A frase pertence a Vitória Nuland, secretária de Estado Adjunta norte-americana, e foi proferida em 2014, no rescaldo do golpe de Estado na Ucrânia, por ela orquestrado e dirigido, durante uma conversa telefónica com o embaixador norte-americano em Kiev, na qual dava indicações sobre a composição do novo governo ucraniano. Falamos da mesma pessoa que disse “temos [EUA] de infligir uma derrota geoestratégica à Rússia na Ucrânia”.
Têm sido muitas as desconsiderações com que Washington tem brindado os seus aliados europeus. É conhecida a parceria estabelecida entre a NSA e os serviços de inteligência dinamarqueses para intercetarem telefonemas de altos dignitários de vários países europeus. Escândalos varridos para debaixo do tapete. Apesar da sobranceria e arrogância com que são tratados, os europeus têm-se mostrado complacentes e servis.
Washington sempre receou a possibilidade de a Europa se transformar num polo de poder geostratégico concorrente. Um receio infundado, uma vez que as divergências existentes no seio da Europa impossibilitariam que isso alguma vez viesse a acontecer. Por a Alemanha ser o país com melhores condições para liderar esse projeto, tornou-se um alvo das atenções de Washington, que não ficou nada tranquila quando a Chanceler Angela Merkel, em 2017, referiu que “a Europa tinha de tomar o seu destino nas suas mãos”.
Inserido nestas considerações, junta-se a importância geopolítica do Nordstream 2. A imagem do obediente Chanceler Scholtz na conferência de imprensa conjunta, em Washington, com o Presidente Biden a dizer que o Nordstream 2 não ia avançar, é bem ilustrativa da relação de poder/subordinação mantida por Washington com os seus parceiros europeus.
Os desenvolvimentos iniciados na Ucrânia em 2014, que desembocaram na guerra iniciada a 24 de fevereiro de 2022, consequência da política de porta aberta da NATO, foram um resultado do cerco que os EUA pretendem montar à Rússia, utilizando a Ucrânia como base avançada. Apesar dos repetidos avisos sobre os perigos dessa estratégia e à mais do que previsível reação russa, os liberais intervencionistas, instalados no Departamento de Estado, desprezaram-nos, criando objetivamente as condições que nos conduziram à situação em que nos encontramos hoje.
Esse projeto, para além de fazer a Rússia ajoelhar-se, visa também minar as ambições de autonomia estratégica europeia, tendo como principal alvo a Alemanha, o país mais bem colocado para liderar esse projeto.
Com o aumento dos preços dos hidrocarbonetos, o modelo em que assenta o desenvolvimento económico alemão — energia russa barata que permitiu uma indústria alemã competitiva – poderá ter sido colocado em causa. O mesmo racional se aplica às restantes economias europeias, que perderão competitividade em benefício de economias situadas noutras latitudes.
Sem recursos minerais, a Europa fica agora privada de aceder a minerais chave (cobalto, paládio, níquel e alumínio) de que tanto necessita para o seu desenvolvimento. Em contrapartida, as empresas americanas poderão vir a beneficiar largamente com as sanções draconianas impostas à Rússia, nomeadamente aquelas no domínio energético e das matérias-primas.
Se a crise financeira de 2008 contribuiu seriamente para aumentar o fosso que separava os EUA da União Europeia (em 2008, a economia da UE era ligeiramente maior do que a norte-americana: $16,2 triliões para $14,7 triliões. Em 2020, a economia norte-americana cresceu para $20,9 triliões e a europeia desceu para $15,7 triliões. De uma relativa paridade em 2008, a economia norte-americana é agora um terço maior do que a europeia e inglesa juntas, a guerra na Ucrânia pode ter vindo aprofundar essa tendência, assim como o desequilíbrio existente entre as duas margens do Atlântico.
Há fortes indícios de que a posição da Europa na ordem internacional que emergirá desta guerra não melhorará. A inflação e a depressão económica que se avizinham alimentarão a contestação e a radicalização social de franjas das sociedades europeias, mantidas relativamente calmas pelo Estado social, cujas capacidades poderão ser insuficientes para responder aos novos desafios que terão de defrontar.
A divisão no seio da União Europeia, provocada pela colisão de interesses internos, aumentará a sua dependência política, económica e militar dos EUA, tornando irrelevante qualquer projeto de autonomia estratégica europeia. A ambição de um projeto europeu supranacional poderá ficar ferida de morte por estes desenvolvimentos.
Foi confrangedor assistir à ausência da UE durante a crise russo-ucraniana que antecedeu a guerra, divorciando-se de intervir sobre uma matéria decisiva para o seu futuro. Cabe, pois, refletir quem, no final, vai beneficiar política, económica e geoestrategicamente dos dramáticos acontecimentos em curso, cujo fim é ainda difícil de antever.