foi possível embarcar para a cadeia Wal-Marts em toda a América e vender barato camisas ou máquinas de café fabricados a 20 000 km de distância.

A capacidade de globalizar desta forma a manufactura industrial estimulou a tendência à escala mundial de reduzir as barreiras comerciais que existiam anteriormente com o fim de fortalecer as vantagens comparativas anteriores e que agora se tinham tornado obsoletas. Partiu-se do princípio que uma maré crescente do comércio mundial em ascensão faria elevar todos os barcos. Este período (aproximadamente entre 1980-2001), durante o qual foram feitos os tratados internacionais para redução das barreiras comerciais – os Acordos Gerais sobre Tarifas e Comércio (Gatt) – coincidiram com uma queda brusca e persistente dos preços mundiais do petróleo e do gás que ocorreu precisamente porque as crises do petróleo dos anos 70 estimularam uma exploração e extracção tão frenética que provocou um excesso de petróleo durante os 20 anos seguintes. Este excesso, por sua vez, levou a que os dirigentes mundiais se esquecessem de que o globalismo que andavam a congeminar dependia inteiramente dos combustíveis fósseis não renováveis e dos frágeis acordos políticos que permitiam a sua distribuição. Surgiu no ocidente a ideia absurda de que as crises do petróleo dos anos 70 tinham sido situações fabricadas artificialmente. E que agora o petróleo era super abundante. Isto foi um equívoco pelo facto de os campos petrolíferos do Mar do Norte e da Vertente Norte do Alasca terem salvo temporariamente o ocidente industrial quando entraram em actividade no princípio dos anos 80, adiando o esgotamento dos combustíveis fósseis para onde o mundo tem vindo inexoravelmente a caminhar.

Entretanto, entre os economistas e as entidades governamentais, o globalismo adquiriu o brilho atractivo duma moda intelectual. O globalismo permitiu-lhes acreditar que a riqueza florescente dos países desenvolvidos, e o alargamento da actividade industrial a regiões outrora primitivas, estavam baseados na potencialidade das suas próprias ideias e políticas e não no petróleo barato. O aparente sucesso de Margaret Thatcher em dar a volta à economia esclerosada da Grã-Bretanha foi uma propaganda para essas políticas, que incluíam uma forte dose de privatizações e de desregulamentações. O que o globalismo ignorou, contudo, foi que o sucesso de Thatcher em revitalizar a Grã-Bretanha coincidiu com uma fantástica nova fonte de receita do petróleo do Mar do Norte, quando a velha Grã-Bretanha se tornou numa nação auto-suficiente energeticamente e exportadora de energia pela primeira vez desde o apogeu do carvão. Depois, quando Ronald Reagan chegou a presidente dos EU em 1981, o globalismo contagiou a América. Os conselheiros económicos de Reagan, defensores da oferta, impingiram um conjunto de ideias fiscais que se encaixavam às mil maravilhas nos novos conceitos de comércio livre e de desregulamentação: principalmente a de que uma forte redução dos impostos se traduziria num aumento de receitas, visto que uma maior concentração da actividade comercial geraria uma maior concentração de impostos, mesmo a taxas mais baixas. (O que na verdade gerou foi um enorme défice governamental).

O globalismo, tal como o conhecemos, está em vias de acabar. A sua morte vai coincidir com o fim da idade do petróleo barato. Para o melhor ou para o pior, muitas das circunstâncias que associamos ao globalismo vão ser viradas do avesso. Os mercados vão fechar quando a turbulência política e as aventuras militares interferirem com as relações comerciais. As sociedades virar-se-ão cada vez mais para a importação de substitutos para a sua sobrevivência económica. O custo dos transportes deixará de ser negligenciável numa era posterior à do petróleo barato. A maior parte dos nossos produtos agrícolas terá que ser produzido perto de casa, e provavelmente através de mão de obra mais intensa quando os abastecimentos de petróleo e de gás natural se tornarem cada vez mais instáveis. O mundo deixará de encolher e tornar-se-á outra vez maior. Quase todas as relações económicas entre pessoas, nações e instituições, coisas que considerávamos certas, mudarão radicalmente. A vida tornar-se-á cada vez mais e cada vez mais intensamente uma vida local.

A maior parte do ocidente encontra-se perto do fim da era do petróleo barato, depois de ter investido a sua riqueza numa forma de viver – alargamento suburbano – que não tem futuro. Quando os comentadores dos meios de comunicação se esforçam por explicar o que está a acontecer, esquecem sistematicamente que os subúrbios representam um colossal mau investimento– uma prodigiosa má aplicação de recursos sem paralelo. Isto não tem nada a ver com as suas deficiências sociais, espirituais e ecológicas enquanto ambiente do quotidiano. Construímos uma estrutura para a vida quotidiana que, pura e simplesmente, não pode funcionar sem o fornecimento liberal de petróleo barato e, dentro em breve, estaremos sem o petróleo necessário para o seu funcionamento e sem a riqueza necessária para o substituir. Também não é previsível que apareça um milagroso substituto de energia para o petróleo que nos permita manter em funcionamento esta infra-estrutura do quotidiano mesmo que duma forma vagamente parecida.

A trágica realidade é que a maior parte dos subúrbios não são passíveis de reforma. Não se prestam a ser transformados em arredores de menor escala, dispersos num grão mais fino, onde se possa andar a pé, como será preciso na nossa vida diária na próxima era de trânsito rodoviário muito mais reduzido. Nem é um Jolly Green Giant [1] que vai pescar os milhões de casas suburbanas nos seus terrenos de ¼ de hectare em ruas sem saída, e voltá-las a colocar bem juntinhas para refazer uns subúrbios mais cívicos. Pelo contrário, estas propriedades suburbanas, incluindo os grandes casarões de aglomerado e vinil, as enfiadas de lojas, os parques dos escritórios e todos os outros componentes, entrarão numa fase de desvalorização rápida e cruel. Muitos bairros suburbanos tornar-se-ão nos bairros de lata do futuro.

Enquanto os subúrbios se desintegram, teremos muita sorte se conseguirmos reconstituir as nossas actuais vilas e cidades, tijolo a tijolo e rua a rua, arduamente à mão. As nossas maiores cidades ver-se-ão em dificuldades, e algumas delas poderão ficar inabitáveis – principalmente se o problema do abastecimento de gás natural vier a ser tão terrível como agora se supõe e a produção de energia eléctrica que dele depende se torne irregular. Os arranha-céus acabarão por ser mais experimentais do que aquilo que julgávamos. De uma forma geral, seremos forçados provavelmente a regressar a um padrão de vilas e pequenas cidades rodeadas de campos agrícolas de cultura intensiva. Quando isso acontecer, seremos uma sociedade muito menos rica e a quantidade, a escala e o incremento de novos edifícios serão muito mais modestos em comparação com os padrões actuais. Teremos acesso a muito menos sistemas de construção modular, ou talvez mesmo a nenhuns. A construção será muito mais dependente de pedreiros e carpinteiros tradicionais e de outros artífices especializados. As nossas leis de construção e de urbanização serão progressivamente ignoradas. Se regressarmos a uma escala humana de construção, haverá boas hipóteses de que os nossos novos bairros urbanos sejam mais humanos e mais bonitos. A era do automóvel provou que as pessoas se conformam facilmente com edifícios feios, utilitários e arruamentos horríveis desde que tenham a compensação de poderem fugir facilmente em automóveis equipados com o melhor som estéreo digital, ar condicionado e frigoríficos para bebidas geladas. Tudo isto mudará radicalmente. Haverá muito menos automóveis. O futuro será muito mais 'permanecer onde se está' do que 'viajar incessantemente de um lado para o outro'.

Estamos prestes a entrar numa era de um trauma profundo para a espécie humana. É provável que provoque uma agitação política quase tão extrema como as condições económicas que a originarem. Não iremos acreditar que isto nos está a acontecer, que 200 anos de modernidade possam ser subjugados por uma escassez mundial de energia. As perspectivas poderão ser tão negras que muitas pessoas, e até regiões inteiras, entrem em depressão suicida. Os sobreviventes terão que cultivar uma religião de esperança – ou seja, uma fé profunda e abrangente de que a humanidade merece continuar.

Se acontecer que a raça humana não consiga isso, só o facto de que em tempos estivemos aqui não será alterado: de que em tempos que já lá vão povoámos este espantoso planeta azul, e reflectimos inteligentemente sobre todas as coisas que lhe dizem respeito, e sobre as coisas que viveram aqui connosco; que celebrámos a sua beleza na música, na arte, na literatura e na dança; que houve tempos em que nos aproximámos dos deuses quanto às nossas capacidades e aspirações. Aparecemos envoltos num mistério insondável e para esse mistério voltámos; e, no final, só o mistério subsiste.

[1] Grande helicóptero com capacidade de reabastecimento no ar.

[*] Extracto de The Long Emergency: surviving the converging catastrophes of the 21st century .

O original encontra-se em http://peakoil.blogspot.com/2005/07/as-oil-ceases-to-be-cheap-and-reserves.html . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

09/Set/05