Coletes amarelos & descaramento
Como a brutalidade em França continua a ser invisível
Embora utilizem coletes de alta visibilidade, os que protestam em França
têm sido quase invisíveis nos chamados media "de
referência", provocando também um silêncio ensurdecedor
do movimento trabalhista e sindical e até mesmo da assim chamada
"esquerda" no seu bojo.
Se bem que uma cabeça quebrada ou mesmo uma vidraça partida em
Hong Kong ou na Venezuela muitas vezes lidere os noticiários, mais de um
ano de sublevação semanal e de movimentos de massa de
trabalhadores que se deparam com a extrema violência do estado
francês e o seu dolorosamente liberal presidente Macron têm sido
ignorados pela imprensa ocidental e pelos jornalistas da rádio e TV com
estudada arrogância.
Não pode haver justificação racional para isto. Hong Kong
está a quase 10.000 km da Inglaterra, Caracas a quase 8.000 km. A
França está a 50 km de distância. Não é
barato enviar e manter equipes de jornalistas no outro extremo da terra.
Proliferam viagens baratas para Paris.
Nenhum critério noticioso poderia justificar a quase total
ausência de cobertura da desordem generalizada e as multidões
maciças no nosso vizinho europeu mais próximo ao longo de um ano
inteiro. Na verdade, é tamanha a antipatia entre a elite inglesa e a
francesa (e vice-versa) que, tomando emprestada uma palavra alemã, seria
expectável que uma sensação de
schadenfreude
conduzisse a cobertura britânica, à velocidade máxima! Mas
não houve nada disso.
Já não são só os coletes amarelos. Obviamente, o
que aconteceu agora é que toda a classe trabalhadora organizada da
França entrou no campo de batalha. Grandes centrais sindicais
como o moderado CFDT, bem como a militante CGT com milhões de
membros estão agora a confrontar fisicamente o poder do estado
francês.
A causa imediata deste novo desenvolvimento é a "reforma" das
pensões de Macron. Nos dias de hoje, reformas são coisas
más, enquanto antigamente eram boas essencialmente fazendo os
trabalhadores franceses trabalharem mais por menos pensões após a
aposentadoria.
Mas, tal como com os coletes amarelos cujo
casus belli
original era um imposto sobre combustíveis agora trata-se muito
mais do que pensões.
A classe trabalhadora francesa está cansada da austeridade, cansada da
corrupção e dos excessos de trono de pavão do presidente
Macron, cansada da UE, cansada de toda a classe política. Precisamente a
fórmula que levou à vitória do Brexit do nosso lado da
Mancha.
Tradicionalmente, os franceses predispostos ao longo de séculos
à revolução estão longe de serem
conciliadores que se arrastam nos protestos. Por outro lado, a
"polícia de choque" francesa não faz prisioneiros. Uma
força irresistível depara-se com um objecto inamovível.
Mas uma coisa é a polícia agredir estudantes ou mesmo
trabalhadores comuns. Outra coisa é ver a polícia com
couraças a investir com toda a força equipamento de
protecção como tem acontecido nas últimas duas
semanas. Jamais se viu dois disciplinados serviços uniformizados
chocarem-se um contra o outro nas ruas de Paris desde... bem, desde sempre.
A crise parece estar a fugir do controle do estado francês; o Natal
poderia literalmente ter de ser cancelado. O turismo foi duramente atingido,
conheço pessoalmente três casais que cancelaram férias
românticas de Natal na capital francesa. As viagens aéreas, de
autocarro e de comboio ameaçam parar. Ficaríamos menos surpresos
ao acordar com a notícia de que a Assembleia Nacional havia sido
saqueada do que Louis Bourbon ao saber do assalto à Bastilha.
Dado o desafio quase existencial que está a ser escalado contra um dos
pilares gémeos da UE, pode-se começar a entender o silêncio
quase universal nas capitais ocidentais principalmente o seu medo do
poder do exemplo.
Mas por que o silêncio da "esquerda"?
Em parte, é uma sensação de vergonha pelo facto de os
trabalhadores franceses estarem a avançar a espécie de combate
que ela nunca sonharia contemplar. Mas em parte é a ausência de
liberalismo entre fileiras compactas de trabalhadores franceses. Eles
rejeitaram com desprezo a política de identidade que tanto infesta o que
passa como esquerda na maioria dos países ocidentais.
Não se trata de direitos dos gays, de emancipação negra,
de modismos de gênero neutro. Não se trata de requerentes de asilo
ou contra o racismo em defesa de imigrantes ou sobre a Bolívia ou
Venezuela ou contra o triste registo colonial da França nas actuais
guerras em África. Trata-se da classe trabalhadora francesa que
confronta o sistema capitalista de frente e com sangue vermelho nas ruas.
Trabalhadores franceses negros e (predominantemente) brancos, gays e
(predominantemente) heterossexuais, homens e mulheres, que se auto-identificam
apenas como trabalhadores cansados de serem roubados. Isto tudo é um
tanto demasiado... proletário para aquilo que se tornou a
"esquerda".
E tal como Nelson na Batalha de Copenhaga, eles levantam o telescópio
até o seu olho cego e declaram: "Não vejo navios". A
esquerda não vê os franceses em guerra, mas os trabalhadores
franceses podem vê-los. E não é uma visão bela.
18/Dezembro/2019
[*]
Director de cinema, escritor e orador. Foi membro do Parlamento britânico
durante 30 ano. É apresentador de shows na TV e na rádio.
O original encontra-se em
www.rt.com/op-ed/476161-pension-reform-protests-france/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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