por Andrew Fishman
[*]
O governo dos Estados Unidos está treinando jovens de 12 a 18 anos que
falam português para dar o primeiro passo a caminho de se tornarem
"guerreiros cibernéticos" e, com sorte, um dia trabalharem
como espiões na Agência de Segurança Nacional (National
Security Agency, NSA), a principal agência de espionagem digital do
país.
Este ano, a Universidade de Washington, no noroeste do país, vai
ministrar dois programas de acampamento de férias de verão
gratuitos, em que alunos do ensino médio podem aprender um
currículo básico de segurança cibernética desenhado
pela NSA. Pela primeira vez, o curso será ensinado totalmente em
português, segundo descobriu uma investigação da
Pública.
O primeiro acontece entre 12 e 30 de julho, e o segundo entre 2 e 6 de agosto
. O primeiro curso é online e o segundo é online e presencial.
Serão aceitos 120 alunos.
Responsável pelo programa, o professor Eduardo Viana da Silva,
catarinense de voz gentil e jeito amigável, conversou com a reportagem e
afirmou que o curso oferece "uma janela para alguns caminhos profissionais
que os alunos podem explorar no futuro" na área de segurança
cibernética, seja dentro ou fora do governo americano.
O acampamento de férias faz parte do programa GenCyber
(Geração Cibernética), da NSA, uma das várias
iniciativas financiadas pelo Departamento de Defesa para criar e treinar
possíveis recrutas para agências de espionagem e as Forças
Armadas.
Apenas este ano, haverá 154 acampamentos semelhantes espalhados pelo
país. "Para aumentar a acessibilidade, os diretores das
acampamentos de férias GenCyber ensinam o conteúdo do curso na
língua que os participantes falam. Em anos passados, acampamentos
GenCyber já foram feitos em chinês e espanhol", explicou um
porta-voz da NSA à reportagem.
O Departamento de Defesa, do qual a NSA faz parte, identificou, após os
ataques de 11 de setembro de 2001, que faltavam profissionais de
segurança cibernética competentes e bem treinados para suas
operações de espionagem digital em constante expansão. Em
uma sessão no Congresso americano,
representantes de vários departamentos do governo alertaram
para a perigosa falta de pessoal fluente em "línguas
estrategicamente importantes" designação que inclui o
português. Nos anos seguintes, o departamento se mexeu para enfrentar
essa "crise de segurança nacional".
Como resultado, o governo dos EUA gastou centenas de milhões de
dólares por ano em
treinamento
, recrutamento e
bolsas
de estudo para treinar e incentivar jovens estudantes a seguir carreiras no
governo. Esses programas servem também como uma das muitas maneiras de
aumentar a influência das agências militares e de espionagem sobre
as universidades, com as quais têm
parceria
de longa data. As agências de espionagem da América surgiram de
universidades importantes, como
Yale
e
Harvard
, com as quais ainda têm laços estreitos, e grandes universidades,
como a University of Southern California e a University of Kansas, têm
designações oficiais
como "Centros de Excelência Acadêmica da Comunidade de
Inteligência" pelas quais recebem financiamento governamental.
Há décadas, grande parte da infraestrutura-chave de guerra,
comunicações e espionagem digital bem como os
profissionais para equipá-las tem sido desenvolvida nas
universidades de elite dos EUA com financiamento e parceria militar. A
relação de codependência está tão arraigada
que as principais universidades até contratam
lobistas poderosos
da indústria de defesa para solicitar mais financiamento militar.
O GenCyber é apenas uma pequena estrela em uma vasta
constelação de investimento militar na academia dos EUA. De
acordo com o
Serviço de Pesquisa do Congresso
, "quase metade do orçamento de pesquisa básica do
[Departamento de Defesa] é gasto em universidades. O financiamento do
[Departamento] representa uma fonte substancial de fundos federais para
[pesquisa e desenvolvimento] em instituições de ensino superior
em alguns campos". Em 2018, o Departamento de Defesa gastou
mais de US$ 8 mil milhões
em universidades, com milhares de milhões a mais em gastos relacionados
à defesa vindos de outras agências federais. Estes milhares de
milhões têm o efeito de influenciar as prioridades, corpos
docentes, gastos e, como resultado, os estudantes das universidades
americanas.
"Claramente, o GenCyber não usou apenas instituições
hospedeiras para transformar o funil de recrutamento, o GenCyber também
ajudou a transformar essas instituições [de ensino]", diz um
relatório
que avalia os primeiros cinco anos do programa, disponível em seu site.
"O GenCyber tem sido eficaz na promoção de mudanças
na atitude em relação à segurança
cibernética, tanto em termos de interesse geral quanto de
carreira", conclui a análise.
"O GenCyber me guiou em um caminho que acabou levando a uma bolsa
SFS", afirma Ben, um aluno entrevistado para o relatório,
referindo-se à "
Scholarship for Service
" (Bolsa para Serviço), um programa em que o governo americano paga
pela educação universitária em troca de trabalho
governamental em segurança cibernética. Ben foi aluno do programa
em 2015. "Depois do GenCyber, decidi participar do Cyber Patriot",
uma competição de segurança cibernética para alunos
do ensino fundamental e médio criada pela Força Aérea dos
Estados Unidos financiada pela empresa de defesa Northrop Grumman, com bolsa em
dinheiro como prêmio para os vencedores. "Eu fundei a equipe no meu
colégio. Quando estava na faculdade estudando segurança
cibernética, estagiei no FBI e estou trabalhando com o DoD [Departamento
de Defesa] como um civil agora na segurança cibernética",
disse Ben. É uma história de sucesso do GenCyber.
O presidente dos EUA, Joe Biden,
solicitou
em abril que o Congresso aprovasse US$753 mil milhões em gastos com
segurança nacional para 2022. O valor equivale a mais de 90% do
orçamento federal
total
do Brasil. Os EUA são de longe o país que mais gastam com defesa
no mundo.
Os EUA têm uma longa história de espionagem secreta no Brasil.
Hoje em dia a NSA tornou-se uma das principais agências a liderar essa
espionagem. A NSA é a maior agência de inteligência com foco
em espionagem digital do mundo. O total de funcionários da NSA é
classificado, mas é estimado de ser entre 30 e 40 mil com dezenas de
milhares de terceirizados adicionais.
Em 2013, o analista terceirizado Edward Snowden vazou milhares de documentos
internos da NSA, mostrando como a agência espionava cidadãos do
mundo inteiro, inclusive norte-americanos. Snowden vive até hoje exilado
na Rússia.
Revelações do arquivo de Snowden
mostraram
que a NSA e seus aliados canadenses vinham
espionando
o Ministério de Minas e Energia e a Petrobras, causando uma crise
política entre os governos de Dilma Rousseff e Barack Obama.
Revelações subsequentes do WikiLeaks,
publicadas
pela
Pública,
mostraram que a NSA também estava espionando a presidente Dilma e seus
principais assessores (exatamente como eles estavam, e provavelmente
estão, fazendo com muitos líderes mundiais). Os frutos dessa
espionagem são regularmente incluídos nos relatórios
diários de inteligência do presidente e são usados por
oficiais dos EUA para diversos fins, incluindo negociações de
tratados comerciais.
GenCyber treina crianças para se tornarem "guerreiros
cibernéticos"
A Universidade de Washington, que também oferece acampamentos de
férias em inglês, é uma das dezenas de universidades que
administraram as acampamentos de verão da GenCyber este ano, em 44 dos
50 estados dos EUA e em Washington, capital federal, além de Porto Rico,
de acordo com o site
do programa.
De 2015 a 2019, 15.545 alunos participaram de 565 acampamentos de férias
GenCyber, além de 3.711 professores, que passaram pelo programa de
formação de educadores. O relatório que avalia os
primeiros cinco anos estima que quase 19% dos ex-alunos que se formaram no
ensino médio seguiram em busca da segurança cibernética
como carreira; vários ex-alunos foram trabalhar para as Forças
Armadas, agências de inteligência ou empresas privadas de defesa
como a Northrop Grumman. Muitas das universidades
referem-se
a esses acampamentos como "academias de guerreiros" destinadas a
treinar futuros "guerreiros cibernéticos". "A Academia de
Ciberguerreiros treina a próxima geração para o emprego em
combate virtual", diz um artigo no site da Universidade da Geórgia
do Norte,
sobre o curso de 2017
.
Os alunos aprendem fundamentos da segurança cibernética e, pelo
menos em alguns acampamentos, maneiras simples de hackear computadores. Em
alguns programas, os alunos são colocados em pares com mentores em idade
universitária matriculados no treinamento de oficial militar.
Matt, outro ex-aluno entrevistado para o relatório, disse que participou
de um exercício de hackeamento "muito divertido":
"Roubamos as credenciais do administrador usando o DDoS [ataque massivo de
visitas contra um servidor]. Não pensávamos que era algo dentro
dos limites do que poderíamos realmente fazer, mas conseguimos",
disse Matt, que se formou em ciência da computação e
segurança cibernética. "Conseguimos fazer isso em uma rede
privada, então não era ilegal", explica.
Para participar do programa, os docentes universitários devem apresentar
propostas à NSA, que oferece entre US$50 mil e US$175 mil em
financiamento para cada acampamento de férias de três semanas.
Muitas universidades realizam várias edições a cada
verão.
Além da NSA, o acampamento de férias em português na
Universidade de Washington recebe também financiamento da National
Science Foundation (NSF, Fundação Nacional de Ciência), uma
agência do governo dos Estados Unidos, e apoio adicional interno do
Departamento de Língua Portuguesa e Espanhola do Center for Global
Studies, do Language Learning Center e do Center for Information Assurance and
Cybersecurity, um "centro de excelência acadêmica"
certificado pela NSA
. A NSF
forneceu
à universidade mais de US$110 milhões em financiamento durante o
último ano fiscal, financiando mais de 189 bolsas em várias
áreas de estudo.
Descrição do curso no site: "O Programa de
Cibersegurança em Português da UW é uma oportunidade para
estudantes do ensino médio nos Estados Unidos se familiarizarem com os
princípios da Cibersegurança"
Barbara Endicott-Popovsky, diretora da escola de segurança
cibernética da Universidade de Washington,
afirmou
ao site Cybersecurity Guide que, como parte da certificação da
NSA que sua escola detém, ela participa de "vários
comitês nacionais" e trabalha para promover os interesses da NSA em
outras universidades: "Fui designada pela NSA para supervisionar sete
estados, o que me permite fornecer mentorias introdutórias para
universidades e faculdades que desejam desenvolver programas de
segurança cibernética alinhados com a direção
nacional". A escola tem parceria também com empresas que
detêm enormes contratos com as agências de inteligência dos
EUA, como Booz Allen (onde trabalhava o ex-terceirizado da NSA Edward Snowden),
Boeing, IBM e Microsoft, entre outras. A universidade é a
43ª mais militarizada
do país, de acordo com uma investigação publicada em 2015
pela Vice.
O Departamento de Defesa "enfrenta desafios substanciais para atender
às necessidades da força de trabalho altamente qualificada do
guerreiro cibernético",
observa
um estudo de 2015 da Rand Corporation, um
think tank
sem fins lucrativos que atende ao complexo militar-industrial dos EUA.
"Treinar indivíduos a partir de um nível de habilidade zero
é caro e muitas vezes ineficiente, portanto, construir um forte fluxo de
candidatos pode ser benéfico", conclui o estudo, que sugere que
é mais econômico recrutar falantes nativos do que treinar novos
contratados em recursos de guerra cibernética e de linguagem, já
que muitos deles não seguem no serviço governamental por muitos
anos.
"Não é um plano secreto do governo. Não é
isso", diz professor
Eduardo Viana da Silva, professor de português da Universidade de
Washington e líder do programa GenCyber em português disse
à
Pública
em entrevista que, embora o financiamento e as diretrizes curriculares venham
da NSA e da NSF, os cursos são elaborados e ministrados por ele e outros
professores de português interessados em encontrar novas formas de
engajar os jovens.
"Línguas estrangeiras é um desses campos em que você
está sempre lutando para conseguir alunos", disse ele.
"Incorporar algo como segurança cibernética ajuda, do ponto
de vista prático, a atrair alunos".
Segundo Viana da Silva, "grande parte do programa" é "dar
uma janela para alguns caminhos profissionais que os alunos podem explorar no
futuro" na área de segurança cibernética
dentro e fora do governo. "Existem dezenas de milhares de empregos, e eles
simplesmente não têm pessoas qualificadas" com
competências linguísticas suficientes. "Portanto, achamos que
estamos preenchendo uma lacuna de algumas formas, especialmente em
português", afirma o professor.
"Não é um plano secreto do governo. Não é
isso", diz. "Não estamos ensinando como quebrar
códigos. Porque não sabemos. Sou professor de línguas,
não sei quebrar códigos."
Procurada, a NSA não respondeu a todas as perguntas da
Pública
, mas disse que "o programa GenCyber visa abordar o déficit de
profissionais qualificados em segurança cibernética do
país. Ao despertar um interesse precoce em segurança
cibernética em alunos [do ensino fundamental e médio], o programa
GenCyber oferece uma oportunidade para os alunos de todo o país se
tornarem a próxima geração de profissionais
cibernéticos".
Para aumentar a acessibilidade, os cursos foram ministrados também para
"alunos com autismo e alunos com deficiência visual e surdos",
de acordo com o porta-voz.
O português é "fundamental para a segurança nacional
dos EUA"
A Universidade de Washington já havia recebido financiamento da NSA em
2017 para administrar acampamentos de férias de verão em
português para adolescentes como parte de outra iniciativa chamada
"Startalk", projetada para aumentar as habilidades em línguas
críticas entre os futuros militares e a força de trabalho de
inteligência. A página do curso
mostra um vídeo com jovens brasileiros
e outras referências nacionais como a bandeira e o nome de Santos Dumont.
O português é
um dos 65
"idiomas preferidos" considerados "essenciais para a
segurança nacional dos EUA" pelo Departamento de Defesa.
Um estudo acadêmico de 2018
afirma
que "nos Estados Unidos o português vive seus anos dourados desde a
última década". O crescimento é resultado direto da
classificação do português como "língua
crítica" pelo Departamento de Defesa. Os autores argumentam que
essa designação é um "sujeito político em um
contexto político".
Eles escrevem, citando bolsas anteriores, que o "
boom
do ensino da língua portuguesa está diretamente relacionado aos
países da África, Macau e Brasil, já que essas economias e
seus recursos e
commodities
de biodiesel reconfiguram as moedas e fornecem aos alunos a oportunidade de se
localizar como falantes profissionais quase nativos".
19/Julho/2021
act. 21/Agosto/2025
[*]
Editor de The Intercept Brasil.
O original encontra-se em
apublica.org/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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