Porque vem aí um dilúvio económico global

por Gabriel Kolko [*]

As pessoas que sabem muito acerca do sistema financeiro mundial estão cada vez mais preocupadas, e por boas razões. Advertências sombrias estão a surgir das fontes mais "respeitáveis". A realidade tornou-se descontrolada. Os demónios da ganância estão à solta.

O que é esta realidade? Ela inclui um certo número de factores. Tomados isoladamente seriam excessivamente sérios; combinados, muito provavelmente serão letais.

Em primeiro lugar, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem estado a experimentar uma crise tanto estrutural como intelectual. Estruturalmente, seus créditos e empréstimos em curso declinaram dramaticamente desde 2003, de mais de US$ 70 mil milhões para pouco mais de US$ 20 mil milhões hoje, deixando-o com muito menos alavancagem sobre as políticas económicas de países em desenvolvimento – e também menos rendimento do que o exigido pelas suas dispendiosas operações. Ele agora está em défice. [1]

Grande parte dos problemas do FMI devem-se à duplicação dos preços mundiais de todas as commodities desde 2003 – especialmente petróleo, cobre, prata, zinco, níquel e outras – exportadas tradicionalmente pelos países em desenvolvimento. Se bem que haja flutuações nestes aumentos, há também razões para pensar que eles podem prolongar-se porque o rápido crescimento económico na China, Índia criou uma procura florescente que não existia antes, quando as balanças comerciais sistematicamente favoreciam os países ricos.

Os Estados Unidos viram a sua posição activa externa líquida cair quando o Japão, a Ásia emergente e países exportadores de petróleo tornaram-se mais poderosos ao longo da última década, e tornaram-se cada vez mais credores dos EUA. [2] Como os défices dos EUA crescem, com importações muito maiores do que exportações, o valor do dólar tem estado a declinar – 28 por cento contra o euro, só entre 2001 e 2005.

Igualmente importante, o FMI e o Banco Mundial foram severamente castigados pelos colapsos (meltdowns) no Extremo Oriente, Rússia e alhures, e muitos dos líderes chave das duas instituições perderam a fé nas premissas anárquicas, descendentes pensamento económico clássico do laisser-faire, que até então orientavam seu aconselhamento de políticas. "Nosso conhecimento do crescimento económico é extremamente incompleto", admite agora muita gente no FMI, e "mais humildade" da sua parte está agora garantido. [3]

Pior ainda, toda a natureza do sistema financeiro global mudou radicalmente de formas que nada têm a ver com as "virtuosas" políticas económicas nacionais que se seguiam aos conselhos do FMI. São formas que o FMI não pode controlar. Os administradores de investimentos de fundos de acções (equity funds) privados e os grandes bancos (majors) deslocaram bancos nacionais e corpos internacionais tais como o FMI, movendo-se bem além das estruturas regulatórias existentes e eles "reintermediaram-se" entre os tomadores de empréstimos tradicionais, tanto nacionais como individuais, e os mercados. Eles desregularam a estrutura do mundo financeiro, tornando-a muito mais imprevisível e sujeita a crises. Eles procuram gerar altos retornos de investimento, os quais são um factor chave para a sua compensação e tomam riscos acrescidos para alcançar esse fim.

Um "admirável mundo novo" emergiu na estrutura financeira global, um mundo que é de longe menos transparente porque há menos exigências de relatórios impostas àqueles que nele operam. Aventureiros financeiros estão constantemente a criar novos "produtos" que desafiam tanto os estados como os bancos internacionais. O administrador do FMI, Rodrigo Rato, no fim de Maio de 2005, deplorou estes novos riscos – riscos que a fraqueza do dólar dos EUA e os seus crescentes défice comerciais ampliaram grandemente. [4]

Em Março deste ano o FMI divulgou o livro de Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability, dando-lhe extraordinária na altura e posteriormente. Na essência, o livro de Schinasi é alarmista e tanto revela como documenta em grande e perturbador pormenor as profundas ansiedades do FMI. Essencialmente, "desregulação e liberalização", que o FMI e os proponentes do "Consenso de Washington" advogaram durante décadas, tornaram-se um pesadelo, criando "tremendos benefícios privados e sociais" mas também possuindo "o potencial (embora não necessariamente com uma alta probabilidade) para fragilidade, instabilidade, risco sistémico, e consequências económicas adversas".

Qualquer pessoa que leia os dados no livro soberbamente documentado de Schinasi partilhará sua conclusão real de que o desenvolvimento irracional das finanças globais, combinadas com a desregulação e liberalização, "criou espaço para a inovação financeira e potenciou a mobilidade dos riscos". Schinasi e o FMI advogam uma estrutura nova e radical para monitorar e impedir os problemas que agora podem emergir, mas o êxito "pode ter a ver demasiado com a boa sorte" assim como com a concepção política e a vigilância do mercado. [5] Deixar o futuro à sorte não é o que a ciência económica prometera originalmente. O FMI está desesperado, e não está sozinho.

Como provou o colapso financeiro da Argentina, países que não sucumbem às pressões do FMI e de banqueiros podem jogar com as divisões internas do FMI, particularmente os EUA, compreendendo banqueiros e outros, para evitar muitos, embora dificilmente todas, as exigências estrangeiras. Cerca de US$ 149 mil milhões em títulos soberanos para com credores e o FMI estavam em causa, que terminaram no fim de 2001 no maior incumprimento (default) nacional da história. Na década de 1990 os bancos estavam ansiosos por emprestar dinheiro à Argentina e eles finalmente pagaram por isso. Desde então, contudo, os preços das commodity subiram e a taxa de crescimento dos países em desenvolvimento em 2004 e 2005 foram mais do que o dobro daquelas dos países de altos rendimentos, um padrão que se prevê continuar até 2008.

Já em 2003 os países em desenvolvimento eram a fonte de 37 por cento do investimento directo estrangeiro em outros países em desenvolvimento. A China representa uma grande parte deste crescimento, mas isto também significa que o FMI e o banqueiros ricos de Nova York, Tóquio e Londres têm muito menos influência do que antes. O crescimento da complexidade é a ordem da economia mundial que emergiu na última década, e com isto vem o potencial para muito maior instabilidade, e perigos para os ricos.

ALTA VELOCIDADE DA CIÊNCIA ECONÓMICA GLOBAL

O problema financeiro global que agora emerge está entremeado com os défices fiscal e comercial americanos em crescimento rápido. Desde a entrada de Bush no gabinete, em 2001, ele somou mais US$ 3 milhões de milhões (trillion) aos limites federais de empréstimos, os quais são agora de quase US$ 9 milhões de milhões. Enquanto houver uma desvalorização contínua do dólar americano, os bancos e financeiros procurarão proteger seu dinheiro e aventuras financeiras arriscadas parecerão cada vez mais valer a pena. Este é o contexto, mas Washington advogou maior liberalização financeira bem antes do enfraquecimento do dólar. O mundo tem agora uma conjunção de factores que criaram um risco muito maior do que os proponentes do "Consenso de Washington" alguma vez acreditaram possível.

Agora há muitos fundos de acções (hedge funds), com os quais já somos familiares. Mas eles agora negociam em créditos derivativos (credit derivatives) e numerosos outros instrumentos financeiros. Mercados para créditos derivativos futuros estão iminentes. O mercado de créditos derivativos era quase inexistente em 2001, cresceu razoavelmente devagar até 2004 e entrou então na estratosfera, atingindo US$ 17,3 milhões de milhões no fim de 2005.

O que são créditos derivativos? A redactora chefe de mercados de capitais do Financial Times, Gillian Tett, tentou descobrir. Ela fracassou. Cerca de dez anos atrás alguns banqueiros do J. P. Morgan estavam em Boca Raton, Florida, a beber, a arremessarem-se uns aos outros dentro da piscina, etc, e eles pensaram na ideia de um novo instrumento financeiro que era demasiado complexo para ser facilmente copiado (as ideias financeiras não têm copyright) e que certamente lhes daria dinheiro. Mas ela foi altamente crítica quanto aos seu potencial para provocar uma reacção em cadeia de perdas que engolfariam os fundos de acções que saltaram para dentro deste mercado. [6] É por razões como estas, bem como outras, ainda mais opacas, tais como cisões em capital trusts, obrigações de dívidas colaterizadas e mercado de permutas de incumprimentos (market credit default swaps) que o FMI e as autoridades financeiras estão tão preocupadas.

O bancos simplesmente não entendem a cadeia de exposição e quem possui o que. Reguladores financeiros de topo e banqueiros agora admitem isto. O colapso do fundo de acções Long-Term Capital Management em 1998, que envolveu apenas cerca de US$ 5 mil milhões de acções, revelou isto. A estrutura financeira é agora infinitamente mais complexa e muito mais vasta. Só os dez principais hedge funds em Março de 2006 tinham US$ 157 mil milhões de activos. Os hedge funds afirmam serem honestos mas aqueles que os dirigem são compensados pelos lucros que conseguem, o que significa assumir riscos. Mas há milhares de hedge funds e muitos recebem informação privilegiada, o que é tecnicamente ilegal mas acontece de qualquer forma. O sistema está repleto de perigos, a começar pela estrutura de compensação, mas também assume um mercado de acções em ascensão constante e muito, muito mais. Muitos administradores de fundos são incompetentes. Mas em 2005 cada um dos 26 principais administradores de hedge funds ganhou uma média de US$ 363 milhões; James Simons, da Renaissance Technologies, ganhou US$ 1,5 mil milhões.

Agora há consenso em que tudo isto, e muito mais, criou perigos crescentes. Podemos por de lado a persistência de desequilíbrios orçamentais baseados em aumentos de despesas ou cortes fiscais para os ricos, assim como a volatilidade dos mercados de acções e commodities do mundo que em Maio levaram os hedge funds a apresentarem retornos muito mais baixos do que haviam feito no ano passado. É o que qualquer um imagina que pode acontecer nos mercados, alguns ganharão enquanto outros perderão. Os hedge funds ainda fazem um bocado de lucro, e na primavera de 2006 eles valiam cerca de US$ 1,2 milhões de milhões (trillion), mas são cada vez mais perigosos.

Foi bastante dinheiro de investidores em países ricos para mercados emergentes de acções, os quais foram duramente golpeados nas últimas semanas, e se eles os deixarem o choque financeiro será grande. Os perigos de um colapso também estão ali.

Os problemas são estruturais, tais como o rácio em grande crescimento entre encargos de dívida corporativa e rendimentos das operações principais (core earnings), os quais cresceram substancialmente de quatro a seis vezes ao longo do ano passado porque há menos cláusulas legais para proteger investidores de perdas, e para impedir companhias de irem à bancarrota quando deveriam. Enquanto as taxas de juro estiveram baixas, os empréstimos alavancados (leveraged loans) foram a solução. Com os hedge funds e outros instrumentos financeiros, há agora um mercado para firmas incompetentes, pejadas de dívidas. As regras que outrora alguns associavam erradamente com o capitalismo – probidade e afins – não mais vigoram, mesmo no papel.

Os problemas também são inerentes à velocidade e complexidade, e estes são muito diversos e quase surrealistas. Os créditos derivativos são bastante precários, mas no fim de Maio a International Swaps and Derivatives Association revelou que um em cada cinco negócios, muitos deles envolvendo milhares de milhões de dólares, envolviam grandes erros. Na medida em que aumentou o volume de comércio assim aumentaram os erros. Eles duplicaram no período pós 2004. Muitos negócios foram garatujados sobre pedaços de papel e não registados adequadamente. "Inescrupuloso" ("unconscionable") foi a descrição do ex-presidente do Fed, Alan Greenspan. Ele declarou-se "francamente chocado". Outras transacções, no entanto, são determinadas por algoritmos matemáticos ("preço médio ponderado pelo volume", assim se chamam) para os quais são contratados PhDs treinados em métodos quantitativos. [7] Os esforços para remediar esta confusão só começaram em Junho deste ano e estão muito longe de resolver um problema grande e acumulado que envolve somas assombrosas.

Stephen Roach, economista chefe da Morgan Stanley, em 24 de Abril deste ano escreveu que uma grande crise financeira estava iminente e que a capacidade das instituições globais para impedi-la – que vão desde o FMI e Banco Mundial até outros mecanismos da arquitectura financeira internacional – são absolutamente inadequados. No princípio de Junho o secretário chefe de Hong Kong lamentou os riscos e perigos dos hedge funds. O iconoclasta economista chefe do FMI, Raghuram Rajan, advertiu ao mesmo tempo que a estrutura de compensação dos hedge funds encorajava aqueles que os dirigiam a assumir riscos cada vez maiores, pondo assim em perigo a totalidade do sistema financeiro.


Toda a estrutura financeira global está a tornar-se incontrolável em aspectos cruciais que os seus líderes nominais nunca esperaram. A instabilidade é, cada vez mais, a sua característica inconfundível. A liberalização financeira produziu um monstro, e resolver os muitos problemas que emergiram é dificilmente possível para aqueles que recusam controles sobre os que querem ganhar dinheiro por quaisquer meios. As contradições actuais arruinam o sistema financeiro mundial, e se acreditarmos nas instituições e personalidades que estão na vanguarda da defesa do capitalismo, podemos muito bem estar à beira de uma crise séria.

15/Junho/2006

Clique a imagem para encomendar. [*] Gabriel Kolko é um dos principais historiadores da guerra moderna. É autor do clássico Century of War: Politics, Conflicts and Society Since 1914 e Another Century of War? Também escreveu uma das melhores histórias da Guerra do Vietnam, Anatomy of a War: Vietnam, the US and the Modern Historical Experience. Seu último livro, The Age of War , foi publicado em Março de 2006. Contacto: kolko@counterpunch.org .

Notas

1- IMF Survey, March 13, 2006, p. 66.
2- Philip R. Lane and G. M. Milesi-Ferretti, "Examining Global Imbalances," Finance & Development, March 2006, pp. 38-41.
3- Roberto Zagha et al, "Rethinking Growth," Finance & Development, March 2006, p. 11.
4- Raghuram Rajan, in Finance & Development, September 2005, pp. 54, 58; IMF Survey, May 29, 2006, p. 147.
5- Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability: Theory and Practice, pp. 8, 14, 17.
6- Gillian Tett, "The dream machine," Financial Times magazine, March 25/26, 2006, pp. 20-26. Also Financial Times, March 20, 2006.
7- Financial Times, May 31, 2006; June 8, 2006.


O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/kolko06152006.html

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18/Jun/06