Os "euroinómanos" já não podem ocultar a
decomposição da UE
por Jacques Sapir
A União Europeia está em decomposição. Doravante
isto tornou-se uma evidência. Os discursos estabelecidos e os fingimentos
daqueles que os nossos amigos italianos chamam de
"euroinómanos" mascaram cada vez pior esta
decomposição. Desde a semana passada este processo entrou numa
nova fase de aceleração.
Muito claramente, a questão dos "migrantes" desempenhou o
papel de um detonador. Sobre esta questão somam-se efectivamente os
erros políticos, um discurso com pretensão moral que se verifica
ser fundamentalmente moralista e uma enorme hipocrisia. Tem-se a prova com o
caso
Aquarius,
este navio fretado pela ONG SOS-Méditerranée. Mas, no fundo,
esta questão apenas reflecte as contradições internas que
se desenvolveram no seio da UE. Num certo sentido, pode-se pensar que raros
são os dirigentes que ainda "acreditam" numa UE federal, ainda
que o nosso presidente se agarre desesperadamente a este mito.
Esta decomposição poderia conduzir a uma explosão da UE,
assim como também poderia conduzir à sua evolução
para uma zona comercial com regras flexíveis, organizada em torno de
diversos círculos de cooperação definidos por projectos e
problemas particulares. Mas, qualquer que seja a solução, e mesmo
que o nome "União Europeia" devesse sobreviver, é claro
que esta não seria mais a UE tal como foi imaginada e posta em
prática desde a votação do famoso "Acto
Único" de 1986. Assistimos à derrocada de mais de trinta
anos de "construção europeia".
Um processo bastante avançado
Impõe-se um balanço das transformações, antigas e
recentes, que se verificaram na União Europeia. Muito se falou do
Brexit, votado em 2016, que alguns esperavam inverter por não se sabe
qual trapalhice "legal". Ora, com a votação recente no
Parlamento britânico, uma votação em que a sra. Theresa May
sobrepujou a facção pró UE
[1]
, está claro que o Brexit se verificará. O Reino Unido
deixará portanto a União Europeia em 29 de Março de 2019
à meia-noite do continente
[2]
. As eleições gerais ocorridas nestes últimos seis meses,
na Hungria e na Áustria, mas também na Eslovénia, levaram
(ou mantiveram) no poder governos claramente eurocépticos, que desejam
uma modificação profunda das regras da UE. Finalmente, a
acção do actual governo italiano, resultante de uma
coligação entre o M5S e a
Lega
levou a por à luz estas contradições.
Foi o resultado da decisão do ministro do Interior italiano, sr. Matteo
Salvini, de recusar ao navio Aquarius fretado por uma ONG o direito de
desembarcar migrantes recolhidos que provocou o escândalo. As boas almas
levantaram-se contra esta decisão. Mas por um lado esta respeitou o
direito internacional marítimo
[3]
e o facto de a ONG em causa não ter atacado o governo italiano o
testemunha e, por outro lado, os casos de urgências humanitárias
foram respeitados. Apesar de declarações muitas vezes
bombásticas, o sr. Salvini aceitou que as mulheres grávidas e as
pessoas gravemente doentes fossem desembarcadas e as Guardas Costeiras
italianas continuam suas missões de salvamento. O
Aquarius,
que é regularmente seguido pelos aviões de reconhecimento
marítimo italianos e franceses, nunca correu o risco de afundar e
é escoltado por um navio da Guarda Costeira italiana, o que é
reconhecido pela própria SOS-Méditerranée
[4]
.
Hipocrisias franco-alemãs
Portanto, o que está em causa é uma política caracterizada
por uma cegueira ao real e uma imensa hipocrisia que é o feito de a UE,
mas também da Alemanha e particularmente da França. É esta
hipocrisia atribui à Itália o peso quase exclusivo da acolhida
dos "migrantes" nestes últimos três anos.
O recuo do presidente francês, sr. Emmanuel Macron, que depois de
ter denunciado a atitude da Itália mais em termos de moral do que em
termos políticos
[5]
foi obrigado a baixar o tom sob pena de ver anulada a reunião
que teve esta sexta-feira 15 com primeiro-ministro italiano, é
significativo. Declarando que convinha separar a política da
emoção, ele voltou a uma política mais razoável,
mas ao preço de uma humilhação internacional. A
reunião portanto pôde verificar-se e os dois dirigentes exibiram
um acordo ainda mais cordial por se saber que estiveram à beira da
crise
[6]
.
Ao mesmo tempo, esta crise entrou na Alemanha onde Angela Merkel foi obrigada a
chegar a termos com o seu próprio ministro do Interior, sr. Horst
Seehofer. Este último, apoiado por uma maioria dos deputados da CDU-CSU,
deseja que a Alemanha faça um acordo com a Grécia e a
Itália sobre a questão dos migrantes, um acordo que permitiria
à Alemanha rejeitar todos os migrantes não registados
previamente. Isto é muito embaraçoso para a sra. Merkel, que vai
ser obrigada a pedir o seu acordo tanto a Alexis Tsipras como a Giuseppe Conte.
Muito claramente, a sra. Merkel saiu enfraquecida desta crise.
Igualmente, sabe-se de uma reunião dos três ministros do Interior
da Alemanha, da Áustria e da Itália sobre a questão da
imigração ilegal. Isto mostra a vontade dos governos de se
coordenarem. Mas, e isto não escapará a ninguém, trata-se
de uma coordenação
inter-governamental
entre Estados soberanos, coordenação que contorna alegremente os
procedimentos e os hábitos da UE e que, provavelmente, porá as
suas regras em causa. Sinal dos tempos?
Para além da questão dos migrantes
Isto poderia levar a acreditar que a questão dos "migrantes"
esgota a ordem do dia da UE. Ainda que este assunto tenha um lugar
efectivamente importante, ele entretanto está longe de ser o
único. O governo italiano, sempre ele, acaba de anunciar que proporia ao
Parlamento não ratificar o CETA, o tratado de Livre Comércio
assinado entre o Canadá e os países da UE
[7]
. Uma decisão que a prazo poderia provocar a anulação
deste tratado. Sabe-se que este último era muito contestado, e
não sem boas razões, tanto do ponto de vista do direito dos
consumidores como das preocupações ecológicas e
também jurídicas. Este tratado previa a
substituição do direito dos Estados por cortes de arbitragem
comercial. Além disso, esta decisão do governo italiano é
contraditória com a vontade da Comissão Europeia de decidir,
em lugar e em substituição dos Estados,
sobre as questões comerciais. Trata-se portanto da
reafirmação da função principal, e fundadora, da
soberania dos Estados que está aqui em causa. A decisão tomada
pelo governo italiano constitui portanto uma pedrada no charco, ou antes na
capoeira de Bruxelas. Além disso, o governo italiano deu a entender que
se poderia opor à renovação das sanções
contra a Rússia
[8]
. Aqui ainda trata-se de uma decisão tomada por consenso. Se um
país rompe este consenso, outros se seguirão.
Como se vê, as questões económicas e comerciais têm
um papel destacado no processo de decomposição da UE. Um processo
que foi salientado pela decisão da Alemanha de recusar a maior parte das
propostas feitas pelo presidente francês, Emmanuel Macron
[9]
. A publicação recente pelo OFCE
[Observatoire français des conjonctures économiques] de um texto
sobre o papel deletério do Euro em relação às
economias tanto francesa como italiana confirma-o
[10]
. De facto, constata-se que o "casal franco-alemão" não
existe, a não ser nos delírios dos editocratas franceses. As
formas tomadas pelas "narrativas" da crise engendrada pela
Itália
[11]
, em primeiro lugar as escandalosas manchetes da imprensa alemã mas
também as palavras extremamente mordazes que Emmanuel Macron havia
utilizado, são ao mesmo tempo um sintoma da decomposição
da União Europeia, mas constituem também uma das suas causas.
Doravante é evidente que a UE não "protege" e
não favorece a paz ou o entendimento entre os povos. Trata-se mesmo
exactamente do contrário.
O retorno da soberania das nações
Esta decomposição da UE é um processo de longo prazo,
engendrado pelas contradições internas desta
instituição e também pela sua incapacidade crónica
de se reformar de outro modo que não sejam modificações
marginais. Neste contexto, o gesto de Matteo Salvini a propósito do
Aquarius,
quer se aprove ou não, provocou uma cisão importante. Mostrou
que um país podia libertar-se das regras da UE e demonstrar ao mesmo
tempo a inexistência da "soberania europeia", este mito
tão caro a Emmanuel Macron, e a existência da sua própria
soberania.
Este gesto terá consequências. Ele contribui para devolver aos
italianos uma confiança no governo do seu país e nas capacidades
deste. Isso é importante quando se avizinham outros confrontos, em
particular sobre as questões económicas. Mas este gesto
também é importante para os outros países da UE. Pois se a
Itália pode recuperar sua soberania, ela pode num momento de crise
decidir que é ela a fixar a ordem do dia dos problemas a tratar assim
como a natureza das soluções, o que é uma
definição da soberania, e outros países reterão a
lição. Poderíamos muito bem assistir, nos próximos
meses, uma aceleração do mencionado processo de
decomposição. Ao mesmo tempo, este acto de
recuperação da soberania não tem nada de
incompatível com a busca de cooperações, em que os
parceiros podem ser escolhidos e já não serão impostos por
Bruxelas. Desenham-se então os contornos de uma outra forma de
organização da Europa, uma forma pós União
Europeia, mas que não poderá se afirmar senão quando
constatada publicamente a morte desta última.
16/Junho/2018
[1]
www.bbc.com/news/uk-politics-44456035
[2]
www.business.hsbc.fr/...
[3]
www.ouest-france.fr/...
[4]
www.lefigaro.fr/international/...
[5]
www.huffingtonpost.fr/2018/06/12/...
[6]
www.huffingtonpost.fr/2018/06/15/...
[7]
www.lesechos.fr/monde/europe/...
[8]
www.lefigaro.fr/...
[9]
www.romandie.com/news/926189.rom
[10] Villemot S., Ducoudré B., Timbeau X., "TAUX DE CHANGE D'ÉQUILIBRE ET
AMPLEUR DES DÉSAJUSTEMENTS INTERNES À LA ZONE EURO", in, Revue de l'OFCE, n°156
(2018)
[11]
www.ft.com/content/087e3a12-6b1e-11e8-8cf3-0c230fa67aec
Ver também:
"Il faut prévoir un mécanisme de sortie de l’euro pour l’Italie"
O original encontra-se em
www.les-crises.fr/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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