Sair do euro e desvalorizar, a opção

por Octávio Teixeira [*]

1. A crise e as opções possíveis

A grave crise do país é financeira e económica. A financeira centra-se nos elevados valores atingidos pelas dívidas externa e pública (olvidando por agora o endividamento das empresas e famílias). Mas ela é um resultado da acumulação de défices da balança corrente, espelhando a carga do serviço da dívida externa e a perda de competitividade ao longo de dez anos. Perdas de competitividade que não puderam ser compensadas com a desvalorização da moeda.

Por isso, a saída da crise tem de ter como fulcro a ultrapassagem dos desequilíbrios externos, colocando o enfoque no aumento da competitividade (para reduzir de forma sustentada o défice da balança de bens e serviços) e na redução do serviço da dívida para melhorar a balança de rendimentos.

Daí, dada a sua dimensão e independentemente da opção sobre o euro, a imprescindível reestruturação da dívida externa. No mínimo da pública. Abrangendo prazos, taxas de juro e montantes. Os ganhos decorrentes compensam os eventuais prémios de risco que venha a gerar nos mercados financeiros.

Mas a reestruturação da dívida, para além de aliviar a pressão sobre os défices públicos, melhora a balança de rendimentos mas não age sobre a balança comercial, não resolve o problema central. E para ganhar a competitividade necessária para atingir os necessários equilíbrios económicos e financeiros, temos de realizar uma desvalorização da ordem dos 30%.

Realisticamente isso só pode ser feito por duas vias: pela desvalorização interna ou pela desvalorização cambial.

Porque a eventual via da “refundação” da Europa - inverter a deriva neoliberal, rasgar o Tratado de Lisboa, alterar os estatutos do BCE, instituir um orçamento europeu suficiente para compensar divergências estruturais e choques assimétricos… – melhoraria a situação mas é politicamente impossível em prazo útil. Tal como a ideia de obtenção de derrogações da União Europeia, ainda que temporárias, parece inviável pois poria em causa princípios “sagrados” dos Tratados. E o aprofundamento da integração europeia significaria avançar no federalismo político, sob tutela alemã, e não resolveria os problemas estruturais.

2. A via da desvalorização interna

A desvalorização interna é muito dolorosa, económica e socialmente, fazendo incidir os seus custos essencialmente sobre os trabalhadores, com deflação salarial arrasadora (desvalorizar 30% quando as remunerações pesam 20% na produção mercantil), desemprego insuportável (sendo estimada uma taxa de desemprego estrutural superior a 20%), [1] liquidação de direitos e demolição do Estado social. E, a final, não resolve os problemas estruturais.

Ainda que se olvidassem os custos sociais, a nossa experiência recente mostra à evidência que a desvalorização interna não resulta: as reduções salariais e o aumento do desemprego não conduzem ao aumento da competitividade-preço mas à redução da procura interna; essa redução da procura reduz o défice externo mas à custa da recessão económica, da redução do investimento e da capacidade produtiva, portanto do crescimento potencial; inviabiliza a redução dos défices públicos devido à perda de receitas fiscais e parafiscais; o objectivo da estabilização do nível relativo da dívida pública face ao PIB só será possível com enorme e permanente excedente orçamental primário (da ordem dos 5%) [2] o que só agrava ainda mais tudo o resto; e o endividamento aumenta, apesar dos 10.000 de milhões das privatizações e fundos de pensões.

Este caminho levar-nos-á, pelo menos durante os próximos 15 a 20 anos, a um enorme desastre económico e social, à emigração massiva da geração “mais bem preparada de sempre”, a uma sociedade mais pobre, desigual e revoltada. Não sendo credível que isto não conduza a graves convulsões sociais e políticas.

E, sejamos claros: a estratégia “mais tempo e mais maturidades” significa prosseguir a via da desvalorização interna, anestesiando mas não curando.

3. A via da desvalorização cambial

Resta a desvalorização cambial. Ou seja, sair do euro [3] e participar no mecanismo de taxas de câmbio. Numa situação de endividamento excessivo e de défice de competitividade apresenta-se como a melhor solução.

Vantagens

Permite recuperar a competitividade para sustentar o crescimento, a redução do desemprego, o aumento das receitas orçamentais, a redução dos défices externo e público, evitar o permanente aumento da dívida externa, aumentar o potencial de crescimento a longo prazo e criar condições necessárias (embora não suficientes) para a renovação da estrutura e da especialização produtivas do país.

Desde 2002 o euro tem estado permanentemente sobrevalorizado em 30 a 40% relativamente à taxa de equilíbrio face ao dólar adequada à economia portuguesa. [4] Sendo estimado que a elasticidade da economia portuguesa (calculada como a soma das elasticidades das importações e das exportações a uma desvalorização do euro) é +0,11, [5] isso significa que uma desvalorização de 30% aumenta o crescimento potencial do PIB em 3 pp.

A desvalorização potencia as capacidades de exportação nos sectores em que a procura é mais sensível ao preço (a maioria das nossas exportações) e de substituição de importações. Experiências de desvalorização da moeda mostram que os seus efeitos positivos se verificam num prazo curto. [6] Estando mais de 70% do nosso comércio externo concentrado nos países da UE, e tendo em conta que a componente importada das exportações é idêntica à da produção mercantil, uma desvalorização da moeda de 30% significa um aumento da competitividade-preço de 22%, [7] talvez mais face a países extra-UE que nesse espaço concorrem connosco. Assim, o efeito no aumento das exportações será rápido e nada parece impedir resposta imediata no âmbito da substituição de muitas importações.

A desvalorização diminui a pressão sobre a redução das remunerações, gera mais emprego e contribui para reduzir o movimento de deslocalizações para países com salários mais baixos.

Pelo aumento de receitas orçamentais que os seus efeitos geram via crescimento, conduz à redução do défice orçamental possibilitando o investimento público e a preservação do Estado social. E o aumento do crescimento que a desvalorização proporciona é a variável determinante para a redução do nível da dívida pública face ao PIB.

A recuperação da soberania monetária é peça essencial para gerir uma política cambial adequada à realidade económica, permitindo ao Banco de Portugal funcionar como financiador de último recurso do Estado e manter a liquidez do sistema bancário garantindo o crédito à economia real.

E, não sendo condição suficiente, cria as condições necessárias para a renovação da estrutura produtiva (não possível num contexto de sobrevalorização monetária) abrindo portas à criação de empregos mais qualificados e melhor remunerados.

Custos e riscos

É evidente que a saída do euro e desvalorização tem custos e apresenta riscos. Mas os custos devem ser comparados com os da não saída e com as vantagens da obtenção da flexibilidade cambial. São certamente menores que os resultantes da desvalorização interna e ficam longe dos pretensos desastres propalados por alguns.

Inflação – Uma desvalorização de 30% gera uma inflação importada de 8 a 9% (provavelmente menor, pois nos últimos anos as importações diminuíram mais que o consumo e a produção). A que acresce a inflação interna. Mas em relação a esta o risco actual é o da deflação. A inflação importada será bastante maior no sector dos transportes, mas o nível da tributação sobre os combustíveis oferece margem de manobra para reduzir os seus efeitos.

Os efeitos da inflação importada tenderão a verificar-se apenas no primeiro ano após desvalorização, reduzindo-se bastante nos anos seguintes. [8] E a pressão sobre a inflação interna é gerivel, controlando basicamente os sistemas da grande distribuição e energéticos. Quanto ao impacto sobre os salários, mesmo que os salários reais sofressem o impacto total da inflação, o custo seria bastante inferior ao que suportarão com a desvalorização interna (para além do desemprego). E a inflação não tem que ser necessariamente repercutida nos salários: o ganho de competitividade é suficiente para acomodar uma compensação salarial, pelo menos parcial.

No que respeita aos impactos sobre as poupanças, como a conversão das moedas se deverá fazer segundo o princípio da igualdade (1por1), só depois se desvalorizando, não haverá perdas nominais mas apenas reais, por efeito da inflação. E as taxas de juro nominais internas aumentarão compensando parcialmente essas perdas.

Efeito da desvalorização sobre as dívidas – Apenas se coloca em relação às dívidas externas o que, de um modo geral, não atinge as famílias e as PMEs. Algumas grandes empresas poderão ver o serviço da dívida tornar-se excessivo, o que poderá exigir empréstimos dos bancos públicos (CGD e BdP). Para os bancos, talvez o problema mais delicado, terá de ser avaliado o aumento das dívidas líquidas decorrente da desvalorização. Que poderá ser relativamente elevado. [9] Muito provavelmente será necessário um reforço dos fundos próprios pelo BdP e/ou uma participação do Estado no capital de alguns bancos. A ocorrer, essa participação deverá prefigurar a recomposição do sistema bancário com a separação dos bancos comerciais dos de investimento, e eventuais nacionalizações.

Risco das restrições no financiamento externo – Em 2012 registou-se uma capacidade líquida de financiamento de 0,4% do PIB. Com os efeitos da desvalorização e da reestruturação da dívida é possível um saldo positivo da balança corrente e o aumento da capacidade líquida de financiamento. Daí que o problema se reporte fundamentalmente à divida pré-existente.

Em particular quanto à dívida pública, o défice será financiado por dívida interna e, em último recurso, pelo BdP. Défice que será muito inferior ao actual, pela redução dos juros a pagar, aumento da receita e redução de benefícios fiscais (6% do PIB!). [10]

Em relação à divida existente, será reduzida pela reestruturação e a restante registará uma baixa do valor no mercado secundário, podendo ser recomprada. A recompra poderá atingir níveis importantes se a saída do euro for adequadamente negociada com zona euro e BCE, viabilizando apoio financeiro a essas operações (como foi feito para a Grécia). Assim, o aumento da dívida pública correspondente à desvalorização poderá ser relativamente pequeno.

E não é de excluir que os financiadores externos pesem as perspectivas muito positivas para o crescimento, para a capacidade de pagar dívidas, e a diversificação das fontes de financiamento.

Especulação e fuga de capitais – É evidente que necessariamente terá de ser introduzido um controlo dos movimentos de capitais, [11] primeiro um controlo total e posteriormente o dos movimentos de curto prazo.

4. Conclusão

Tentar sair desta crise pela via da desvalorização interna não é uma alternativa. Os custos económicos e sociais seriam incomportáveis e não seria resolvido nenhum dos nossos problemas estruturais.

Por isso, a questão que deve ser colocada não é se devemos ou não sair do euro, porque essa é uma necessidade objectiva. E quanto mais tempo se perder a tomar a decisão mais se degradará a situação do país. [12]

A questão a colocar é a de como sair do euro, tão cedo quanto possível, e preparar essa saída para limitar os efeitos negativos. E não há necessidade de teorizar sobre como sair do euro. Embora o euro seja historicamente único, os problemas colocados pela saída de uma moeda não o são. Exemplos anteriores fornecem respostas fundamentais. Apenas há que as estudar e fazer a sua aplicação cuidadosa às especificidades do país e do euro.

Notas
[1] Portugal: 2012 Article IV Consultation and Sixth Review Under the Extended_Box 2. How Fast Can Portugal Grow? IMF Country Report No. 13/18 January 2013
[2] P. Artus, « Honnêtement, est-ce que vous mettez une probabilité nulle sur le fait que certains pays de la zone euro devront restructurer leur dette publique dans le futur ?», Flash Economie, n°250, 28 mars 2013, NATIXIS.
[3] A melhor solução seria a evolução do euro de moeda única para moeda comum. Mas isso não depende de nós e não se perspectiva.
[4] Jacques Sapir, “S'il faut sortir de l'Euro”, CEMI-EHESS, 6 avril 2011
[5] P. Artus, «Quels pays seraient les gagnants d'un fort recul de l'euro?», Flash Economie, n°245, 1 avril 2011, NATIXIS.
[6] Por exemplo, Rússia (1998), Argentina (2001), Islândia (2008-2009).
[7] Admitindo uma inflação de 10% em Portugal e de 2% na UE.
[8] Na Islândia, na sequência duma desvalorização acumulada superior a 50%, a inflação foi de 12% em 2009, baixando nos anos seguintes para 5 e 4%.
[9] Em Dezembro de 2012 o efeito da desvalorização de 30% significaria um aumento da dívida externa líquida dos bancos de 6.000 milhões de euros.
[10] “Despesa Fiscal 2013”, Dezembro de 2012, Ministério das Finanças
[11] Como foi feito pela Islândia (2008) e Coreia do Sul (2010), e internacionalmente aceite.
[12] À semelhança da Argentina entre 1998 e 2001


Do mesmo autor:
  • A permanência no Euro não é um desastre irreversível , 26/Fev/13
  • Que alternativa à não saída do euro? , 15/Jan/13
  • Sair do euro é preciso , 12/Nov/12

    [*] Economista.

    O original encontra-se na edição portuguesa de Le Monde Diplomatique , nº 79, Maio 2013.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 21/Mai/13