Porque vem aí um dilúvio económico global
As pessoas que sabem muito acerca do sistema financeiro mundial estão
cada vez mais preocupadas, e por boas razões. Advertências
sombrias estão a surgir das fontes mais "respeitáveis".
A realidade tornou-se descontrolada. Os demónios da ganância
estão à solta.
O que é esta realidade? Ela inclui um certo número de factores.
Tomados isoladamente seriam excessivamente sérios; combinados, muito
provavelmente serão letais.
Em primeiro lugar, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem estado a
experimentar uma crise tanto estrutural como intelectual. Estruturalmente,
seus créditos e empréstimos em curso declinaram dramaticamente
desde 2003, de mais de US$ 70 mil milhões para pouco mais de US$ 20 mil
milhões hoje, deixando-o com muito menos alavancagem sobre as
políticas económicas de países em desenvolvimento
e também menos rendimento do que o exigido pelas suas dispendiosas
operações. Ele agora está em défice.
[1]
Grande parte dos problemas do FMI devem-se à duplicação
dos preços mundiais de todas as
commodities
desde 2003 especialmente petróleo, cobre, prata, zinco,
níquel e outras exportadas tradicionalmente pelos países
em desenvolvimento. Se bem que haja flutuações nestes aumentos,
há também razões para pensar que eles podem prolongar-se
porque o rápido crescimento económico na China, Índia
criou uma procura florescente que não existia antes, quando as
balanças comerciais sistematicamente favoreciam os países ricos.
Os Estados Unidos viram a sua posição activa externa
líquida cair quando o Japão, a Ásia emergente e
países exportadores de petróleo tornaram-se mais poderosos ao
longo da última década, e tornaram-se cada vez mais credores dos
EUA.
[2]
Como os défices dos EUA crescem, com importações muito
maiores do que exportações, o valor do dólar tem estado a
declinar 28 por cento contra o euro, só entre 2001 e 2005.
Igualmente importante, o FMI e o Banco Mundial foram severamente castigados
pelos colapsos
(meltdowns)
no Extremo Oriente, Rússia e alhures, e muitos dos líderes chave
das duas instituições perderam a fé nas premissas
anárquicas, descendentes pensamento económico clássico do
laisser-faire,
que até então orientavam seu aconselhamento de políticas.
"Nosso conhecimento do crescimento económico é extremamente
incompleto", admite agora muita gente no FMI, e "mais humildade"
da sua parte está agora garantido.
[3]
Pior ainda, toda a natureza do sistema financeiro global mudou radicalmente de
formas que nada têm a ver com as "virtuosas" políticas
económicas nacionais que se seguiam aos conselhos do FMI. São
formas que o FMI não pode controlar. Os administradores de
investimentos de fundos de acções
(equity funds)
privados e os grandes bancos
(majors)
deslocaram bancos nacionais e corpos internacionais tais como o FMI,
movendo-se bem além das estruturas regulatórias existentes e eles
"reintermediaram-se" entre os tomadores de empréstimos
tradicionais, tanto nacionais como individuais, e os mercados. Eles
desregularam a estrutura do mundo financeiro, tornando-a muito mais
imprevisível e sujeita a crises. Eles procuram gerar altos retornos de
investimento, os quais são um factor chave para a sua
compensação e tomam riscos acrescidos para alcançar esse
fim.
Um "admirável mundo novo" emergiu na estrutura financeira
global, um mundo que é de longe menos transparente porque há
menos exigências de relatórios impostas àqueles que nele
operam. Aventureiros financeiros estão constantemente a criar novos
"produtos" que desafiam tanto os estados como os bancos
internacionais. O administrador do FMI, Rodrigo Rato, no fim de Maio de 2005,
deplorou estes novos riscos riscos que a fraqueza do dólar dos
EUA e os seus crescentes défice comerciais ampliaram grandemente.
[4]
Em Março deste ano o FMI divulgou o livro de Garry J. Schinasi,
Safeguarding Financial Stability,
dando-lhe extraordinária na altura e posteriormente. Na
essência, o livro de Schinasi é alarmista e tanto revela como
documenta em grande e perturbador pormenor as profundas ansiedades do FMI.
Essencialmente, "desregulação e
liberalização", que o FMI e os proponentes do "Consenso
de Washington" advogaram durante décadas, tornaram-se um pesadelo,
criando "tremendos benefícios privados e sociais" mas
também possuindo "o potencial (embora não necessariamente
com uma alta probabilidade) para fragilidade, instabilidade, risco
sistémico, e consequências económicas adversas".
Qualquer pessoa que leia os dados no livro soberbamente documentado de Schinasi
partilhará sua conclusão real de que o desenvolvimento irracional
das finanças globais, combinadas com a desregulação e
liberalização, "criou espaço para a
inovação financeira e potenciou a mobilidade dos riscos".
Schinasi e o FMI advogam uma estrutura nova e radical para monitorar e impedir
os problemas que agora podem emergir, mas o êxito "pode ter a ver
demasiado com a boa sorte" assim como com a concepção
política e a vigilância do mercado.
[5]
Deixar o futuro à sorte não é o que a ciência
económica prometera originalmente. O FMI está desesperado, e
não está sozinho.
Como provou o colapso financeiro da Argentina, países que não
sucumbem às pressões do FMI e de banqueiros podem jogar com as
divisões internas do FMI, particularmente os EUA, compreendendo
banqueiros e outros, para evitar muitos, embora dificilmente todas, as
exigências estrangeiras. Cerca de US$ 149 mil milhões em
títulos soberanos para com credores e o FMI estavam em causa, que
terminaram no fim de 2001 no maior incumprimento
(default)
nacional da história. Na década de 1990 os bancos estavam
ansiosos por emprestar dinheiro à Argentina e eles finalmente pagaram
por isso. Desde então, contudo, os preços das commodity subiram
e a taxa de crescimento dos países em desenvolvimento em 2004 e 2005
foram mais do que o dobro daquelas dos países de altos rendimentos, um
padrão que se prevê continuar até 2008.
Já em 2003 os países em desenvolvimento eram a fonte de 37 por
cento do investimento directo estrangeiro em outros países em
desenvolvimento. A China representa uma grande parte deste crescimento, mas
isto também significa que o FMI e o banqueiros ricos de Nova York,
Tóquio e Londres têm muito menos influência do que antes. O
crescimento da complexidade é a ordem da economia mundial que emergiu na
última década, e com isto vem o potencial para muito maior
instabilidade, e perigos para os ricos.
ALTA VELOCIDADE DA CIÊNCIA ECONÓMICA GLOBAL
O problema financeiro global que agora emerge está entremeado
com os défices fiscal e comercial americanos em crescimento
rápido. Desde a entrada de Bush no gabinete, em 2001, ele somou mais
US$ 3
milhões de milhões
(trillion)
aos limites federais de empréstimos, os quais são agora de quase
US$ 9 milhões de milhões. Enquanto houver uma
desvalorização contínua do dólar americano, os
bancos e financeiros
procurarão proteger seu dinheiro e aventuras financeiras arriscadas
parecerão cada vez mais valer a pena. Este é o contexto, mas
Washington advogou maior liberalização financeira bem antes do
enfraquecimento do dólar. O mundo tem agora uma conjunção
de factores que criaram um risco muito maior do que os proponentes do
"Consenso de Washington" alguma vez acreditaram possível.
Agora há muitos fundos de acções
(hedge funds),
com os quais já somos familiares. Mas eles agora negociam em
créditos derivativos
(credit derivatives)
e numerosos outros instrumentos financeiros. Mercados para créditos
derivativos futuros estão iminentes. O mercado de créditos
derivativos era quase inexistente em 2001, cresceu razoavelmente devagar
até 2004 e entrou então na estratosfera, atingindo US$ 17,3
milhões de milhões no fim de 2005.
O que são créditos derivativos? A redactora chefe de mercados de
capitais do
Financial Times,
Gillian Tett, tentou descobrir. Ela fracassou. Cerca de dez anos
atrás alguns banqueiros do J. P. Morgan estavam em Boca Raton, Florida,
a beber, a arremessarem-se uns aos outros dentro da piscina, etc, e eles
pensaram na ideia de um novo instrumento financeiro que era demasiado complexo
para ser facilmente copiado (as ideias financeiras não têm
copyright) e que certamente lhes daria dinheiro. Mas ela foi altamente
crítica quanto aos seu potencial para provocar uma reacção
em cadeia de perdas que engolfariam os fundos de acções que
saltaram para dentro deste mercado.
[6]
É por razões como estas, bem como outras, ainda mais opacas,
tais como cisões em
capital trusts,
obrigações de
dívidas colaterizadas e mercado de permutas de incumprimentos
(market credit default swaps)
que o FMI e as autoridades financeiras estão tão preocupadas.
O bancos simplesmente não entendem a cadeia de exposição e
quem possui o que. Reguladores financeiros de topo e banqueiros agora admitem
isto. O colapso do fundo de acções Long-Term Capital Management
em 1998, que envolveu apenas cerca de US$ 5 mil milhões de
acções, revelou isto. A estrutura financeira é agora
infinitamente mais complexa e muito mais vasta. Só os dez principais
hedge funds
em Março de 2006 tinham US$ 157 mil milhões de activos. Os
hedge funds
afirmam serem honestos mas aqueles que os dirigem são compensados pelos
lucros que conseguem, o que significa assumir riscos. Mas há milhares
de
hedge funds
e muitos recebem informação privilegiada, o que é
tecnicamente ilegal mas acontece de qualquer forma. O sistema está
repleto de perigos, a começar pela estrutura de
compensação, mas também assume um mercado de
acções em ascensão constante e muito, muito mais. Muitos
administradores de fundos são incompetentes. Mas em 2005 cada um dos 26
principais administradores de
hedge funds
ganhou uma média de US$ 363 milhões; James Simons, da
Renaissance Technologies, ganhou US$ 1,5 mil milhões.
Agora há consenso em que tudo isto, e muito mais, criou perigos
crescentes. Podemos por de lado a persistência de desequilíbrios
orçamentais baseados em aumentos de despesas ou cortes fiscais para os
ricos, assim como a volatilidade dos mercados de acções e
commodities
do mundo que em Maio levaram os
hedge funds
a apresentarem retornos muito mais baixos do que haviam feito no ano passado.
É o que qualquer um imagina que pode acontecer nos mercados, alguns
ganharão enquanto outros perderão. Os
hedge funds
ainda fazem um bocado de lucro, e na primavera de 2006 eles valiam cerca de
US$ 1,2 milhões de milhões
(trillion),
mas são cada vez mais perigosos.
Foi bastante dinheiro de investidores em países ricos para mercados
emergentes de acções, os quais foram duramente golpeados nas
últimas semanas, e se eles os deixarem o choque financeiro será
grande. Os perigos de um colapso também estão ali.
Os problemas são estruturais, tais como o rácio em grande
crescimento entre encargos de dívida corporativa e rendimentos das
operações principais
(core earnings),
os quais cresceram substancialmente de quatro a seis vezes ao longo do ano
passado porque há menos cláusulas legais para proteger
investidores de perdas, e para impedir companhias de irem à bancarrota
quando deveriam. Enquanto as taxas de juro estiveram baixas, os
empréstimos alavancados
(leveraged loans)
foram a solução. Com os
hedge funds
e outros instrumentos financeiros, há agora um mercado para firmas
incompetentes, pejadas de dívidas. As regras que outrora alguns
associavam erradamente com o capitalismo probidade e afins
não mais vigoram, mesmo no papel.
Os problemas também são inerentes à velocidade e
complexidade, e estes são muito diversos e quase surrealistas. Os
créditos derivativos são bastante precários, mas no fim de
Maio a International Swaps and Derivatives Association revelou que um em cada
cinco negócios, muitos deles envolvendo milhares de milhões de
dólares, envolviam grandes erros. Na medida em que aumentou o volume de
comércio assim aumentaram os erros. Eles duplicaram no período
pós 2004. Muitos negócios foram garatujados sobre pedaços
de papel e não registados adequadamente. "Inescrupuloso"
("unconscionable")
foi a descrição do ex-presidente do Fed, Alan Greenspan. Ele
declarou-se "francamente chocado". Outras transacções,
no
entanto, são determinadas por algoritmos matemáticos
("preço médio ponderado pelo volume", assim se
chamam) para os quais são contratados PhDs treinados em métodos
quantitativos.
[7]
Os esforços para remediar esta confusão só
começaram em Junho deste ano e estão muito longe de resolver um
problema grande e acumulado que envolve somas assombrosas.
Stephen Roach, economista chefe da Morgan Stanley, em 24 de Abril deste ano
escreveu que uma grande crise financeira estava iminente e que a capacidade das
instituições globais para impedi-la que vão desde o
FMI e Banco Mundial até outros mecanismos da arquitectura financeira
internacional são absolutamente inadequados. No princípio
de Junho o secretário chefe de Hong Kong lamentou os riscos e perigos
dos
hedge funds.
O iconoclasta economista chefe do FMI, Raghuram Rajan, advertiu ao mesmo
tempo que a estrutura de compensação dos
hedge funds
encorajava aqueles que os dirigiam a assumir riscos cada vez maiores, pondo
assim em perigo a totalidade do sistema financeiro.
Toda a estrutura financeira global está a tornar-se incontrolável
em aspectos cruciais que os seus líderes nominais nunca esperaram. A
instabilidade é, cada vez mais, a sua característica
inconfundível. A liberalização financeira produziu um
monstro, e resolver os muitos problemas que emergiram é dificilmente
possível para aqueles que recusam controles sobre os que querem
ganhar dinheiro por quaisquer meios. As
contradições actuais arruinam o sistema financeiro mundial, e se
acreditarmos nas instituições e personalidades que estão
na vanguarda da defesa do capitalismo, podemos muito bem estar à
beira de uma crise séria.
15/Junho/2006
[*]
Gabriel Kolko é um dos principais historiadores da guerra moderna.
É
autor do clássico
Century of War: Politics, Conflicts and Society Since 1914
e
Another Century of War?
Também escreveu uma das melhores histórias da Guerra do Vietnam,
Anatomy of a War: Vietnam, the US and the Modern Historical Experience.
Seu último livro,
The Age of War
,
foi publicado em Março de 2006. Contacto:
kolko@counterpunch.org
.
Notas
1-
IMF Survey,
March 13, 2006, p. 66.
2- Philip R. Lane and G. M. Milesi-Ferretti, "Examining Global
Imbalances,"
Finance & Development,
March 2006, pp. 38-41.
3- Roberto Zagha et al, "Rethinking Growth,"
Finance & Development,
March 2006, p. 11.
4- Raghuram Rajan, in
Finance & Development,
September 2005, pp. 54, 58; IMF Survey, May 29, 2006, p. 147.
5- Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability: Theory and Practice,
pp. 8, 14, 17.
6- Gillian Tett, "The dream machine,"
Financial Times
magazine, March 25/26, 2006, pp. 20-26. Also
Financial Times,
March 20, 2006.
7-
Financial Times,
May 31, 2006; June 8, 2006.
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/kolko06152006.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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