A falsa lenda de Paul Volcker
por F. William Engdahl
[*]
Paul Volcker, ex-governador nos anos 80 do banco central dos EUA, o Federal
Reserve, morreu aos 92 anos. Os grandes media estão a escrever elogios
ao banqueiro que "matou a inflação" após as
crises do petróleo e dos preços dos alimentos nos anos 70.
Mas o verdadeiro legado de Volcker é muito menos positivo.
Ninguém fez mais para provocar o disfuncional sistema financeiro cheio
de dívidas que temos hoje do que o ex-economista do Chase Manhattan Bank
que passou a maior parte de sua vida ao serviço da mais poderosa
família de oligarcas da América.
Dois grandes eventos definem o verdadeiro legado da Volcker. O primeiro foi em
Agosto de 1971, quando ele era um alto funcionário do Tesouro dos EUA no
governo Nixon. O segundo foi como presidente do Fed no governo Jimmy Carter,
desde Outubro de 1979. Ambos definem os acontecimentos que levaram à
desindustrialização dos Estados Unidos e ao colapso
económico da maior parte do mundo em desenvolvimento, principiado
há quatro décadas atrás.
A ruptura com o ouro
Durante a década de 1960, começou uma grave crise de
subinvestimento na a economia dos EUA. Indústrias de classe mundial
construídas durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, do
aço ao alumínio e aos carros de Detroit, precisavam urgentemente
de modernização e investimento. A Europa reconstruiu sua
indústria após a devastação da guerra e,
especialmente, a Alemanha e a França estavam a competir com os EUA no
mercado mundial, com a sua indústria de ponta, muitas vezes mais
avançada. Suas economias obtinham superávites em dólares
com as suas exportações. O problema era que esses dólares
não eram mais apoiados pela economia mais forte do mundo.
No início da década de 1960, quando a Europa começou a
crescer a taxas superiores às dos Estados Unidos, estava a ficar claro
para muitos que algo tinha que ser mudado no arranjo fixado em Bretton Woods.
Mas Washington, sob a crescente influência da poderosa comunidade
bancária de Nova York, liderada pelo Citibank e pelo Chase Manhattan
Bank de David Rockefeller, recusou-se a seguir as mesmas regras que impusera a
seus aliados em 1944. Bancos de Nova York começaram a investir no
exterior em novas fontes de maiores lucros. Esse vasto fluxo de saída de
capital de investimento vital transformou a década de 1960 numa
sucessão de crises monetárias internacionais cada vez mais graves.
Bancos internacionais de Nova York estavam a ganhar enormes lucros ao deixarem
de investir no futuro dos Estados Unidos. Entre 1962 e 1965,
corporações americanas na Europa ocidental obtiveram um retorno
entre 12 e 14%, de acordo com um Relatório Presidencial ao Congresso de
Janeiro de 1967, o dobro do que obteriam com investimento na indústria
dos EUA. No final da década de 1960, os bancos centrais europeus
mantinham grandes excedentes em dólares do comércio e dos
investimentos e eram instados por Washington a não resgatá-los
por ouro como permitido pelo [Acordo de] Bretton Woods.
O presidente francês Charles de Gaulle, seguindo o conselho de seu
estratega económico Jacques Rueff, criticou o governo Johnson por
ignorar o acordo de Bretton Woods de 1944, recusando-se a reavaliar o
preço do ouro em dólares. Rueff havia proposto uma
desvalorização de 100% do dólar para restaurar a
justiça e a estabilidade da ordem monetária. A Wall Street e o
governo de Washington rejeitaram qualquer coisa desse tipo. Reduziria o poder
dos bancos internacionais dos EUA.
Bretton Woods estabelecia um padrão ouro para trocas
(Gold Exchange Standard)
que fixava todas as moedas ao dólar americano e apenas o dólar ao
ouro ao preço fixo de US$35, o qual era mantido desde a Grande
Depressão
na década de 1930. Em 1944, os EUA eram de longe o líder
industrial mundial e detinham a grande maioria do ouro dos bancos centrais; de
modo que Bretton Woods era relutantemente aceito pelos outros países.
Mas na década de 1960, ao explodirem os défices
orçamentais dos EUA, causados principalmente pelos custos crescentes da
guerra no Vietname, eles de facto exportaram a inflação do
dólar para aliados dos EUA. A partir de meados dos anos 60, os
principais países, liderados pela França e depois pela Alemanha,
começaram a exigir que o Federal Reserve dos EUA resgatasse seus
excedentes comerciais em dólar pelo ouro do Fed de Nova York, o
guardião do ouro do governo dos EUA.
Em 1959, o passivo externo dos Estados Unidos ainda se aproximava do valor
total de suas reservas oficiais de ouro. Em 1967, o total de passivos externos
dos EUA havia subido para três vezes a reserva de ouro a US$35 por
onça [troy]. Os bancos europeus e outros bancos centrais
começaram a resgatar seus dólares e exigir ouro ao governo dos
EUA. Em 1967, a França decidiu trocar suas reservas em dólar e em
libra esterlina por ouro, abandonando o arranjo voluntário do
pool gold
de 1961 do Grupo dos 10. Em 1971, com Nixon como presidente, a crise do
dólar estava cada vez mais insustentável, pois o ouro oficial
caíra para apenas 25% do passivo externo dos EUA. Se todos os detentores
de dólar exigissem ouro, os EUA não poderiam resgatar. Com os
preços do ouro nos mercados mundiais a subirem dia a dia, os detentores
de dólares exigiam ouro dos EUA pelo papel[-moeda]. Jacques Rueff
continuou a pedir um preço do ouro de US$70, argumentando que isso
acalmaria a especulação e permitiria aos EUA resgatarem os saldos
do Eurodólar no exterior, causando graves danos económicos aos
EUA. Isso tornaria as exportações industriais dos EUA muito mais
competitivas e dispararia um renascimento da indústria americana, como
ele bem argumentou.
Ao invés disso Nixon seguiu o conselho de seu Departamento do Tesouro e,
notavelmente, o do subsecretário de Assuntos Monetários
Internacionais, Paul Adolph Volcker. Volcker chegara ao Tesouro vindo do cargo
de vice-presidente do Chase Manhattan Bank, de David Rockefeller. Os caminhos
de David Rockefeller e de Volcker iriam cruzar-se continuamente nas
décadas seguintes.
Em 15 de Agosto de 1971, Nixon anunciou a suspensão formal da
conversibilidade do dólar em ouro, colocando efectivamente o mundo
totalmente em um padrão de dólar fiduciário
(fiat dollar standard)
sem lastro ouro. Ele rasgou unilateralmente o acordo do tratado de Bretton
Woods e o mundo foi forçado a engolir as enormes consequências
negativas das taxas de câmbio flutuantes.
Quatro meses depois, num compromisso conhecido como Acordo Smithsonian, a que
Nixon chamou de "o acordo monetário mais significativo da
história do mundo" (sic), os Estados Unidos desvalorizaram
formalmente o dólar nuns meros 8% em relação ao ouro,
colocando o ouro em US$38, em vez dos US$35, uma jogada sem sentido. A Wall
Street havia derrotado o cidadão comum e a indústria dos EUA.
Isto foi o início real da desindustrialização americana em
favor do que posteriormente seria chamado de
"globalização". Anos depois, Volcker chamaria seu papel
na suspensão da conversibilidade do ouro, "o evento único
mais importante da sua carreira".
Em 1973, o secretário de Estado de Nixon, Henry Kissinger, outro
protegido do Rockefeller, orquestrou eventos que irromperam na Guerra do Yom
Kippur em Outubro de 1973, uma guerra que foi realmente manipulada para
desencadear um embargo de petróleo da OPEP que elevaria o preço
da mais valiosa mercadoria do mundo em 400% num prazo de meses. O dólar,
embora poucos entendessem, passou de uma divisa com lastro ouro para uma divisa
com lastro no petrodólar. Washington garantiu que a OPEP venderia
petróleo apenas em dólares, um pacto que se manteve até
Saddam Hussein rompê-lo décadas depois. O papel de Paul Volcker,
em Agosto de 1971, de dissociar o dólar do ouro, foi fundamental para a
estratégia da Petrodólar. A Arábia Saudita, o Irão
e outros membros da OPEP reciclavam seus enormes ganhos em petrodólares
para Londres, onde o Chase Manhattan e outros bancos de Nova York e Londres o
atribuíam a países em desenvolvimento a baixas taxas de juros
"flutuantes".
Presidente do Fed 'mata' inflação
Em 1979, o dólar estava numa nova crise, pois o derrube do xá no
Irão levou a um segundo grande aumento no preço do
petróleo e a uma crise no dólar. Um perturbado Jimmy Carter foi
convencido pelo seu bom amigo David Rockefeller a nomear Paul Volcker como
governador do Fed a fim de acalmar os mercados e estabilizar o dólar.
Volcker deixara Washington em 1974 para se tornar presidente do Federal Reserve
de Nova York. Ele também foi um dos membros fundadores da altamente
influente e pouco conhecida Comissão Trilateral de David Rockefeller,
juntamente com Zbigniew Brzezinski e um produtor de amendoim da Geórgia
chamado
Jimmy Carter. Carter devia sua Presidência a David Rockefeller e encheu
seu gabinete com membros da Trilateral.
Quando Volcker assumiu o controle do Federal Reserve, em Outubro de 1979,
desencadeou um choque monetário que levou as taxas de juros do Fed a 20%
em semanas e mergulhou a economia americana no mais grave colapso desde a
década de 1930. Ele alegou que era necessário "expulsar a
inflação para fora do sistema". Volcker atribuiu a culpa da
inflação aos sindicatos e pequenos produtores que estavam
simplesmente a lutar para acompanhar a ascensão dos preços da
energia e dos alimentos.
Quando em 1971Volcker convenceu Nixon a romper com o ouro, isso disparou o
primeiro aumento da inflação pós-1945 pois o valor do
dólar afundou, tornando mais altos os preços das
importações. Nixon tentou impedi-lo com o controle dos
preços dos salários em 1971. Isso restringiu a actividade
comercial, diminuindo o crescimento.
Antes de Carter se tornar presidente em 1977, Nixon ordenara ao Fed que se
livrasse dos efeitos do petróleo e dos alimentos no Índice de
Preços no Consumidor. O resultado foi o número falso conhecido
como "núcleo da inflação"
("core inflation")
, menos petróleo e alimentos. Nas suas acções sobre taxas
de juros após Outubro de 1979, Volcker nunca mencionou que a verdadeira
inflação proveio das maquinações de David
Rockefeller na década de 70 com a OPEP. Em vez disso, ele argumentou que
o problema era o aumento do padrão de vida da população.
Ao defender sua controversa terapia de choque monetário, Volcker disse
notavelmente a David McNally do
New York Times:
"O padrão de vida americano deve declinar".
Declínio certamente ocorreu, pois a economia foi mergulhada em profunda
recessão de 1980 a 1982, com o desemprego acima de 10%, com o
aprofundamento de bancarrotas na construção, agricultura e
indústria. Em 1982, as altas taxas de juros do dólar haviam
devastado toda a economia mundial devido ao primado do dólar. Isso
desencadeou o que ficou conhecido como a crise da dívida do Terceiro
Mundo, desde o México, Argentina, Brasil, Jugoslávia,
Polónia e outros países. A política de taxas de juros de
Volcker combinada com sua dissociação do dólar em
relação ao ouro preparou o cenário para o que foi a maior
de todas a inflações, a inflação mundial de 1971
até hoje. Entre 1971 e o início dos anos 90, logo após
Volcker deixar o Fed, o volume de dólares em circulação
mundial expandiu-se mais de 2.500%, pois o ouro já não limitava
mais a criação de dólares.
Paul Volcker deve ser recordado, mas por aquilo que ele realmente fez e
não pela mitologia inventada pelos seus apoiantes na Wall Street. Toda a
sua carreira, assim como a do seu associado de longa data, Kissinger, esteve
ligada aos Rockefellers. Volcker deixou o Fed em 1987 e foi nomeado para o
Trust Commitee do Rockefeller Group. Ele foi membro desde longa data dos grupos
Bilderberg e Trilateral Commission, fundados por Rockefeller, bem como presidiu
a empresa de investimentos da Wall Street, Wolfensohn & Co., de James D.
Wolfensohn, que posteriormente se tornou presidente do Banco Mundial. Se
traçarmos as acções reais de Paul Volcker desde 1971
entenderemos melhor as origens da crise da economia mundial nos dias de hoje.
14/Dezembro/2019
Ver também:
Paul Volcker’s Long Shadow
, de Ellen Brown
[*]
Licenciado em política pela Universidade de Princeton, autor de
numerosos livros sobre petróleo e geopolítica. Ver
Books Depository
.
O original encontra-se em
https://journal-neo.org/2019/12/14/the-bogus-legend-of-paul-volcker/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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