Sair do euro e desvalorizar, a opção
1. A crise e as opções possíveis
A grave crise do país é financeira e económica. A
financeira centra-se nos elevados valores atingidos pelas dívidas
externa e pública (olvidando por agora o endividamento das empresas e
famílias). Mas ela é um resultado da acumulação de
défices da balança corrente, espelhando a carga do serviço
da dívida externa e a perda de competitividade ao longo de dez anos.
Perdas de competitividade que não puderam ser compensadas com a
desvalorização da moeda.
Por isso, a saída da crise tem de ter como fulcro a ultrapassagem dos
desequilíbrios externos, colocando o enfoque no aumento da
competitividade (para reduzir de forma sustentada o défice da
balança de bens e serviços) e na redução do
serviço da dívida para melhorar a balança de rendimentos.
Daí, dada a sua dimensão e independentemente da
opção sobre o euro, a imprescindível
reestruturação da dívida externa. No mínimo da
pública. Abrangendo prazos, taxas de juro e montantes. Os ganhos
decorrentes compensam os eventuais prémios de risco que venha a gerar
nos mercados financeiros.
Mas a reestruturação da dívida, para além de
aliviar a pressão sobre os défices públicos, melhora a
balança de rendimentos mas não age sobre a balança
comercial, não resolve o problema central. E para ganhar a
competitividade necessária para atingir os necessários
equilíbrios económicos e financeiros, temos de realizar uma
desvalorização da ordem dos 30%.
Realisticamente isso só pode ser feito por duas vias: pela
desvalorização interna ou pela desvalorização
cambial.
Porque a eventual via da refundação da Europa -
inverter a deriva neoliberal, rasgar o Tratado de Lisboa, alterar os estatutos
do BCE, instituir um orçamento europeu suficiente para compensar
divergências estruturais e choques assimétricos
melhoraria a situação mas é politicamente
impossível em prazo útil. Tal como a ideia de
obtenção de derrogações da União Europeia,
ainda que temporárias, parece inviável pois poria em causa
princípios sagrados dos Tratados. E o aprofundamento da
integração europeia significaria avançar no federalismo
político, sob tutela alemã, e não resolveria os problemas
estruturais.
2. A via da desvalorização interna
A desvalorização interna é muito dolorosa,
económica e socialmente, fazendo incidir os seus custos essencialmente
sobre os trabalhadores, com deflação salarial arrasadora
(desvalorizar 30% quando as remunerações pesam 20% na
produção mercantil), desemprego insuportável (sendo
estimada uma taxa de desemprego estrutural superior a 20%),
[1]
liquidação de direitos e demolição do Estado
social. E, a final, não resolve os problemas estruturais.
Ainda que se olvidassem os custos sociais, a nossa experiência recente
mostra à evidência que a desvalorização interna
não resulta: as reduções salariais e o aumento do
desemprego não conduzem ao aumento da competitividade-preço mas
à redução da procura interna; essa redução
da procura reduz o défice externo mas à custa da recessão
económica, da redução do investimento e da capacidade
produtiva, portanto do crescimento potencial; inviabiliza a
redução dos défices públicos devido à perda
de receitas fiscais e parafiscais; o objectivo da estabilização
do nível relativo da dívida pública face ao PIB só
será possível com enorme e permanente excedente orçamental
primário (da ordem dos 5%)
[2]
o que só agrava ainda mais tudo o resto; e o endividamento aumenta,
apesar dos 10.000 de milhões das privatizações e fundos de
pensões.
Este caminho levar-nos-á, pelo menos durante os próximos 15 a 20
anos, a um enorme desastre económico e social, à
emigração massiva da geração mais bem
preparada de sempre, a uma sociedade mais pobre, desigual e revoltada.
Não sendo credível que isto não conduza a graves
convulsões sociais e políticas.
E, sejamos claros: a estratégia mais tempo e mais
maturidades significa prosseguir a via da desvalorização
interna, anestesiando mas não curando.
3. A via da desvalorização cambial
Resta a desvalorização cambial. Ou seja, sair do euro
[3]
e participar no mecanismo de taxas de câmbio. Numa
situação de endividamento excessivo e de défice de
competitividade apresenta-se como a melhor solução.
Vantagens
Permite recuperar a competitividade para sustentar o crescimento, a
redução do desemprego, o aumento das receitas orçamentais,
a redução dos défices externo e público, evitar o
permanente aumento da dívida externa, aumentar o potencial de
crescimento a longo prazo e criar condições necessárias
(embora não suficientes) para a renovação da estrutura e
da especialização produtivas do país.
Desde 2002 o euro tem estado permanentemente sobrevalorizado em 30 a 40%
relativamente à taxa de equilíbrio face ao dólar adequada
à economia portuguesa.
[4]
Sendo estimado que a elasticidade da economia portuguesa (calculada como a
soma das elasticidades das importações e das
exportações a uma desvalorização do euro) é
+0,11,
[5]
isso significa que uma desvalorização de 30% aumenta o
crescimento potencial do PIB em 3 pp.
A desvalorização
potencia as capacidades de exportação nos sectores em que a
procura é mais sensível ao preço (a maioria das nossas
exportações) e de substituição de
importações. Experiências de desvalorização
da moeda mostram que os seus efeitos positivos se verificam num prazo curto.
[6]
Estando mais de 70% do nosso comércio externo concentrado nos
países da UE, e tendo em conta que a componente importada das
exportações é idêntica à da
produção mercantil, uma desvalorização da moeda de
30% significa um aumento da competitividade-preço de 22%,
[7]
talvez mais face a países extra-UE que nesse espaço concorrem
connosco. Assim, o efeito no aumento das exportações será
rápido e nada parece impedir resposta imediata no âmbito da
substituição de muitas importações.
A desvalorização diminui a pressão sobre a
redução das remunerações, gera mais emprego e
contribui para reduzir o movimento de deslocalizações para
países com salários mais baixos.
Pelo aumento de receitas orçamentais que os seus efeitos geram via
crescimento, conduz à redução do défice
orçamental possibilitando o investimento público e a
preservação do Estado social. E o aumento do crescimento que a
desvalorização proporciona é a variável
determinante para a redução do nível da dívida
pública face ao PIB.
A recuperação da soberania monetária é peça
essencial para gerir uma política cambial adequada à realidade
económica, permitindo ao Banco de Portugal funcionar como financiador de
último recurso do Estado e manter a liquidez do sistema bancário
garantindo o crédito à economia real.
E, não sendo condição suficiente, cria as
condições necessárias para a renovação da
estrutura produtiva (não possível num contexto de
sobrevalorização monetária) abrindo portas à
criação de empregos mais qualificados e melhor remunerados.
Custos e riscos
É evidente que a saída do euro e desvalorização tem
custos e apresenta riscos. Mas os custos devem ser comparados com os da
não saída e com as vantagens da obtenção da
flexibilidade cambial. São certamente menores que os resultantes da
desvalorização interna e ficam longe dos pretensos desastres
propalados por alguns.
Inflação
Uma desvalorização de 30% gera uma inflação
importada de 8 a 9% (provavelmente menor, pois nos últimos anos as
importações diminuíram mais que o consumo e a
produção). A que acresce a inflação interna. Mas em
relação a esta o risco actual é o da
deflação. A inflação importada será bastante
maior no sector dos transportes, mas o nível da tributação
sobre os combustíveis oferece margem de manobra para reduzir os seus
efeitos.
Os efeitos da inflação importada tenderão a verificar-se
apenas no primeiro ano após desvalorização, reduzindo-se
bastante nos anos seguintes.
[8]
E a pressão sobre a inflação interna é gerivel,
controlando basicamente os sistemas da grande distribuição e
energéticos. Quanto ao impacto sobre os salários, mesmo que os
salários reais sofressem o impacto total da inflação, o
custo seria bastante inferior ao que suportarão com a
desvalorização interna (para além do desemprego). E a
inflação não tem que ser necessariamente repercutida nos
salários: o ganho de competitividade é suficiente para acomodar
uma compensação salarial, pelo menos parcial.
No que respeita aos impactos sobre as poupanças, como a conversão
das moedas se deverá fazer segundo o princípio da igualdade
(1por1), só depois se desvalorizando, não haverá perdas
nominais mas apenas reais, por efeito da inflação. E as taxas de
juro nominais internas aumentarão compensando parcialmente essas perdas.
Efeito da desvalorização sobre as dívidas
Apenas se coloca em relação às dívidas
externas o que, de um modo geral, não atinge as famílias e as
PMEs. Algumas grandes empresas poderão ver o serviço da
dívida tornar-se excessivo, o que poderá exigir
empréstimos dos bancos públicos (CGD e BdP). Para os bancos,
talvez o problema mais delicado, terá de ser avaliado o aumento das
dívidas
líquidas
decorrente da desvalorização. Que poderá ser
relativamente elevado.
[9]
Muito provavelmente será necessário um reforço dos fundos
próprios pelo BdP e/ou uma participação do Estado no
capital de alguns bancos. A ocorrer, essa participação
deverá prefigurar a recomposição do sistema
bancário com a separação dos bancos comerciais dos de
investimento, e eventuais nacionalizações.
Risco das restrições no financiamento externo
Em 2012 registou-se uma capacidade líquida de financiamento de
0,4% do PIB. Com os efeitos da desvalorização e da
reestruturação da dívida é possível um saldo
positivo da balança corrente e o aumento da capacidade líquida de
financiamento. Daí que o problema se reporte fundamentalmente à
divida pré-existente.
Em particular quanto à dívida pública, o défice
será financiado por dívida interna e, em último recurso,
pelo BdP. Défice que será muito inferior ao actual, pela
redução dos juros a pagar, aumento da receita e
redução de benefícios fiscais (6% do PIB!).
[10]
Em relação à divida existente, será reduzida pela
reestruturação e a restante registará uma baixa do valor
no mercado secundário, podendo ser recomprada. A recompra poderá
atingir níveis importantes se a saída do euro for adequadamente
negociada com zona euro e BCE, viabilizando apoio financeiro a essas
operações (como foi feito para a Grécia). Assim, o aumento
da dívida pública correspondente à
desvalorização poderá ser relativamente pequeno.
E não é de excluir que os financiadores externos pesem as
perspectivas muito positivas para o crescimento, para a capacidade de pagar
dívidas, e a diversificação das fontes de financiamento.
Especulação e fuga de capitais
É evidente que necessariamente terá de ser introduzido um
controlo dos movimentos de capitais,
[11]
primeiro um controlo total e posteriormente o dos movimentos de curto prazo.
4. Conclusão
Tentar sair desta crise pela via da desvalorização interna
não é uma alternativa. Os custos económicos e sociais
seriam incomportáveis e não seria resolvido nenhum dos nossos
problemas estruturais.
Por isso, a questão que deve ser colocada não é se devemos
ou não sair do euro, porque essa é uma necessidade objectiva. E
quanto mais tempo se perder a tomar a decisão mais se degradará a
situação do país.
[12]
A questão a colocar é a de como sair do euro, tão cedo
quanto possível, e preparar essa saída para limitar os efeitos
negativos. E não há necessidade de teorizar sobre como sair do
euro. Embora o euro seja historicamente único, os problemas colocados
pela saída de uma moeda não o são. Exemplos anteriores
fornecem respostas fundamentais. Apenas há que as estudar e fazer a sua
aplicação cuidadosa às especificidades do país e do
euro.
Notas
[1] Portugal: 2012 Article IV Consultation and Sixth Review Under the
Extended_Box 2. How Fast Can Portugal Grow? IMF Country Report No. 13/18
January 2013
[2] P. Artus, « Honnêtement, est-ce que vous mettez une probabilité nulle sur
le fait que certains pays de la zone euro devront restructurer leur dette
publique dans le futur ?», Flash Economie, n°250, 28 mars 2013, NATIXIS.
[3] A melhor solução seria a evolução do euro de moeda única para moeda comum.
Mas isso não depende de nós e não se perspectiva.
[4] Jacques Sapir, “S'il faut sortir de l'Euro”, CEMI-EHESS, 6 avril 2011
[5] P. Artus, «Quels pays seraient les gagnants d'un fort recul de l'euro?»,
Flash Economie, n°245, 1 avril 2011, NATIXIS.
[6] Por exemplo, Rússia (1998), Argentina (2001), Islândia (2008-2009).
[7] Admitindo uma inflação de 10% em Portugal e de 2% na UE.
[8] Na Islândia, na sequência duma desvalorização acumulada superior a 50%, a
inflação foi de 12% em 2009, baixando nos anos seguintes para 5 e 4%.
[9] Em Dezembro de 2012 o efeito da desvalorização de 30% significaria um
aumento da dívida externa líquida dos bancos de 6.000 milhões de euros.
[10] “Despesa Fiscal 2013”, Dezembro de 2012, Ministério das Finanças
[11] Como foi feito pela Islândia (2008) e Coreia do Sul (2010), e
internacionalmente aceite.
[12] À semelhança da Argentina entre 1998 e 2001
Do mesmo autor:
A permanência no Euro não é um desastre irreversível
, 26/Fev/13
Que alternativa à não saída do euro?
, 15/Jan/13
Sair do euro é preciso
, 12/Nov/12
[*]
Economista.
O original encontra-se na edição portuguesa de
Le Monde Diplomatique
, nº 79, Maio 2013.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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