Os maus rapazes da Wall Street e os seus amigos permissivos de Washington

Os banksters ficaram loucos

por Pam Martens [*]

Imagine que foi a casa de um vizinho onde há uma criança mal comportada. Ao longo de anos você observou os pais repreenderem-na sempre demasiado suavemente, quando o seu comportamento desviante ia em crescendo: desde o pequeno furto até o assalto de bancos. Você sabia que com certeza a criança acabaria por ser apanhada e acabaria na prisão, mas não contava com uma coisa: os pais utilizavam a sua influência política a cada escalada dos crimes a fim de evitar que fosse processada, transformando efectivamente os responsáveis pelo interesse público em possibilitadores do crime. Quando estes possibilitadores "consertavam" o resultado de cada crime, estavam também a selar hermeticamente os registos da vista do público e a ocultar a perspectiva histórica.

Este cenário tipifica como o comportamento criminoso explodiu na Wall Street e porque o presidente Bush, o Congresso e os reguladores estão a tropeçar no escuro à procura de curas para uma crise financeira que não podem entender e nem conter: eles são possibilitadores que se recusam a admiti-lo.

Nada ilustra mais dramaticamente o contágio criminoso do que o facto de pela segunda vez em 13 anos, o condado de Orange, na Califórnia, ter descoberto a lama tóxica de Wall Street a ameaçar os seus fundos públicos.

Eis o que aconteceu da primeira vez: um corrector da Merrill Lynch, Michael Stamenson, vendeu milhares de milhões de dólares de títulos complexos (complex securities) a Orange County, os quais funcionavam como fundo de investimentos em pool para 200 cidades e escolas distritais no condado. O condado perdeu US$1,7 mil milhões quando o fundo altamente alavancado implodiu. Em consequência, o condado entrou em bancarrota o que resultou em graves prejuízos em perdas de empregos e cortes em serviços sociais para os pobres. Ao todo, a Merrill ganhou aproximadamente US$100 milhões em comissões e Stamenson arrecadou para si US$4,2 milhões apenas no período de dois anos entre 1993 e 1994.

Stamenson ficou imortalizado na prova apresentada em tribunal como sendo a estrela da equipe da Merrill Lynch de treino de correctores novatos, onde ele traçava mapas fora da estrada para o êxito na Wall Street: "a tenacidade de uma cobra cascavel, o coração de uma aranha viúva negra e a pele de um crocodilo".

Quando a evidência contra Stamenson e seus superiores hierárquicos na Merrill terminou no tribunal, a Merrill Lynch continuou a pagar-lhe uma compensação anual de US$750 mil e finalmente arrumou o caso por US$400 milhões e selou os documentos. Ela também pagou US$30 milhões ao condado a fim de terminar abruptamente um grande júri de investigação, o que levantou clamores de protestos pelo crime. Mais uma vez, os documentos e testemunhos foram selados da vista do público. Isto é o que acontece sistematicamente na liquidação de um caso quando um cliente ou empregado tenta processar uma firma de Wall Street e ao invés disso é conduzido a uma chamada Wall Street Star Chamber para arbitragem obrigatória.

Hoje, Orange County está longe de ser um caso isolado de banksters [NT1] enlouquecidos. O mesmo tipo de lama invade fundos públicos para escolas, cidades e pensões de costa a costa.

Um Fundo de Investimento de Governo Local (Government Investment Pool) na Florida assistiu recentemente a uma corrida sobre os seus activos depois de ter sido revelado que US$1,5 mil milhões de dívidas incumpridas e degradadas, cortesia da Wall Street, fazia parte deste supostamente seguro fundo de mercado monetário para centenas de cidades e distritos escolares na Florida.

Até mesmo quatro pequenas cidades norueguesas próximas ao Círculo Árctico perderam US$54 milhões com os títulos complexos criados pelo Citigroup e que lhes foram vendidos por um corrector local, a Terra Securities. Além disso, milhares de milhões de dólares desta lama invadiram furtivamente fundos de mercado de pequena escala em algumas das maiores e mais prestigiosas instituições financeiras nos EUA.

E, como se a situação já não fosse bastante perigosa, o secretário do Tesouro dos EUA, Hang Paulson, errou no diagnóstico do problema (intencionalmente ou não). O sr. Paulson pretende levar-nos a acreditar que se pudesse ajudar bastantes pessoas a evitarem o arresto das suas casas, mudando a sua embaraçosa taxa de hipoteca para uma taxa fixada no seu empréstimo subprime, terá dado um grande passo no alívio da crise financeira. Apesar de qualquer passo construtivo para manter pessoas nas suas casas dever ser aplaudido, o que está a explodir por todo o globo não é simplesmente as hipotecas subprime. O problema real decorre dos Veículos de Investimento Estruturado (Structured Investment Vehicles, SIVs) e das Entidades para Propósitos Especiais (Special Purpose Entities, SPEs) os quais, tal como a Enron, escondeu enormes quantias de dívida da observação pública, fazendo com que as companhias pareçam mais lucrativas e solventes do que realmente são.

Os media "de referência" também têm estado a implantar a ideia de que é tudo acerca de proprietários de casas e empréstimos hipotecários ao invés de banksters a esconderem dívidas incobráveis. Em 5 de Dezembro de 2007, a Associated Press, que está sindicada a jornais de todo o país, transmitiu esta declaração imprecisa; "SIVs são fundos de investimento criados por bancos como Citigroup Inc. ou HSBC Holdings PLC e vendidos a investidores. Os fundos tomam empréstimos de dinheiro a curto prazo e utilizam-no para comprar dívida hipotecária, aproveitando a diferença entre o que colectam na dívida hipotecária e o que pagam para tomar emprestado". [itálico acrescentado]

Dívida hipotecária? Segundo o Citigroup, o maior contribuidor para o buraco negro do SIVs, com mais de US$83 mil milhões em sete SIVs em 30 de Setembro de 2007, 58% dos seus haveres em SIV em dívida de instituições financeiras, com 32% de hipotecas relacionadas, 5% de empréstimos a estudantes, 4% em cartões de crédito e 1% em outros. Isto equivale a dizer que apenas US$70 milhões destes US$83 mil milhões tem exposição indirecta aos activos americanos subprime. Em 30 de Novembro de 2007 a Moody's considerou a possível degradação (bem como as presentes degradações de alguns títulos) de dívidas totalizando US$64,9 mil milhões que foram emitidas por seis SIVs do Citigroup. [1]

Por outras palavras, a dívida das instituições financeiras, juntamente com a implosão das hipotecas, montanhas de dívidas fora dos balanços e a pior transparência que já tivemos desde 1929, constituem o conjunto completo dos problemas.

Por que o Presidente ou secretário do Tesouro dos EUA perspectivariam esta crise como um problema das hipotecas subprime ao invés de apresentar o âmbito completo da mesma ao povo americano?

Declarar a verdade seria admitir que a administração Bush e os seus cúmplices capitalistas deixaram de auditar adequadamente os maiores bancos dos Estados Unidos; deixaram de dar atenção eles acumularam centenas de milhares de milhões de dólares escondidos fora dos seus balanços numa reencenação da Enronomics; deixaram de processar os banksters quando eles despejaram este resíduo tóxico nos pequenos fundos por todo o país; e deixaram de encarcerar os banksters antes de eles incendiarem os bancos e tornarem-se uma ameaça global à estabilidade financeira.

Agora, estes mesmos bancos não sabem o que escondem uns dos outros fora do balanço, quantos dos seus maiores clientes industriais esconderam fora do balanço, uma cortesia da propensão do Citigroup para transferir SPEs para outros; se o banco que é uma contraparte dos seus swaps de créditos não cumpridos ainda estará no negócio quando aquelas apólices de seguro forem mais necessárias. Portanto, dizem, nós simplesmente cessaremos de fazer negócios uns com os outros uma vez que todos somos culpados por associação com os mesmos permissivos corruptos de Washington.

E se bem que a Securities and Exchange Commission (SEC), o Federal Reserve Board (FRB) e o Congresso arquem com grande parte da culpa pela crise financeira, o Office of the Controller of the Currency (OCC) destaca-se como o actor absolutamente essencial para possibilitar a corrupção na Wall Street.

Considere-se o testemunho de 25 de Julho de 2007 da Federação dos Consumidores da América em seu próprio nome e de outros importantes grupos de consumidores no Comité de Serviços Financeiros do Congresso dos EUA:

Qualquer discussão acerca da qualidade da regulação federal de serviços financeiros deve começar por mencionar o "elefante na sala de visitas..." A recente decisão do Supremo Tribunal no processo Watters vs. Wachovia Bank, N.A., confirma uma regulação do Office of the Comptroller of the Currency (OCC) do Departamento do Tesouro que permite a subsidiárias operacionais de bancos nacionais violarem leis do estado com impunidade. O tribunal decidiu que subsidiárias operacionais de bancos estão sujeitas à supervisão do OCC – mesmo se efectivamente ela não existe – e não a licenciamento, relatórios e regimes de visitas dos estados nos quais operam as subsidiárias... O OCC tem mesmo de procurar impedir que promotores estaduais e reguladores da aplicação das leis do estado que ali actuam não sejam priorizados. A decisão recente do tribunal encoraja bancos nacionais e suas subsidiárias a ignorarem mesmo a mais razoável das leis do estado relativa ao consumidor.

A fim de sublinhar que o problema abrangente aqui é uma crise interbancária de confiança quanto aos buracos negros de corrupção e regulação de compadrio, ao invés da estreitamente definida "sujeira das hipotecas subprime", vamos examinar a cronologia do que aconteceu. A partir de Julho último, os swaps de crédito não cumprido de um banco britânico, o Northern Rock [NT2] , começaram a emitir um tique-taque mais ruidoso. Em Agosto, eles fizeram um súbito movimento adicional de ascenso, indicando um problema de solvência. Em Setembro, houve uma corrida ao banco (a primeira na Grã-Bretanha desde 1866). O banco entrou em colapso e o Banco da Inglaterra teve de utilizar dinheiro dos contribuintes para salvá-lo ao custo considerável de 29 mil milhões de libras ou cerca de US$60 mil milhões.

O que tem isto a ver com uma crise financeira nos EUA? Como se revela agora, este pequeno banco de 6000 empregados estabeleceu uma estrutura de dívida na chamada Granite, com base na Channel Island [NT3] , recheando-a com US$104 mil milhões de hipotecas residenciais britânicas (as quais estão agora a apresentar uma crescente propensão para o incumprimento). A acrescentar nova intriga e escândalo local, esse trust no offshore nomeou uma entidade beneficente das crianças com o Síndrome de Dow como parte do seu subterfúgio de financiamento, sem a permissão ou o conhecimento desta entidade. Isto desencadeou uma investigação completa por parte das autoridades britânicas.

A aterrorizar bancos deste lado do Atlântico está o conhecimento de que (1) duas das nossas maiores firmas da Wall Steet, o Citigroup e a Merrill Lynch, subscreveram dezenas de milhares de milhões daquele papel da Channel Island, o da Granite Master Issuer, e vendeu-o aqui nos EUA; (2) O Citibank, a principal unidade bancária do Citigroup, é o principal agente pagador; (3) grandes quantidades daquele papel, na data da abertura da SEC em 30 de Setembro de 2007, estão incubadas em mercados de dinheiro e fundos mútuos de rendimento fixo nos EUA, o que levanta algumas questões sérias de responsabilidade (liability) quanto ao Citigroup e Merrill; e (4) 30 por cento das hipotecas têm um rácio empréstimo/valor (loan to value, LTV) de 90 a 100 por cento ao passo que mais de 50 por cento têm um LTV de 80 a 100 por cento. [2]

Isto tresanda a Enron e Parmalat (a firma italiana de lacticínios que entrou em bancarrota) para um vasto conjunto da comunidade legal e bancária e uma vez que o Citigroup acabará por enfrentar julgamentos públicos em ambas estas burlas no próximo ano, o momento não podia ser menos propício para a construção de confiança.

O Parlamento britânico está a exigir a todos os actores e reguladores da crise financeira respostas em audiências públicas, ao passo que aqui nos EUA preferimos amoldar remédios para uma crise financeira que ainda temos de investigar ou entender.

Para recapitular: Houve a primeira corrida bancária em 140 anos na Grã-Bretanha. Tivemos a primeira corrida a um fundo público de mercado monetário aqui na Florida. Os mercados americanos de dívida mal tem funcionado durante quatro meses. Nossos maiores bancos não confiam uns nos outros.

Talvez um dos candidatos presidenciais pudesse deixar a campanha prolongar-se bastante a fim de provar as suas qualidades de liderança exigindo audiências de emergência no Congresso, o local em que nós o povo os pagamos para fazerem o trabalho do povo.

[NT1] Neologismo: Bankers + Gangsters = Banksters.
[NT2] Acerca do Northern Rock ver também Bancos dos EUA preparam-se para aumento da tempestade enquanto o dólar e o sistema de crédito cambaleiam , de Mike Whitney.
[NT3] Paraíso fiscal.

[1] Citigroup's 3rd Quarter 10Q filing with the SEC discussing its SIV
[2] Granite Master Issuer securitization filing with the SEC:

  • Para uma análise mais profunda ver também Pathology of Debt , de Henry C.K. Liu, o quinto artigo de uma série sua.   Trata-se no entanto de uma leitura difícil devido à complexidade do tema.   Os jogos nos mercados financeiros não estão abertos ao cidadão médio (excepto como vítima) e nem mesmo aos seus participantes de nível médio — eles só são abertos para os grandes actores e tubarões que os conceberam...

    [*] A autora trabalhou na Wall Street durante 21 anos. Ela não detém títulos de qualquer companhia mencionada neste artigo.

    O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/martens12072007.html


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 10/Dez/07