No século XIX, a China era "o homem doente da Ásia",
no século XXI, os EUA são "o homem doente do Ocidente"
À medida que o poder económico americano continua a declinar,
surgiu uma divisão dentro do sistema político dos EUA sobre qual
dos seus designados adversários se deverá culpar pelas
desgraças do país: a Rússia ou a China. A disputa
atingiu
o auge durante as duas últimas eleições presidenciais, com
o Partido Democrata culpando Moscovo pela derrota chocante de Hillary Clinton
em 2016 devido à "intromissão eleitoral" não
comprovada do Kremlin. Após a vitória igualmente polémica
de Joe Biden sobre Donald Trump em novembro passado, o Partido Republicano
retaliou retratando o 46º presidente como "brando com a China",
tal como os seus opositores tinham criticamente chamado a atenção
para os supostos laços de Trump com a Rússia embora ambos
tenham assumido posições duras para cada um dos respetivos
países.
Em resultado desta atmosfera política neo-macartista, a distensão
internacional foi criminalizada. Para entender o que está a impulsionar
esta guerra entre fações da elite anglo-americana perante
à ascensão da China e da Rússia no cenário mundial,
é necessário revisitar a história das
relações entre as três nações.
Desde o primeiro milénio até o século XIX, a China foi uma
das principais potências económicas do mundo. Hoje, a
República Popular recuperou amplamente essa posição e
até ao final da década deverá ultrapassar os EUA como a
maior economia do mundo
[NT]
, um ganho que pode ser acelerado pela recessão pós-pandemia dos
EUA em comparação com a rápida recuperação
da China. Infelizmente, a atitude ocidental em relação à
China permanece presa no "século da humilhação",
onde, de meados do século XIX até a Revolução
Chinesa em 1949, foi sucessivamente violentada e pilhada pelas potências
imperiais do Ocidente, o Japão e a Rússia.
A razão pela qual o mundo anglófono se apega a esta visão
retrógrada é porque, além desse período
centenário, o Ocidente sempre esteve em segundo plano em
relação à China como o país mais evoluído do
mundo, fornecendo um padrão global em infraestruturas, tecnologia,
governação, agricultura, economia e desenvolvimento. Mesmo no
auge do Império Romano, na dinastia Han, quando a antiga Rota da Seda
começou, a China era muito maior em território e
população.
Durante dois anos consecutivos no início da década de 1930, o
livro de ficção mais vendido nos EUA foi
The Good Earth
, de Pearl S. Buck, que retratava a extrema pobreza e a fome da vida camponesa
rural na China pré-revolucionária. Em muitos aspetos, a imagem da
China na mente ocidental continua sendo composta a partir do romance de Pearl
Buck que ganhou o Prémio Nobel.
O antigo Império Chinês passou pelos "cem anos de
humilhação" depois de sofrer uma série de derrotas
militares nas Guerras do Ópio que financiaram a
industrialização ocidental, após o que a
entrega de territórios e reparações de guerra em Tratados
desiguais deixaram a China subjugada como o "doente da Ásia".
À semelhança da Rússia, que tinha ficado para
trás após a Revolução Industrial da Europa
até aos planos económicos centralizados soviéticos da
década de 1930, a China foi capaz de transformar a sua economia
principalmente agrícola num gigante industrial após a
revolução comunista de 1949.
No entanto, houve apenas um curto período de tempo até à
divisão Sino-Soviética em 1961, quando a China começou a
abrir seu próprio caminho num dos desenvolvimentos geopolíticos
mais mal compreendidos da Guerra Fria.
Em 1956, o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev forneceu no
20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, um
relatório intitulado "Sobre o Culto da Personalidade e suas
Consequências", conhecido como o seu "Discurso Secreto",
onde este político, ucraniano de nascimento, denunciou os excessos do
seu falecido antecessor, Estaline. A notícia do chocante discurso ao
Politburo não apenas polarizou ainda mais um movimento comunista
internacional já dividido entre trotskistas e o Comintern, mas teve
consequências geopolíticas muito para além do seu
pretendido propósito de convencer Washington a diminuir a corrida
armamentista. No início, a China durante a Campanha das Cem Flores,
assumiu uma posição relativamente neutra em relação
às reformas soviéticas, mesmo com Mao a encorajar a URSS a acabar
com a contra-revolução de 1956 na Hungria.
O verdadeiro ponto de viragem nas relações Sino-Soviéticas
deu-se quando começou a conciliação burocrática do
chamado "degelo" de Khrushchev desencorajando os movimentos que
existiam nos países em desenvolvimento vivendo sob ditaduras apoiadas
pelo Ocidente, a pegar em armas na luta revolucionária. Com o apoio de
Enver Hoxha da Albânia, a China começou a criticar ferozmente a
desestalinização e acusou a União Soviética de
"revisionismo" por dar prioridade à paz mundial e evitar uma
guerra nuclear acima do apoio aos movimentos de libertação
nacional, tornando-se assim de facto o líder do "Terceiro
Mundismo" contra o imperialismo ocidental. Moscovo reagiu congelando a
ajuda à China, o que prejudicou muito a sua economia e azedou as
relações entre os dois maiores países socialistas do
mundo, transformando a Guerra Fria num conflito tripartido, já
multifacetado com o Movimento dos Não-Alinhados liderado pela
Jugoslávia após o afastamento de Josep Broz Tito em
relação a Estaline.
Enquanto a RPC continuava a romper com o que Mao via como o desvio da URSS do
marxismo-leninismo, a China trilhou o caminho mais fácil da
Revolução Cultural durante a década de 1960, misturada com
a ascensão da fação do Bando dos Quatro, que deu ainda
mais um passo na política anti-soviética ao condenar a URSS como
"social imperialista" e uma ameaça ainda maior do que o
Ocidente. Isso levou a vários grandes erros na política externa e
a uma completa traição ao internacionalismo, com a China
aliando-se aos EUA no apoio à UNITA contra o MPLA na guerra civil
angolana, aos genocidas Khmer Vermelhos apoiados pela CIA no Camboja contra o
Vietname e aos fascistas do regime de Augusto Pinochet no Chile.
Depois de anos de isolamento internacional, o presidente dos EUA Richard Nixon
e o seu criminoso de guerra, o secretário de Estado Henry Kissinger,
foram recebidos na China como convidados em 1972. Apesar das razões
iniciais para a divisão sino-soviética, ironicamente foi a
União Soviética que acabou carregando o manto da
libertação nacional, com a URSS apoiando numerosas
revoluções socialistas no sul global enquanto a China tomava o
partido do imperialismo.
Em retrospetiva, a conclusão da Guerra Fria com o fim da URSS foi
indiscutivelmente um resultado inevitável da divisão
sino-soviética. Em última análise, erros foram cometidos
por ambos os lados e são reconhecidos pelos dois países hoje,
como pode ser visto na visão histórica negativa de Khrushchev
pelo Partido Comunista da Federação Russa e na denúncia da
Revolução Cultural e do Bando dos Quatro pelo Partido Comunista
da China. Na verdade, a China desde então pediu desculpas a Angola pelo
apoio à UNITA de Jonas Savimbi.
No entanto, a rutura nas relações políticas com Moscovo
também deu início a um processo em que a China desenvolveu a sua
própria interpretação do marxismo-leninismo que divergia
do modelo soviético e acabou permitindo um nível de iniciativa
privada que nunca ocorreu sob a URSS, inclusivamente durante a Nova
Política Económica de curta duração nos anos 1920.
Verdade seja dita, pode ter sido exatamente isto que impediu a China de ter o
mesmo destino.
A partir de 1978, a China começou a abrir sua economia à
iniciativa privada nacional e até mesmo ao capital estrangeiro, mas com
o Partido no poder e o governo mantendo a autoridade final sobre os sectores
público e privado. O resultado da implementação de
reformas orientadas para o mercado, mantendo principalmente a propriedade
estatal da indústria, foi a maravilha económica que vemos hoje,
onde a China se tornou a "fábrica mundial" e potência
global de produção. Durante quatro décadas, o crescimento
real do produto interno bruto da China foi em média quase 10% ao ano e
quase mil milhões de pessoas foram tiradas da pobreza, mas com o capital
sem nunca ultrapassar a autoridade política do PCC.
Infelizmente, o sucesso da reforma de Deng Xiaoping do sistema socialista
chinês não foi replicado pela perestroika
("reestruturação") na URSS sob a liderança de
Mikhail Gorbachev, que falhou completamente em fazer reviver a economia
soviética e acabou supervisionando sua dissolução em 1991.
Durante a década de 1990, a Rússia sofreu um colapso total, pois
as suas empresas anteriormente funcionando de forma planeada foram
desmanteladas pelas mesmas políticas neoliberais que Margaret Thatcher
certa vez expressou como "não há alternativa" (TINA). A
restauração do capitalismo aumentou drasticamente a pobreza, o
desemprego, a mortalidade, sob a "terapia de choque" imposta pelo
FMI, que criou, da noite para o dia, uma nova classe obscenamente rica de
oligarcas russos. Tanto assim, que as fortunas dos
Semibankarschina
("sete banqueiros") foram comparadas aos boiardos da nobreza
czarista dos séculos anteriores.
Esta elite controlava a maior parte dos media do país e financiava as
campanhas eleitorais do presidente pró-Ocidente Boris Yeltsin, que
transformou a economia anteriormente centralizada num sistema de mercado livre.
Assim foi até que o seu notório sucessor assumiu o poder e trouxe
o sector de energia de volta ao controlo do Estado russo, restaurou os
salários, reduziu a pobreza e expulsou investidores estrangeiros
corruptos como Bill Browder. Desnecessário dizer que os EUA não
ficaram satisfeitos com o renascimento bem sucedido da economia russa com
Vladimir Putin porque já estavam a enfrentar um contendor
geopolítico, a China.
16/Março/2021
(continua)
[NT] Em termos de
paridade de poder de compra
(PPP) já em 2017 a China havia ultrapassado tanto os EUA como a UE.
[*]
Jornalista independente e analista geopolítico. Os seus escritos
são divulgados amplamente nos media alternativos. Pode ser contactado em
maxrparry@live.com
O original encontra-se em
www.informationclearinghouse.info/56462.html
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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