A QE do BCE

por Jacques Sapir

Cartoon de Phil Pearlman. Assim, Mario Draghi acabou por utilizar a "bazooka". O anúncio que acaba de fazer na quinta-feira 22 de Janeiro ficará nos anais da história. O Banco Central Europeu converteu-se à "flexibilidade" (assouplissement), ao que se chama à "facilidade quantitativa" ( "quantitative easing", ou QE para os iniciados). Contudo, trata-se de uma medida desesperada. Nada prova que ela dê os resultados esperados. Ela levanta igualmente numerosas questões. Num certo sentido, também se pode ver aí, e este talvez seja o ponto mais importante, o princípio de um reconhecimento de que a zona Euro não funciona mais e que convém preparar a dissolução.

As medidas anunciadas

Na sua conferência de imprensa Mario Draghi fez uma série de anúncios que se podem resumir como se segue:

  • O BCE decidiu lançar um programa de compra de activos extenso, que assemelha-se mas também ultrapassa os programas anunciados anteriormente (TLTRO). Este programa, que entrará em vigor no mês de Março e continuará até Setembro de 2016, consistirá em compras de títulos obrigacionistas privados e públicos no mercado secundário num volume de 60 mil milhões de Euros por mês.

  • Este programa foi decidido devido ao colapso da inflação e aos riscos que a deflação provoca na zona Euro.

  • Ele será executado de acordo com uma regra de proporcionalidade à contribuição de cada governo ao sistema do BCE.

  • O BCE coordenará as compras de títulos que serão efectuadas, nos limites indicados pelos Bancos Centrais Nacionais (NCB). A tomada em conta dos riscos será coberta em 20% pelo BCE no quadro de um princípio de solidariedade à escala da zona Euro – e o resto caberá a cada Banco Central.

  • Os títulos comprados poderão ter uma maturidade de até trinta anos.

  • Este programa não deve incitar os governos ao laxismo orçamental.

Estas medidas eram esperadas pelos operadores dos mercados financeiros, mas a amplidão do programa impressionou favoravelmente estes mesmos operadores. O montante total desta "flexibilização" atinge assim 1140 mil milhões de Euros. O Euro iniciou um movimento de baixa em relação aos Dólares dos Estados Unidos. Mas outros pormenores também devem ser notados e em particular a regra da proporcionalidade nas compras de dívidas (que implica que três países serão mais beneficiados, a Alemanha, a França e a Itália) assim como a regra de solidariedade que é limitada a 20% das compras.

Uma medida desesperada?

Deve-se perguntar se este anúncio feito por Mario Draghi não é a ultimíssima medida tomada em desespero de causa diante da evolução da situação económica, e também política, da zona Euro. Recordemos os factos:

  1. 1. Mario Draghi havia brandido a ameaça de uma tal acção desde o princípio do mês de Setembro de 2012. Se se considera a teoria da credibilidade que serve de base à política declaratória do BCE, esta ameaça era feita para não ser posta em prática. Ela devia desencorajar de modo decisivo os especuladores e todos aqueles que antecipavam uma possível dissolução da zona Euro. Ora, há que reconhecer que após cerca de um ano em que a sua palavra foi acreditada, a credibilidade de Mario Draghti lentamente, mas cada vez mais rapidamente, esboroou. Assim, a última medida visando os bancos e datada de Setembro de 2014, a que se chama "TLTRO" foi um fracasso. Esta perda de credibilidade é um sinal importante da crise que se experimenta na zona Euro.

  2. 2. Os mecanismos que permitem a esta flexibilização monetária relançar a inflação e, por seu intermédio, a actividade económica não estão claros. Com efeito, a Europa não é os EUA e mesmo neste país os resultados das QE1, QE2 e QE2 são pelo menos mitigados.

    • O papel do crédito no consumo e no investimento é claramente menos importante na Europa do que nos Estados Unidos. Se o anúncio desta flexibilização vai certamente galvanizar os mercados de títulos (em particular os mercados de acções) e confortar os bancos e outras sociedades financeiras, a detenção destes títulos nas carteiras das famílias é limitada. Não haverá portanto efeito de riqueza real que poderia dinamizar o consumo.

    • Se a baixa do Euro em relação ao Dólar dos Estados Unidos é uma coisa boa, convém recordar que os países da Zona Euro, com excepção da França, efectuam 60% a 70% do seu comércio internacional no próprio interior da zona Euro. A depreciação do Euro face ao Dólar portanto não terá os mesmo efeitos de relançamento da actividade que uma dissolução da zona Euro com desvalorizações mais ou menos importantes dos países da Europa do Sul em relação à Alemanha.

  3. 3. Há uma contradição entre a declaração feita por Mario Draghi sobre a necessidade de manter políticas orçamentais estritas e estas "flexibilização". De facto, face ao risco de deflação, é pela política orçamental e não pela política monetária que se luta contra uma recessão e uma deflação. O problema principal na Europa é a baixa da parte dos salários operários no valor acrescentado.

Constata-se portanto que, por mais espectacular que seja, este anúncio é uma resposta a uma pergunta que não fora feita. De facto, a flexibilização monetária é coerente quando se está frente a uma crise de liquidez, como em Setembro de 2008. Mas não se trata deste caso actualmente.

O fim da zona Euro?

Há um ponto que merece ser analisado: é a decisão de limitar o mecanismo de solidariedade diante dos riscos a 20% das compras. Isso significa que, para 80% das compras destes mesmos títulos, o risco deverá ser arcado pelo Banco Central do país considerado. Ora, o princípio da mutualização está na base do funcionamento da zona Euro. É preciso hoje reconhecer que se regressou para a situação de 1999, ou seja, para o momento do arranque da zona Euro, em matéria de mutualização.

  • Há, desde 2010, um movimento muito importante de renacionalização de dívidas (que se pode ver na conta TARGET-2), que significa o fim do mercado único das dívidas no seio da zona Euro.

  • Doravante sabemos que esta mutualização não se aplica senão a 20% das compras de títulos futuras. Dito de outra forma, o Banco Central da Itália arcará com 80% do risco para a Itália, o Banco Central da Grécia com 80% do risco para a Grécia e assim por diante.

  • Finalmente, não se notou que Mário Draghi não quis anunciar a execução imediata do seu programa e que a remeteu para o mês de Março. A razão é simples. Ele espera que o Tribunal de Justiça Europeu lhe dê sinal verde. Ora, a opinião do advogado geral, que não é um travão, estipula que a aplicação de um programa do BCE (neste caso a OMT) deve respeitar o princípio da proporcionalidade e não deve interferir com o estabelecimento de um preço de mercado para os títulos que seriam elegíveis a este programa [1] .

Uma possível interpretação das medidas tomadas por Mario Draghi é que elas representam uma acção desesperada da parte do BCE que, diante da amplidão da crise, procura a todo custo encontrar uma solução, ainda que seja provisória. Mas, ao assim fazer, esta fracção do BCE acaba de abrir a porta a uma renacionalização da política monetária pelos países membros da zona Euro. É provável que este não fosse o objectivo procurado. Contudo, tornar-se-á cada vez mais difícil para os políticos da Zona Euro pretender que nos encontramos num sistema federal, no momento em que a política monetária se torna outra vez nacional. Por esta razão, e unicamente por esta razão, convém acolher as medidas de flexibilização monetária anunciadas por Mario Draghi com uma certa satisfação.

22/Janeiro/2015

[1] "OPINION OF ADVOCATE GENERAL CRUZ VILLALÓN" Cas 62/14, article 263, 14 janvier 2015, curia.europa.eu/juris/...

Ver também:
  • Medidas do BCE – um paliativo ao serviço dos interesses do grande capital financeiro , 22/Jan/15
  • Medidas do BCE , 22/Jan/15
  • QE is coming, but on German terms, 20/Jan/15
  • Introductory statement to the press conference , 22/Jan/15

    O original encontra-se em russeurope.hypotheses.org/3342

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 23/Jan/15