Para quem é a entrega?
por Henrique Júdice Magalhães
Em 1703, Portugal, à época uma potência decadente, assinou
com a Inglaterra (potência ascendente) o Tratado de Methuen. A troco da
isenção de tarifas no ingresso de vinhos portugueses em
território britânico, a coroa lusitana cedeu perpetuamente
à indústria inglesa seu mercado consumidor de tecidos que
incluía o Brasil. Em 1785, Lisboa ordenou a destruição de
quase todos os bens de produção manufatureira existentes aqui
[1]
.
Em 1933, a Argentina firmou com a Inglaterra o Pacto Roca-Runciman. A troco do
compromisso britânico de continuar comprando sua carne bovina desde que
ela fosse mais barata que a de outros países, o governo argentino
assegurou a frigoríficos ingleses 85% do setor frigorífico e
ainda eliminou ou reduziu as tarifas de importação de 235
produtos britânicos, entre outras concessões. Arturo Jauretche
definiu esse tratado como o "marco legal da
colonização".
O tratado Mercosul União Européia (UE) anunciado no
começo de julho é igual, ou até pior. Ao prever a
eliminação geral de tarifas entre países dos dois blocos a
curtíssimo prazo (menos de 10 anos), condena à morte o que resta
da indústria sul-americana. Até a produção de
vinhos usada como "compensação" no Tratado de
Methuen está ameaçada, pois nem a reconhecida
excelência da Argentina e do Chile é páreo, em tais
condições, para a concorrência europeia.
No Brasil, os segmentos mais favorecidos, até agora, são os da
cana de açúcar, suco de laranja e café solúvel.
Soja e milho ficam de fora enquanto durar o laivo de sensatez que impede a
Europa de se abrir aos transgênicos e a certos agrotóxicos.
E isso deve durar pouco: além de aniquilar a pouca indústria que
ainda há nos países do Mercosul, o tratado é um duro golpe
contra a soberania e a segurança alimentares que a Europa (especialmente
França e Itália) sempre se preocupou em manter acima de
considerações econômicas imediatas. Os subsídios
europeus à produção camponesa não deixam de
existir, mas, ao isentar de tarifas a importação de frutas e
legumes produzidos a baixo custo na América do Sul, a UE impõe a
seu campesinato uma concorrência tão predatória quanto a
que sua indústria faz à sul-americana.
Colônias por procuração
Detalhes do acordo ainda pendem de definição, pois, após o
anúncio oficial realizado dias atrás, ele ainda precisa ser
assinado e aprovado pelos parlamentos dos países envolvidos. Mas seu
espírito está suficientemente claro para permitir algumas
constatações.
O tratado estava em negociação havia 20 anos. Em algum momento,
chegou a ser concebido como um instrumento para que os dois blocos adquirissem
maior autonomia comercial e política face aos EUA, ainda que para
o Mercosul sem maior conotação emancipatória, e sim
no grau primário de barganha com dois imperialismos (o estadunidense e o
europeu).
Mas seu fechamento se dá no ápice da submissão de ambos
blocos aos EUA. Brasil, Argentina, Paraguai e Chile se encontram hoje sob os
governos mais submissos a Washington que já tiveram em toda a
história. Na Europa, se apaga a cada dia a lembrança da
época em que por exemplo a direita gaullista francesa, sob
a liderança de Chirac, tentava que a UE alçasse vôo
próprio no cenário internacional. Predomina, hoje, o mais acerbo
atlantismo, e o fato de Merkel ser mais sensata que Trump não é,
nem de longe, suficiente para estabelecer-lhe um contraponto.
A hipótese mais plausível é que, por trás, esteja a
mão dos EUA para assegurar o domínio sobre a América
Latina usando a UE como intermediária e ainda liquidar as
restrições europeias ao envenenamento de comida e à
dependência alimentar. Exatamente como fez a Inglaterra para anexar
economicamente o Brasil via Portugal com o tratado de Methuen e o alvará
industricida de 1785.
Xadrez geopolítico
Na última década e meia, ao mesmo tempo em que agiam de forma
dócil ou neutra face ao capital estadunidense, alguns governos
sul-americanos atingiram em cheio o interesse geopolítico dos EUA ao
incrementar em demasia as relações com a China e no caso
venezuelano a Rússia.
O dado mais importante para entender as recentes reviravoltas no quadro
sul-americano é que a China se tornou o mais importante parceiro
comercial de Brasil e Argentina, e isso começava a se desdobrar para a
dimensão política mediante acordos como o BRIC, que punha em
risco o controle dos EUA sobre sua tradicional zona de influência
geopolítica.
O acordo UE-Mercosul é parte da contraofensiva estadunidense para reter
tal controle. Fazer isso usando os europeus como intermediários tem,
para os EUA, diversas vantagens.
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Suscita menor resistência: facções parlamentares que
teriam reticências a um acordo desse tipo diretamente com Washington
confraternizam com organizações europeias congêneres na II
Internacional "Socialista", ou são clientes habituais da
Fundação Friedrich Ebert.
-
Convém mais aos EUA afiançar a aliança com o
latifúndio exportador sul-americano destruindo a produção
agroalimentar europeia do que a sua própria. E é duvidoso que a
decadente economia estadunidense possa suprir, de imediato, a demanda
sul-americana de manufaturados.
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O ponto de partida: a UE já é, hoje, o segundo parceiro
comercial do Mercosul, depois da China.
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O tratado afasta não só o Mercosul, mas também a UE da
influência chinesa. O latifúndio sul-americano e a
indústria europeia ganham mercados de muito peso, alternativos ao
chinês.
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Em paralelo, os EUA preparam acordos diretos tanto com a UE como com o
Mercosul. Essa intenção foi explicitada por Maurício Macri
dois dias após o anúncio do tratado Mercosul-UE.
Compensações. Tácitas?
Ao mesmo tempo em que é parte da disputa econômica e
geopolítica entre China e EUA, o acordo embute
compensações tácitas ou negociadas detrás da
cortina a Pequim.
O atual nível de integração entre as economias industriais
chinesa e europeia e a própria localização da Europa
apontam para a possibilidade de que esta se transforme em entreposto para
mercadorias produzidas na China o que asseguraria a Pequim uma
compensação econômica expressiva, ao mesmo tempo em que
corta as asas da expansão geopolítica chinesa.
Algo assim já ocorreu no Brasil, onde a abertura da
exploração do pré-sal obra da intensa e irrestrita
ação de
lobby
das seis irmãs e da embaixada estadunidense embutiu generosas
cotas a firmas chinesas nos leilões subsequentes.
Mas é improvável que o grupo dirigente chinês se contente
com isso. A disputa tende a sair dos bastidores e a se intensificar. Seus
desdobramentos políticos também.
[1]
historiacolonial.arquivonacional.gov.br/...
O original encontra-se em
anovademocracia.com.br/no-225/11515-para-quem-e-a-entrega
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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