1- Introdução
Os preços praticados para os diversos tipos da energia final disponibilizada aos consumidores domésticos e empresariais determinam múltiplos impactos socioeconómicos.
O relevo desse impacto, função directa da dimensão e sentido de variação dos preços, tem forte repercussão na microeconomia e à escala macroeconómica, influenciando o PIB, o IPC, a inflação e a balança de transacções correntes, acabando sempre por ter reflexo, directo e/ou indirecto, no esforço exigido aos consumidores finais, ou seja, no nível do custo e qualidade de vida das populações.
A dimensão e a velocidade de propagação dos efeitos socioeconómicos da variação dos preços da energia final, apesar das cadeias empresariais activas na transformação/produção e na comercialização serem privadas, está, contudo, muito dependente da vontade real, das opções político-ideológicas e da capacidade de intervenção efectiva por parte do Estado (governo e administração central) e das entidades reguladoras públicas.
Este aparente paradoxo deve-se ao facto de se tratar de sectores estratégicos concessionados, verificando-se a existência real de monopólios (redes) e oligopólios, no caso, privados. Ou seja, com o crescimento da privatização em contexto neoliberal, o controlo regulatório, embora insuficiente, passou a ser incontornável, designadamente face às numerosas falhas de mercado. É, em geral, desempenhado por entidades reguladoras autónomas do poder executivo, enquanto a regulamentação/normalização fica sob responsabilidade político administrativa dos poderes governamentais.
Mesmo considerando que, em larga medida, Portugal está dependente de fontes de energia primária externas, e, portanto, das variações de fluxos e preços nos mercados internacionais, a já referida intervenção regulatória autónoma, a acção político-administrativa do poder executivo central, bem como a produção legislativa parlamentar, têm uma importância fundamental.
A dependência energética externa não é uma singularidade no plano europeu ou mundial. Uma grande maioria dos países não são autónomos em termos das fontes de energia de que carecem. O que não significa, por si só, não ser possível o exercício de soberania.
De facto, apesar do relevo dos preços dos combustíveis fósseis importados, a influência da parcela interna na formação dos preços/tarifas finais é determinante. Essa componente é fortemente impactada por decisões político-administrativas, fiscais e regulatórias, que determinam em larga medida a grandeza dos lucros, mais-valias e dividendos usufruídos pelas grandes corporações empresariais privadas que, em oligopólio, dominam o sector energético português.
A energia final necessária às diversas actividades socioeconómicas é disponibilizada através de diferentes vectores, avultando os combustíveis líquidos e gasosos derivados do petróleo, o gás natural e a electricidade. Embora existam outras, como a biomassa (lenhas), as principais formas de energia final utilizadas em Portugal dependem maioritariamente de fontes primárias externas.
Constata-se que a electricidade com origem em fontes endógenas renováveis, não obstante mais de duas décadas de intenso investimento na eólica e fotovoltaica, significa, até agora, apenas cerca de dez por cento do total de energia primária que o país necessita e consome. Acrescentar que esse investimento ocorreu porque fortemente apoiado, maioritariamente através de tarifas subvencionadas pelos consumidores, o que contribuiu muito para que a electricidade chegasse a preços muito altos em Portugal. No processo, as empresas eléctricas obtiveram volumosas vantagens [1] (ver, por exemplo, os casos da EDP e da GALP).
Entre 2000 e 2021 verificou-se a descida na utilização de combustíveis fósseis (carvão e gás natural), um maior contributo da hidroelectricidade (apesar da significativa variabilidade interanual), um grande aumento da electricidade eólica e, ainda, alguns incrementos na produção fotovoltaica e geotérmica. Em 2020, o contributo da electricidade proveniente de fontes endógenas renováveis (FER) foi de 58,9%, e em 2005 representava apenas 14,8%. Este facto determina que a subida dos preços/tarifas da electricidade nos últimos três lustres seja ainda mais paradoxal porque, em princípio, os custos variáveis das produções FER tendem para valores residuais.
O aprovisionamento energético é um factor vital para a economia nacional, para o bem-estar social, tendo, também, forte correlação ambiental. Tem enorme impacto ao nível dos consumidores domésticos/famílias e no sector produtivo empresarial, afectando, neste caso, a capacidade competitiva para exportação de bens e serviços, além de influenciar a formação dos preços dos bens e serviços no mercado interno.
O sector empresarial ligado à produção/transformação de energia, bem como ao seu transporte, armazenamento, distribuição e comercialização, actua num referencial tecnologicamente avançado, capital intensivo, mobilizando milhares de trabalhadores directos e indirectos. Assim sendo, o seu dinamismo e estabilidade são vitais para o equilíbrio sociolaboral, para o desenvolvimento económico e técnico-científico, e, sobretudo, para a soberania nacional. No entanto, este sector estratégico foi quase totalmente privatizado, fortemente alienado a accionistas estrangeiros e, sob o pretexto de que a liberalização concorrencial seria benéfica para os consumidores (porque determinaria diminuição dos preços), foi irracionalmente desmembrado e o planeamento energético central alienado e subordinado ao referencial das metas climáticas.
O consumo de energia primária per capita era, em Portugal (2019), apenas de 2,15 tep/hab/ano, estando no 23º lugar entre os vinte e sete países europeus. Abaixo só ficavam a Albânia, Sérvia, Malta e a Roménia. Situação equivalente quanto ao consumo de energia final per capita: 281 kgep/hab/ano em Portugal, 550 kgep/hab/ano na UE 27, e, entre trinta e cinco países, o país só estava melhor do que a Turquia, Macedónia do Norte, Malta e Albânia.
Quanto ao consumo de electricidade o panorama não era melhor: consumiam-se, em 2019, ano imediatamente anterior à crise pandémica, 4 524,1 kWh/hab/ano, quatro e três vezes menor do que o verificado, respectivamente, na Finlândia e na Suécia. Atrás de Portugal só estavam, em 2019, segundo dados Eurostat, sete países: Bulgária, Hungria, Croácia, Polónia, Lituânia, Letónia e Roménia.
Subsiste, entretanto, um discurso muito difundido que induz a ideia de que seria possível e desejável a manutenção e, mesmo, a descida dos consumos energéticos, desiderato que se alcançaria, supostamente, através do aumento da eficiência, da utilização racional e da conservação energética. Sendo certo que objectivos racionais focados na conservação, no combate ao desperdício e no aumento da eficiência nas transformações produtivas e nos usos finais da energia são importantes e necessárias, não se pode confirmar, infelizmente, que, no médio prazo, seja possível, numa grande parte de parte dos países, entre os quais se encontra Portugal, garantir a diminuição do consumo global de energia com base neste tipo de medidas.
Para além do efeito conhecido como paradoxo de Jevons[2], não pode negligenciar-se a necessidade de, ainda durante um largo período, aumentar a disponibilização de energia, designadamente, electricidade e gás natural, tanto para consumos domésticos, como para as actividades económicas. O indispensável aumento da qualidade de vida, do nível de produção e desenvolvimento não será, no caso português, possível mantendo os actuais baixos níveis de consumo energético per capita.
No contexto da referida mensagem equívoca alimenta-se, por vezes, o mito da “amenidade climática portuguesa”, nomeadamente quando a comparação é feita com os países nórdicos europeus, esquecendo que a pobreza energética ultrapassa o nível da (significativa) pobreza socioeconómica, sendo o desconforto térmico e higrométrico muito generalizado nos lares portugueses, contribuindo para o aumento da pressão sobre os serviços públicos de saúde. Nos locais de trabalho o desconforto ambiental propicia, também, menores graus de produtividade e criatividade.
Assim, parece ser incontornável a necessidade de aumentar o abastecimento através dos vectores de energia final que tenham suficiente densidade, qualidade e fiabilidade, e, simultaneamente, diminuir o nível dos preços unitários praticados.
Notar que, embora a energia seja um factor importante que contribui para a definição do índice de desenvolvimento das sociedades assentes em territórios concretos, não determina, por si só, diversas vertentes dos seus sucessos ou fracassos civilizacionais[3].
Atendendo às limitações dos recursos disponíveis e aos impactos ambientais/climáticos resultantes dos processos de conversão energética, pode argumentar-se que deveria haver um urgente turning-point operado através da diminuição relativa e, até, absoluta, dos consumos energéticos.
Sabe-se que desde meados do século XIX, mas, principalmente, ao longo do século XX, o ritmo de extracção de materiais da natureza (biomassa, minerais e rochas industriais, minérios e combustíveis fósseis) aumentou oito vezes, a uma taxa superior à do crescimento populacional, que foi de quatro vezes[4]. Ou seja, a taxa metabólica, duplicou, atingindo 12 ton/per capita/ano e a actividade económica, explicitada como PIB, cresceu vinte e duas vezes. Por esse motivo a intensidade do PIB (energética e em materiais) baixou para metade, o que é uma boa notícia.
A questão dos tipos e dimensões dos consumos energéticos assume particular importância quando se quantificam os impactos ambientais/climáticos resultantes dos processos de conversão energética.
Num referencial político apostado em alcançar muito rapidamente a neutralidade carbónica, há alguns poucos países, em regiões do mundo identificadas como as mais desenvolvidas, que pretendem impor políticas energético-climáticas em todo o planeta humano que privilegiam a mitigação carbónica, esquecendo que, durante mais de dois séculos, esses países, nos seus processos de desenvolvimento, contaminaram o solo, as águas e a atmosfera, ao mesmo tempo que sugaram recursos, exploraram populações, e, ainda hoje destroem florestas e ocupam desordenada e gananciosamente territórios um pouco por todo lado.
Esses países não deveriam, do ponto de vista ético, querer determinar aos outros receitas energéticas que, podendo ser interessantes e viáveis nas suas próprias condições, seriam socioeconomicamente inadequadas para a grande maioria da maioria. E, contudo, fazem-no, baseados na força, ora de armas económico-financeiras, ora da disseminação de convenientes ideologias.
Além de tudo o restante, o trinómio electrificação total – neutralidade carbónica – diminuição do consumo, que pretende impor-se como fórmula universal, tem resolução mais complexa do que nunca, devido, por um lado, às alterações tecnológicas e, por outro, ao desejo de consumo de novos bens e serviços que se vai espalhando no mundo. Ou seja, na visão de desenvolvimento mais difundida, baseado no paradigma do crescimento sistemático dos consumos de bens e serviços, e num referencial de mercado liberalizado, pode verificar-se que a procura de energia ainda molda os comportamentos humanos, mesmo em regiões que carecem de vectores energéticos acessíveis[5].
Regressando ao país, onde a necessidade de consumo de energias finais é incontornável (mesmo aumentando a eficiência e diminuindo as intensidades energéticas do PIB), é também interessante verificar que o saldo importador de electricidade no período 2005 a 2020 ter sido apenas em três anos negativo (exportações maiores que as importações).
A quantidade total importada nos dezasseis anos foi de 47 665 GWh, o que equivale a cerca de um ano de consumo de electricidade.
Ou seja, o país não está mais autónomo em electricidade, nem com preços mais baixos, não obstante a grande aposta em fontes renováveis durante cerca de duas décadas.
2- Preços/tarifas e inflação
O Índice de Preços no Consumidor – IPC, calculado pelo INE para Dezembro 2021, apontava, nos produtos energéticos, para uma taxa de variação média nos 12 meses anteriores de 7,28%, tendo a variação do IPC total sido de 1,27% (0,9% IHPC Total).
Tendo Novembro 2021 como, referência a evolução do IPC foi a que se regista no Quadro 1 quanto a algumas Classes, Grupos e Subgrupos COICOP – Classificação do consumo individual por objectivo. Vê-se que, por exemplo, o custo com a habitação foram muito pressionados pelas rendas.
A inflação subjacente é obtida excluindo do IPC Total os preços dos produtos alimentares não transformados e dos produtos energéticos, com a finalidade de eliminar “choques” temporários. Assim, em Novembro 2021, a inflação teve uma variação homóloga de 1,7%, e, quanto aos produtos energéticos, a variação foi de 14,1% (13,4% no mês de Outubro 2021).
A contribuição para a taxa de variação homóloga do IHPC, numa avaliação do período de Janeiro a Novembro de 2021, mostra uma grande subida por parte dos combustíveis, enquanto a electricidade e gás apresentaram apenas um crescimento ligeiro. De facto, em Portugal, os preços de retalho nestes vectores é definido, em geral, em contratos anuais, actualizados em Janeiro (Outubro para o gás natural), e, por isso menos sensíveis a alterações infra-anuais dos preços nos mercados grossistas, como, por exemplo, se verifica em Espanha. No entanto, a actualização infra-anual já está em vigor em Portugal no caso das tarifas para consumidores de electricidade no mercado regulado.
No presente artigo pretende abordar-se a questão relacionada com o nível dos preços/tarifas da electricidade, que, em Portugal, impactam um universo de 6,6 milhões de consumidores, dos quais 5,67 milhões são consumidores domésticos relacionados com 5,9 milhões de alojamentos, onde se consomem 14,4 TWh de electricidade, gastando-se 3 207 milhões €, em 2020.
Conhece-se o que aconteceu com os preços/tarifas de electricidade nos últimos cerca de três lustres: uma subida enorme que catapultou os preços da electricidade para o pelotão da frente dos países europeus onde ela é mais cara em termos absolutos, o que se agrava quando a comparação é feita em Paridade de Poder de Compra (PPC), piorando se a avaliação for referida à “taxa de esforço” dos consumidores domésticos portugueses.
O grande aumento do preço/tarifa da electricidade, em particular a que é destinada aos consumidores domésticos, só muito parcialmente teve a ver com a variação das cotações internacionais dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) e, até, da electricidade transaccionada no mercado grossista (MIBEL).
Da análise da evolução dos preços reais (constantes) de electricidade representados como índices (1990=Índice 100) resulta que, para um consumidor doméstico (escalão médio, BTN), houve uma baixa desde 1990 até 2006, quando se atingiu o valor 68,69 e, depois, uma subida até 2016, atingindo o índice 109,52. Os preços correntes de aquisição de electricidade passaram de 10,46 cts €/kWh em 1990, para 13,85 cts €/kWh em 1998, mantendo-se à volta desse nível até 2006 (13,92 cts €/kWh), entrando depois numa fase de acentuadas subidas anuais que levaram o preço até aos 24,59 cts €/kWh em 2017, e 23,47 cts€/kWh (Figura 1).
Depois de 2016/17, e até 2020, fruto de novas condições parlamentares, foram possíveis algumas intervenções político-administrativas e regulatórias favoráveis aos consumidores.
Para os consumidores empresariais do escalão médio de consumos, as variações foram similares, embora a níveis bastante mais baixos (Índice 50,06 e 8,7 cts €/kWh, em 2006; Índice 78,72 e 13,76 cts €/kWh em 2020), como se pode ver na Figura 2.
3- A regulação, os CIEG e as tarifas/preços
O IPC total subiu de 100(1990) até 190,65(2008), ou seja, exactamente no período em que os índices (preços constantes) da electricidade desceram, o que torna ainda mais anómala a subida verificada entre 2008 e 2017, quando a taxa de incremento do IPC foi menor.
A análise da formação dos preços-tarifa da electricidade (e do gás natural) e, sobretudo, da sua evolução, constitui um exercício complexo, sendo, em geral, pouco compreensível. A simples legibilidade de uma factura de electricidade exige literacia especial.
A evolução dos preços da electricidade relaciona-se, na realidade, com decisões político-administrativas e regulatórias introduzidas após o início do novo milénio, que, sob o pretexto do incremento da racionalidade, da liberalização e da introdução electricidade gerada a partir de fontes renováveis, determinou uma colossal e perene acumulação de “rendas excessivas” que vêm, há cerca de duas décadas, alimentando os lucros das grandes empresas energéticas.
Com base num inquérito parlamentar [6] concluiu-se que, através dos CIEG-Custos de Interesse Económico Geral e do propiciamento de “rendas excessivas” às empresas privadas energéticas, contribui-se em grande parte para a formação de lucros, mais-valias e consequentes distribuições de dividendos colossais aos accionistas, que, em parte significativa, têm sede externa. O sucesso empresarial corporizado em CEO’s famosos não se deveu tanto à arte e engenho da gestão privada, mas, antes, à capacidade de influência junto do poder político governamental. Trata-se de um processo ainda hoje por resolver nos planos político e judicial.
Para alcançar a razão da subida dos preço/tarifa da electricidade, e, recentemente, de algumas descidas, há que analisar as referidas decisões políticas governamentais, as deliberações legislativas parlamentares e, sobretudo, mergulhar nos mecanismos regulatórios que determinam, por essa via, a totalidade da tarifa regulada para consumidores finais de electricidade, e mais de 90% do preço/tarifa no mercado liberalizado. O mercado “livre” e o binómio oferta-procura pouco têm que ver com os preços praticados no mercado retalhista por empresas que, pelo menos as dominantes, estão também ligadas à produção e à distribuição, num referencial fortemente oligopolizado.
A compreensão plena das metodologias regulatórias que determinam as variações dos preços-tarifa estão apenas ao alcance de especialistas, ou, pelo menos, de iniciados. Todos estes factores de complexidade determinam a opacidade que caracteriza o sector energético.
O preço da electricidade no mercado regulado, ou no liberalizado, é, de facto, constituído, em larga medida, por componentes de natureza tarifária, isto é, reguladas técnico-administrativamente pela ERSE. Por essa razão se utiliza a expressão preço/tarifa.
O preço/tarifa para os consumidores domésticos (famílias), tem uma formação aditiva que inclui: Tarifa de Usos Gerais do Sistema (UGS) + Tarifas pelo uso das Redes de Transporte e Distribuição + Tarifa de Operador de Mudança de Comercializador + Tarifa de Comercialização + Tarifa de Energia (esta influenciada pelo preço no mercado grossista e pelo algoritmo metodológico aplicado pela regulação).
No caso dos consumidores que estão no mercado regulado o pagamento devido é feito de acordo com o valor da TVCF – Tarifa de Venda aos consumidores finais que inclui todas as parcelas reguladas referidas.
Quanto aos consumidores que foram atraídos pelo mercado liberalizado, pagam os preços propostos pelas comercializadoras que compram a electricidade às empresas do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) por um valor que não inclui as tarifas reguladas de comercialização e de energia. Essas fatias específicas são, depois, introduzidas pelas empresas comerciais, o que lhes permite margem de manobra. Importa referir que as empresas comercializadoras mais influentes, não penas devido às suas ligações com a produção, mas, também, devido a contratos bilaterais de médio e longo prazos, conseguem condições especiais muito úteis na fase de captação de clientes.
Só no final, depois de todo o processo regulatório, são aplicadas as Taxas e Impostos, parcela em que avulta o IVA e as cargas fiscais e parafiscais relacionadas com o “combate às alterações climáticas”, num contexto de precificação e especulação financeira com o carbono, crescente nos últimos doze meses.
Incluídos no valor tarifário relacionado com as Tarifas UGS e de utilização das redes (transporte e distribuição), estão duas componentes fundamentais: os Proveitos Permitidos e os CIEG. Os respectivos valores são definidos anualmente pela ERSE (podendo haver actualizações infra-anuais devidas às variações de preço no mercado grossista), e são destinados, quase na sua totalidade, a remunerar empresas monopolistas privadas (REN, Galp, EDP, etc).
Não sendo possível fazer aqui uma análise aprofundada à estimação regulatória dos Proveitos Permitidos, sempre se poderá registar que foram, num passado recente, fixados em níveis muito altos. Ainda agora implicam taxas de remuneração muitíssimo confortáveis para as grandes corporações privadas internacionais que exploram o negócio energético em Portugal. É através destas receitas “reguladas”, e sem qualquer risco de mercado, que as grandes empresas privadas obtêm os lucros fabulosos conhecidos ao longo dos anos.
Os CIEG, validados pelo governo, são imputados, como já se referiu, às tarifas, incluindo diversos custos do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) derivados de decisões políticas: subsidiação à produção de electricidade em regime especial (PRE), que inclui a cogeração e a produção a partir de Fontes de Energia Renováveis (FER); os CAE – Contratos de Aquisição de Energia (ou PPA); os CMEC - Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual, etc.
Todos estes custos integrados nas tarifas reguladas de Usos Gerais e de Redes não são taxas ou impostos: são, de facto, cargas político-administrativas suportadas pelos consumidores, cujas receitas vão directamente para os cofres das empresas privadas que funcionam no “mercado regulado”.
A entidade reguladora vem arbitrando o jogo ao abrigo de conceitos e metodologias definidas no referencial europeu neoliberal, que permitem, de facto, num referencial de aparente rigor e isenção, o enriquecimento esdrúxulo de umas tantas empresas energéticas.
É de realçar que, em Julho de 2021, o peso das taxas e impostos representava menos do que 20% do total, enquanto a Tarifa regulada de Uso de Redes» valia 52%.
Exercício muito significativo é o de avaliar os pesos das diferentes Tarifas reguladas utilizadas pela ERSE.
A Tarifa UGS, seguida pela Tarifas Comercial MAT, AT, MT e pela Tarifa Comercialização BTE, têm tido o maior peso no processo regulatório aditivo utilizado pela ERSE. A Tarifa UGS chegou a ser seis vezes maior do que, por exemplo, a Tarifa de energia, como se pode verificar na Figura 3. Com uma leitura mais diferenciada na Figura 4, na qual não foram incluídas as Tarifas com maiores valores absolutos, poder-se-á ver a proporção entre as diversas tarifas reguladas.
É graficamente muito expressiva a descida vertiginosa da Tarifa UGS (onde pontificam os CIEG) em 2022, facto que constitui uma clara “anomalia” só igualada, embora por motivos diferentes, à que ocorreu em 2009.
Poderá verificar-se que o custo relacionado com a electricidade transaccionada no mercado grossista ibérico, explicitado na Tarifa de energia, que contribui com cerca de 28% da TVCF, subiu pela primeira vez de forma significativa em 2022.
Um aumento de, por exemplo, 50% na electricidade do MIBEL, impactaria a TVCF em cerca de apenas 14%.
Muito significativo para o montante da TVCF e, portanto, para os consumidores do mercado regulado, é o peso da Tarifa de Comercialização BTN. Esta diferença beneficia o mercado liberalizado de uma forma pouco compreensível.
O volume dos CIEG relacionados com a subsidiação à produção, em particular à baseada em fontes renováveis, acumulado entre 2000 e 2021, ultrapassa já os 28 400 milhões de €.
Num exercício de análise especulativa fez-se o cálculo da variação média dos índices das nove tarifas reguladas, registado na Figura 5, onde simultaneamente se mostra a evolução dos preços da electricidade para consumidores BTN no escalão 3,45 kVA (Gama DC, Eurostat), ou seja, equivalente, grosso modo, à TVCF.
4- O disparo verificado no MIBEL e os preços/tarifa para 2022
Depois muita tramitação técnica e política iniciada em 1998, o MIBEL – Mercado Ibérico da Energia Eléctrica, onde se procede às transacções entre um pequeno conjunto de empresas privadas de produção (que oferecem electricidade) e algumas poucas dezenas de empresas de comercialização (que compram electricidade), arrancou em toda a sua dimensão em Julho de 2007, não trazendo nada de novo favorável aos pequenos consumidores finais de electricidade, ou seja, aos domésticos e às pequenas empresas.
A partir de meados de 2021 têm vindo a ocorrer nos mercados grossistas dinâmicas que apontam para novas potenciais subidas do preço da electricidade, que, aliás, já tiveram repercussão no tarifário decidido para 2022.
Esclarecer que no MIBEL, o jogo passa-se entre empresas, que por vezes actuam dos dois lados no binómio oferta-procura, simulando a existência de um mercado. E é neste mercado grossista, que funciona num regime de oligopólio, que se formam, através de metodologias complexas e pouco transparentes, os preços diários de transacção de electricidade. Além das empresas produtoras, das empresas de transporte e distribuição e das grandes comercializadoras que jogam neste “mercado” com sistemáticos benefícios, também os consumidores empresariais de grande porte podem tirar benefícios através de contratos bilaterais de média e longa duração. Prejudicados, ou, no mínimo, sem vantagens significativas, estão os milhões de pequenos consumidores.
O colossal disparo dos preços da electricidade, com subidas através de sucessivos recordes, largamente difundido desde o segundo trimestre de 2021, ocorre diversos mercados grossistas de electricidade, tanto o MIBEL (Espanha e Portugal), como em mais cinco mercados grossistas regionais existentes na Europa, entre eles o Nord Pool (Noruega, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Estónia, Lituânia e Letónia). No MIBEL as subidas têm sido muito relevantes.
De facto, os preços têm subido muito em todos os mercados europeus de electricidade, embora com algumas diferenças. Em Novembro verificaram-se médias acima dos 200 €/ MWh e em Dezembro tendo já se chegou a 400 €/ MWh sido a mais elevada de sempre em quase todos os mercados grossistas.
Contudo, é necessário dizer que, por muito paradoxal que pareça, estas subidas não têm repercussão proporcional directa nos preços/tarifas para os consumidores finais, como se viu na explanação feita atrás sobre o peso da Tarifa de energia na aditividade regulatória.
São vários os factores encontrados para justificar os aumentos nos mercados grossistas: crescimento da procura devido ao arrefecimento atmosférico e à “retoma”, menor produção de electricidade nuclear em alguns países (França e Espanha), altos preços do gás natural e, ainda, o grande aumento da precificação do CO2 em função dos objectivos políticos da transicção/descarbonização.
A maior subida de preço, 122%, verificou-se no mercado Nord Pool, seguido do EPEX SPOT da Alemanha, com 35%. Aumentos menores verificaram-se no mercado de Espanha e Portugal (5,2% e 5,3%). Contudo, é necessário registar que o preço médio semanal no Nord Pool foi de 122,93 €/MWh e o mais elevado registou-se em França, em 259,93 / MWh, aqui devido à menor disponibilidade da electricidade nuclear (centrais em manutenção programada).
Numa fase em que as necessidades portuguesas de electricidade são supridas com fontes de energia renováveis endógenas (eólica, hidreléctrica, biomassa, geotérmica e fotovoltaica) em mais de 60%, ou seja, através de produções com custos variáveis que tendem para zero, e com custos fixos que, em boa parte, são baixos, porque os equipamentos estão já amortizados, os preços no mercado grossista continuam altos e, agora, são manifestamente exagerados.
Vejamos com mais profundidade alguns dos factores explicativos:
a) Os preços subiram porque, com o fim da crise COVID-19, aconteceu a retoma, principalmente na Ásia. Mas, sobretudo, a dinâmica altista passa pelas necessidades excepcionais e transitórias de restabelecer stocks exauridos e reforçar infra-estruturas e equipamentos adiados. A questão geoestratégica (UE-EUA-Rússia-China) tem, também, significado. A pressão dos EUA para vender o seu shale gas em detrimento do GN russo é grande. Os russos, segundo afirmações públicas da ex-chanceler alemã, não estão em incumprimento contratual, apenas se recusam a fornecer mais gás natural sem haver contrato de aprovisionamento de longa duração (Nord Stream 2).
b) O preço do gás está a subir também porque há financeirização e especulação bolsista com derivados ligados à commodity.
c) O aumento da electricidade, em ligação com o preço dos gás natural, está a ser muito pressionado pela subida brutal do preço das licenças de emissão de CO2 (mais 20% nos últimos meses). Importa dizer que estes «preços artificiais» irão continuar a subir para pressionar a transição descarbonizadora. E estes aumentos, que também são campo de acção dos mercados bolsistas de derivados, não vão parar de crescer, até porque, claro, é necessário salvar o Planeta!
Mas, pergunta-se, como é possível que, com mais de 60% da electricidade necessária a custar, na produção, abaixo dos 20 euros/MWh – eólicas e hidroeléctricas já amortizadas –, se chega a valores estratosféricos no mercado grossista?
Isto é devido a outro segredo fundamental de um «mercado» simulado: o preço médio diário é firmado, no final de cada dia, através do custo marginal da última unidade de energia que é necessária ligar à rede (mercado). E isso significa que, em geral, entrando mais tarde, as produções eléctricas à base de gás natural e carvão (oneradas pela precificação do CO2 e pela subida das commodities), determinam o preço para todo o dia, mesmo que só tenham produzido algumas horas!
Assim, os produtores privados com grandes e médias centrais hidroeléctricas já amortizadas, cujo custo de produção anda perto de zero euros, recebem, em certas horas, mais de 250 euros/MWh. E os senhores das eólicas e fotovoltaicas, ou estão a receber pela tarifa bonificada contratada há longos anos (cerca de 90 euros/MWh), ou, então, quando já estão «no mercado», recebem o mesmo que os das hidroeléctricas!
Trata-se de uma situação de público e notório esbulho aos consumidores e às economias. Os governos e as entidades reguladoras conhecem o esquema, mas, quando é impossível deixar de fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma, optam por remendos, apoios com dinheiros públicos e «ajudas aos mais pobres».
Não é de admirar que o lóbi das renováveis propale a mensagem de que “para resolver a crise dos preços” são necessárias cada vez mais centrais fotovoltaicas e eólicas, com as suas produções intermitentes, em articulação com mais armazenamento em baterias e unidades experimentais de hidrogénio verde. Tudo isto, nesta nova fase, subsidiado por fundos europeus e nacionais, comprometendo o ordenamento do território, a produção agro-alimentar e a economia do solo, além de provocar graves impactos ambientais e paisagísticos, sem resolver de forma estável e segura o aprovisionamento em electricidade.
Cabe, neste ponto, registar a proposta tarifária para 2022, já aprovada pela ERSE e pelo governo, devidamente publicada, e onde se verifica que, de forma inédita, os CIEG incluídos nas tarifas 2022 baixam 187,5 milhões €, facto que terá, em princípio, como consequência uma significativa descida nas diversas Tarifas de acesso às redes. Desde já alertar para o facto de uma coisa serem essas tarifas reguladas e outra, que pode ser muito diferente, são os preços que os consumidores, também os grandes, terão que pagar às comercializadoras.
As TVCF-Tarifas de venda a consumidores finais (designadas impropriamente como transitórias) aumentam cerca de 0,2% face ao preço médio de 2021.
Os sobrecustos com a produção eléctrica projectados nos CIEG descem, em 2022, cerca 1 635 milhões €, o que constitui um acontecimento extraordinário, embora não perene.
Observe-se com maior pormenor: até ao segundo trimestre de 2021 o MIBEL, lançado em Julho de 2007, não tinha trazido nenhuma vantagem real aos pequenos e médios consumidores. Agora, esta bolsa eléctrica disparou, aparentemente devido à ocorrência de diversas situações já explicitadas no artigo referido, levando os preços a níveis situados entre os 200 e os 400 €/MWh em certas horas de alguns dias.
A ERSE procedeu então à revisão das previsões quanto ao custo de aquisição pelo CUR (Comercializador de Último Recurso, em geral a SU Electricidade), que é a referência para a fixação da Tarifa de energia, que, por outro lado, está relacionado com o nível de preços no MIBEL: primeiro, na proposta de tarifas para 2021, elaborada em Setembro de 2020, apontava-se para 49,52 €/MWh, depois, em Julho de 2021, passou-se para 52,02 €/MWh, e, em Setembro de 2021, reviu-se em alta para os 73,24 €/MWh, o que determinou uma actualização das tarifas de energia (+ 5€/MWh) e, concomitantemente, a subida de 3% das TVCF para os consumidores do mercado regulado.
Na proposta de tarifas para 2022 a ERSE apontou um custo médio de aquisição pelo CUR de 105,50 €/MWh tendo em conta “os valores reais disponíveis até final de Setembro”.
É exactamente porque a previsão do custo médio de aquisição pelo CUR no mercado grossista sobe para 105,5 €/MWh que descem os custos imputados através da Tarifa UGS (Usos Gerais do Sistema). De facto, como se poderá constatar na Figura 6, o diferencial (+ ou -) de custo com a aquisição da PRE (produção em regime especial que inclui as FER, energias renováveis) resulta da diferença entre o preço médio de aquisição de energia eléctrica PRE (que se mantém) e o preço médio a que o CUR coloca ( e adquire) electricidade no mercado grossista (que sobe imenso), gerando vantajosos valores negativos (descontos) que se projectam nos CIEG, na Tarifa UGS, nas Tarifas de Uso de Redes e, assim, na própria TVCF – Tarifa de Venda aos Consumidores Finais (Tarifa transitória regulada).
Quando os preços no mercado grossista voltarem, como é expectável/desejável, aos valores normais (à volta de 50 a 70 €/MWh) desaparecerá o diferencial favorável, porque a produção PRE continuará nos 90 €/MWh, e, dessa forma, os CIEG voltarão a subir pressionando, de novo, a Tarifa UGS e todas as outras, menos a Tarifa de energia que, há que relevar, é uma parte menor na formação aditiva da TVCF. Notar que o custo total das produções especiais, onde as FER estão incluídas, não diminuirá significativamente em 2022, ficando bem acima dos 2 000 milhões € (Figura 7), ao contrário do que se poderia extrair dos discursos da APREN - Associação dos Produtores ... , nos quais se diz que a “salvação” está em maiores produções renováveis intermitentes (eólica e fotovoltaica).
Ou seja, quando houver a desejável estabilização no mercado grossista, tudo irá, de novo, piorar nos mercados reais que afectam os consumidores, tanto no regulado, como no liberalizado. E, se não fosse o referencial de contenção corporizado na TVCF, seria pior, com os consumidores a ficarem totalmente à mercê das comercializadoras e do oligopólio existente.
Sublinhar que quase todas comercializadoras que actuam no mercado liberalizado aumentaram já, entre 2 e 4%, os preços para 2022, e, até as entidades que representam grandes consumidores, como a Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal (AIMMAP), referem, alarmados, que apesar das descidas nas tarifas de acesso, contabilizadas em cerca de 30% a 40%, se está a assistir a aumentos reais entre os 60% a 70%.
5- Síntese Conclusiva
Os preços praticados para os diversos tipos da energia final disponibilizada aos consumidores domésticos e empresariais, muito em particular a electricidade num período em que se deseja intensificar os seus usos, determinam múltiplos impactos socioeconómicos.
Embora haja algum grau de relação com a evolução dos preços internacionais das matérias-primas energéticas importadas, a evolução dos preços da electricidade relaciona-se, sobretudo, com decisões político-administrativas e regulatórias introduzidas depois de 2000: sob o pretexto do incremento da racionalidade, da liberalização e da introdução electricidade gerada a partir de fontes renováveis, determinou-se uma colossal e perene acumulação de “rendas excessivas” que vêm, há cerca de duas décadas, alimentando os lucros das grandes empresas energéticas.
Para alcançar a razão da subida dos preço/tarifa da electricidade, e, recentemente, de algumas descidas, há que analisar as referidas decisões políticas governamentais, as deliberações legislativas parlamentares e, sobretudo, mergulhar nos mecanismos regulatórios que determinam, por essa via, a totalidade da tarifa regulada para consumidores finais de electricidade, e mais de 90% do preço/tarifa no mercado liberalizado.
O mercado “livre” e o binómio oferta-procura pouco têm que ver com os preços praticados no mercado retalhista por empresas que, pelo menos as dominantes, estão também ligadas à produção e à distribuição, num referencial fortemente oligopolizado.
O custo total das produções especiais, onde as FER estão incluídas, tem vindo a crescer intensamente desde 2002, atingindo um patamar acima de 2 000 milhões € em 2012, não se prevendo diminuição significativa em 2022, ao contrário do que se poderia extrair dos discursos da entidade corporativa que representa as empresas privadas de produção de electricidade baseada em renováveis intermitentes (eólica e fotovoltaica).
A importância da existência de um mercado regulado onde se pratica a TVCF é, apesar de algumas fragilidades regulatórias, muito importante para a defesa dos interesses dos pequenos e médios consumidores.