O ocaso da era do petróleo

por Michael T. Klare [*]

Blood and Oil: The Dangers and Consequences of America's Growing Dependence on  Imported Petroleum. Vários acontecimentos recentes, tais como os persistentes altos preços da gasolina, avisos sem precedentes da Secretaria da Energia e das grandes companhias petrolíferas, a breve pretensão da China em relação à American Unocal Corporation, sugerem que estamos a ponto de entrar no Ocaso da era do petróleo, uma época de escassez crónica de energia e estancamento económico, assim como de crises e conflitos constantes. O petróleo não desaparecerá durante este período, ainda estará disponível no posto de gasolina mais próximo para aqueles que puderem pagá-lo, mas não será barato nem abundante como foi durante os últimos 30 anos. A cultura e o estilo de vida que associamos com os bons tempos da Era do petróleo, automóveis grandes e SUVs que bebem muita gasolina, extensos bairros suburbanos, grandes centros comerciais, férias a conduzir através do campo, etc, deixarão lugar para um modelo de vida mais sóbrio baseado numa rigorosa dieta de gasolina. Se bem que os norte-americanos continuarão a consumir uma proporção diária do petróleo mundial muito maior que os outros, terão que competir fortemente com os consumidores de outros países, incluindo a China e a Índia, para ter acesso ao abastecimento cada vez mais escasso.

O conceito de "ocaso" do petróleo deriva daquilo que se conhece quanto à equação da oferta e da procura mundial. Os peritos em energia há muito que reconheceram que a produção mundial de petróleo chegará algum dia a um momento máximo (o "pico") de produção diária, seguido de uma queda cada vez mais brusca de fornecimento. Mas enquanto o conceito básico de pico de produção ganhou uma aceitação mundial significativa, ainda existe muita confusão acerca do seu carácter real. Muita gente que manifesta familiaridade com o conceito tende a ver o pico de produção como um pináculo definido, com uma produção mundial a crescer até um cume num mês, caindo bruscamente no seguinte; e se voltarmos o olhar uns cem anos para trás, as coisas podem parecer assim. Mas para aqueles de nós que estão neste momento do tempo, experimentaremos esse pico de produção como algo mais parecido a um patamar rochoso, um período de tempo amplo, talvez várias décadas, durante o qual a produção de petróleo mundial permanecerá nos mesmo níveis actuais ou semelhantes, mas que não conseguirá a elevada produção considerada necessária para satisfazer as futuras procuras mundiais. Os resultados serão altos preços permanentes, intensa competição internacional pelos fornecimentos disponíveis, e escassez periódica provocada por tensões políticas e sociais nos países produtores.

A ERA DO PETRÓLEO FÁCIL TERMINOU

O ocaso da era do petróleo, como o denominei, é muito provável que se caracterize por uma crescente politização da política do petróleo e pelo constante uso da força militar para ganhar o controle dos fornecimentos disponíveis. Isto é assim porque o petróleo, entre todas as matérias-primas comerciais, é considerado como um material estratégico; algo tão vital para o bem estar da economia de uma nação que se justifica o uso da força para assegurar sua disponibilidade. Que os países estejam preparados para ir à guerra pelo petróleo não é um fenómeno propriamente novo. Conseguir petróleo estrangeiro foi um factor significativo na Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Golfo de 1991, para dar dois exemplos; mas é provável que cada vez mais chegue a fazer parte do nosso mundo num período de crescente competição e diminuição do abastecimento.

Esta nova era não começará com um único incidente bem definido e sim, antes, com uma série de acontecimentos que sugerirão a transição de um período de relativa abundância para um período de perpétua escassez. Estes acontecimentos tomarão uma forma tanto política como económica:   por um lado, o aumento dos preços da energia e fornecimentos contratados, e por outro, mais crises diplomáticas e de forças militares. Recentemente fomos testemunhas de exemplos significativos de ambas.

No aspecto económico, os sinais mais importantes foram dados pelo crescente preço do petróleo bruto e pelos avisos da diminuição da produção no futuro. O barril do bruto custa agora pouco mais de US$ 60, aproximadamente o dobro do que custava há um ano, e muitos peritos acreditam que o preço subirá muito mais se a situação do abastecimento continuar a deteriorar-se. "Entrámos numa nova era dos preços do petróleo", disse o perito em energia Daniel Yergin numa entrevista em Abril à revista Time . Se os mercados permanecem tão ajustados como na actualidade, "veremos muito mais volatilidade, e poderemos ver os preços subirem até US$ 65 ou US$ 80".

Os analistas da Goldman Sachs são até mais pessimistas, sugerindo que o petróleo pode chegar a um preço de até US$ 105 por barril num futuro próximo. "Acreditamos que o mercado do petróleo entrou nas primeiras etapas do que chamamos o período do super-pico", informaram em Abril, com preços elevados mantendo-se por um período de tempo de vários anos.

Naturalmente, anteriormente o mundo já experimentara vários picos de preços, o mais notável em 1973-74 após a Guerra de Outubro entre o Egipto e Israel e o embargo do petróleo árabe, bem como em 1979-80 após a Revolução Iraniana, mas agora é mais provável que os preços altos se mantenham indefinidamente do que baixem como no passado. Isto é assim porque a nova produção (em lugares como o Mar Cáspio e na Costa Ocidental Africana) não chega suficientemente rápida ou com a força suficiente para compensar a diminuição da produção de poços mais velhos como os da América do Norte ou do Mar do Norte. Além disso, é cada vez mais evidente que produtores incondicionais como a Rússia ou a Arábia Saudita esgotaram muitos dos seus poços mais prolíficos e já não são capazes de aumentar a produção de maneira significativa.

Até há pouco, considerava-se uma heresia que dirigentes da indústria petrolífera ou corpos governamentais como Departamento de Energia dos EUA reconhecessem a possibilidade de uma redução a curto prazo dos fornecimentos de petróleo. Mas vários acontecimentos recentes assinalam a ruptura do consenso dominante.

  • A 8 de Julho, o secretário da Energia, Samuel Bodman, declarou a repórteres do diário Christian Science Monitor que a era do petróleo barato e abundante podia ter terminado. "Pela primeira vez na minha vida", declarou, "os principais fornecedores de petróleo, como a Arábia Saudita, estão exactamente no limite quanto à sua capacidade para satisfazer a crescente procura mundial de energia". Apesar do grande aumento na procura internacional, destacou Bodman, "os mais importantes produtores do mundo não são capazes de aumentar substancialmente sua produção, e por isso deveríamos esperar uma tendência para a alta nos preços das gasolina". "Estamos perante uma nova situação", declarou. "É muito provável que pelo menos num prazo curto tenhamos que enfrentar um regime de preços diferente do que temos visto até agora".

  • Uma semana mais tarde, o gigante petrolífero Chevron publicou um anúncio no New York Times, no Wall Street Journal e em outras publicações importantes para assinalar a sua preocupação com o iminente aperto energético. "Uma coisa é clara", dizia o anúncio, "a era do petróleo fácil terminou". Isto foi uma admissão extraordinária feita por uma importante companhia petrolífera. O anúncio continuava dizendo "que muitos dos poços de gás e de petróleo do mundo amadureceram" e que "novos descobrimentos de energia estão ocorrendo em lugares onde é difícil a extracção, fisicamente, economicamente e inclusive politicamente". De forma igualmente reveladora, o anúncio indicava que o mundo consumirá aproximadamente um trilião de barris durante os próximos 30 anos, tanto petróleo por explorar como o que se crê que jaz nas reservas mundiais conhecidas e "provadas".

  • A ONDA EXPANSIVA DO PETRÓLEO

    Estes e outros relatórios recentes de fontes comerciais e industriais sugerem que a redução antecipada da produção mundial de petróleo terá graves consequências económicas. Se os preços subirem até US$ 100 por barril, como sugeria a Goldman Sachs, uma recessão económica mundial é quase inevitável. Ao mesmo tempo, uma diminuição da produção terá seguramente consequências políticas e militares significativas, como sugeriram outros acontecimentos recentes.

    O mais notável deles, naturalmente, foi o grande alvoroço provocado pela oferta de 18,5 mil milhões de dólares por parte da Chinese National Offshore Oil Corporation (CNOOC) para a aquisição da Unocal, companhia com base nos EUA que anteriormente era conhecida como Union Oil Company of California. A Unocal é proprietária de substanciais reservas de petróleo e gás na Ásia e fora originalmente cortejada pela Chevron que havia oferecido 16,5 mil milhões de dólares pela mesma em princípios deste ano. O facto de uma empresa chinesa estar preparada para fazer uma oferta mais alta do que uma poderosa firma norte-americana para controlar uma importante companhia petrolífera com base nos EUA é imensamente significativo em termos puramente económicos.

    Uma vez abandonada pelos chineses , devido à feroz oposição política norte-americana. O facto é que se a transação se houvesse consumado teria representado a maior já feita por uma companhia chinesa nos EUA. Mas a oferta desencadeou um intenso debate político e a resistência de Washington devido aos laços que unem a CNOOC ao governo chinês (pertence ao estado em 70%) e porque a principal matéria-prima implicada, o petróleo, é considerado vital para a economia estadunidense e não tão abundante como se supunha a princípio. Temendo que a China ganhasse o controle sobre valiosas fontes de petróleo e gás que alguma dia seriam necessários para os EUA ou para aliados asiáticos, políticos conservadores procuraram bloquear a aquisição da Unocal por parte da COONC transformando o assunto em caso de segurança nacional.

    "Isto é um assunto de segurança nacional", disse o antigo director da CIA R. James Woolsey quando testemunhou perante o Comité de Defesa do Senado em Julho último. A China está a seguir uma estratégia nacional de dominação dos mercados energéticos e domínio estratégico do oeste do Pacífico, uma estratégia, argumentou, que poderia ser reforçada de maneira muito importante com a aquisição da Unocal por parte da COONC. Vista desta perspectiva, a oferta da CNOOC foi considerada uma ameaça aos interesses de segurança dos EUA e por isso podia ter sido bloqueada pelo Congresso ou pelo Presidente.

    A ideia de bloquear uma transação mercantil de um importante associado do comércio exterior dos EUA choca-se com a doutrina económica reinante do livre comércio e da globalização. Entretanto, ao invocar considerações de segurança nacional, o presidente recebe o poder de proibir a aquisição de uma companhia estadunidense de acordo com o Acto de Produção de Defesa de 1950, uma medida da Guerra Fria concebida para impedir a transferência de tecnologias avançadas para a União Soviética e os seus aliados. Isto é precisamente o que se propunha a fazer a grande maioria da Câmara dos Representantes. A 30 de Junho, a Câmara adoptou uma resolução declarando que a absorção da Unocal por parte da CNOOC podia "prejudicar a segurança nacional dos EUA" e por esta razão devia ser proibida pelo Presidente nos termos da lei de 1950. Esta perspectiva chegou a projecto de lei de diversos assuntos de energia adoptados pelo Congresso antes das férias de verão. Citando aspectos potenciais de segurança nacional nesta matéria, o projecto de lei impunha uma revisão federal obrigatória de 120 dias da oferta da CNOOC, assegurando efectivamente a sua liquidação.

    Mais evidência da crescente amálgama de temas dentre energia e política de segurança nacional pode ser encontrada no Relatório de 2005 do Pentágono sobre o poder militar chinês, emitido em 20 de Julho. Enquanto em anos anteriores este relatório centrava-se principalmente na aparente ameaça da China contra a ilha de Formosa, a edição deste ano presta muito mais atenção às implicações militares da crescente dependência da China em petróleo e gás natural importados. "Esta dependência de recursos e energia estrangeiros... está a desempenhar um importante papel na configuração da estratégia e da política chinesa", salienta o relatório. "Tais preocupações são um factor importante nas relações de Pequim com Angola, Ásia Central, Indonésia e Médio Oriente (incluindo Irão), Rússia, Sudão e Venezuela... A crença de Pequim de que necessita estas relações especiais para assegurar o seu acesso à energia poderia configurar sua estratégia defensiva e planificação de força no futuro".

    A versão desclassificada do relatório do Pentágono não explica que passos daria Washington em resposta a estes acontecimentos, mas as implicações são óbvias. Os EUA têm que reforçar o seu próprio exército em regiões chave produtoras de petróleo para afastar qualquer intenção da China de domínio ou controle destas áreas.

    A seriedade com que os políticos vêm esta evolução dos acontecimentos relacionados com a energia revela-se ainda mais em outro facto recente: O primeiro "jogo de guerra" de alto nível baseado numa crise de petróleo no estrangeiro. Conhecido como "Onda de choque petrolífero" , ("Oil Shockwave"), este extraordinário exercício foi presidido pelos senadores Richard Lugar de Indiana e Joe Lieberman de Connecticut e contou com a participação de figuras proeminentes, como o antigo director da CIA Robert M. Gates, o antigo comandante geral do Exército P. X. Kelley e o antigo conselheiro de economia nacional Gene B. Sperling. Segundo os seus patrocinadores, o jogo destina-se a determinar que passos os EUA adoptariam para mitigar o impacto de uma interrupção de envio e de produção estrangeiros, como pode ocorrer devido a uma guerra civil na Nigéria ou a um aumento do terrorismo na Arábia Saudita. A resposta:   "praticamente nada". "Uma vez interrompido o fornecimento de petróleo", concluíram os participantes, "há muito pouco que possa ser feito num prazo curto para proteger a economia dos EUA do seu impacto, incluindo preços de gasolina superiores a 5 dólares por galão (3,78 litros) e uma aguda pioria no crescimento económico, que potencialmente implica uma recessão".

    Não surpreende pois que o resultado deste exercício tenha produzido um grande alarme entre os participantes. "A simulação serve como um aviso claro de que inclusive uma redução relativamente pequena no fornecimento de petróleo resultaria em tremendos problemas de segurança nacional e económicos para o país", disse Robbie Diamond de Assegurando o Futuro Energético da América (Securing America's Energy Future), um dos principais patrocinadores do evento. "Este tema merece atenção imediata".

    ENTRANDO NA ERA DAS GUERRAS POR RECURSOS

    Pelo que se conhece do exercício "Onda de choque petrolífero", ele não considerava o uso da força militar para enfrentar os acontecimentos imaginados. Mas se a história recente é uma indicação, esta seguramente será a opção que os políticos dos EUA contemplarão no caso de uma crise real.

    De facto é uma política oficial dos EUA, consagrada na "Doutrina Carter" de 23 de Janeiro de 1980, usar a força militar quando for necessário resistir a qualquer ataque hostil que impeça o fluxo de petróleo do Médio Oriente.

    Este princípio foi invocado pela primeira vez pelo presidente Reagan a fim de permitir a protecção de petroleiros kuwaitianos por forças dos EUA durante a Guerra Irão-Iraque de 1980-88 e pelo presidente Bush pai para autorizar a protecção da Arábia Saudita por forças dos EUA durante a primeira Guerra do Golfo de 1990-91. No mesmo princípio básico repousa o embargo militar e económico ao Iraque desde 1991 até 2003, e quando esta postura não alcança os resultados previstos de uma "mudança de regime", utilizam a força militar para provocá-lo.

    Uma dependência semelhante na força seria indubitavelmente o resultado de pelo menos um dos acontecimentos chave imaginados no exercício da "Onda de choque do pico petrolífero": ataques terroristas na Arábia Saudita que levem a uma evacuação maciça de trabalhadores estrangeiros dos campos de petróleo e a uma paralisação da produção saudita. É inconcebível que Bush ou o seu sucessor se abstenham de usar a força militar nessa situação, tendo em conta a presença histórica de tropas dos EUA dentro do país e em particular em torno dos campos petrolíferos sauditas.

    Ao determinar o cenário para a sua crise simulada, a "Onda de choque do pico petrolífero" identificou uma série de condições que proporcionam uma antecipação viva do que podemos esperar durante o Ocaso da era do petróleo:

  • Preço do barril de petróleo que exceda os US$ 150

  • Preços da gasolina de US$ 5 por galão ou superiores.

  • Uma subida do índice de preços no consumidor de mais de uns 12%.

  • Uma longa recessão.

  • Uma baixa de mais de 25% no índice de bolsa Standard & Poor 500

  • Uma crise com a China acerca de Formosa.

  • Uma tensão crescente com a Arábia Saudita sobre a política dos EUA para com Israel.

    Não se pode prever neste momento que experimentemos ou não estas condições precisas, o que é incontestável é que uma redução da produção mundial de petróleo produzirá cada vez mais acontecimentos graves desta classe e, num mundo mais tenso e desesperado, quase com certeza existirá a ameaça de guerras por recursos de todas as classes. Esta não será uma situação temporária da qual possamos esperar recuperar-nos rapidamente. Será um estado de coisas semi-permanente.

    Finalmente, é claro, a produção mundial de petróleo não estará simplesmente estancada como no Ocaso da Era do Petróleo, começará sim um declínio gradual e irreversível que conduzirá ao fim da Era do Petróleo. O difícil e perigoso que possa resultar esta Era, e a rapidez que chegará ao seu fim dependerá de um factor chave: A rapidez com que comecemos a reduzir nossa dependência do petróleo como principal fonte de energia e comecemos a transição rumo a combustíveis alternativos. Esta transição não se pode evitar, ela chegará estejamos ou não preparados para ela. A única maneira que temos de evitar suas consequências mais dolorosas é começar rapidamente a lançar as bases de uma economia pós-petróleo.

    05/Ago/05

    [*] Catedrático de Estudos sobre Paz e Segurança Mundial no Colégio Hampshire e autor de Blood and Oil: The Dangers and Consequences of America's Growing Dependence on Imported Petroleum (Owl Books) bem como Resource Wars, The New Landscape of Global Conflict .

    O original em inglês encontra-se em
    http://www.zmag.org/content/showarticle.cfm?ItemID=8454 , a tradução em castelhano em http://www.zmag.org/spanish/0905klare.htm . Tradução de JF.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 21/Set/05