França, estado policial
por José Goulão
Depois da aprovação da nova lei de espionagem interna (e externa)
no passado dia 5, a França governada pelos socialistas não
necessita de fascistas para nada, pode expedir a senhora Le Pen, família
e respectiva corte para a Ucrânia, por exemplo. Desde esse dia, e a
não ser que o Conselho Constitucional trace um X gigantesco e a vermelho
sobre esta "lei celerada", como é conhecida nos meios
democráticos, cada cidadão francês, ou mesmo cada
estrangeiro que pise solo gaulês ou se atreva a navegar pela internet,
é um potencial terrorista e, no caso provável de ser capturado
por uma qualquer das muitas sondas comportamentais que os serviços de
espionagem aplicam por atacado, terá enorme trabalheira para justificar
que não o é.
Através da nova lei das informações, aprovada no
Parlamento por 438 votos contra 86 (um número de opositores que, pela
sua insignificância, já foi comparado à
capitulação em 1940 através da entrega de plenos poderes
ao general Pétain), os serviços de espionagem franceses
vão dispor dos resultados de uma vigilância organizada e em massa
com recurso aos meios convencionais e aos mais avançados equipamentos
tecnológicos. Uma ofensiva global contra os direitos humanos, porque
aplicada à margem das instituições de controlo
judiciário e democrático, na maioria dos casos relegadas para
papéis a posteriori em função de alegados procedimentos
"de urgência", digamos, de oportunidade.
Tal como os Estados Unidos da América deram asas à
vigilância universal através da NSA, desenvolvida à luz da
"Lei Patriótica" nascida com o 11 de Setembro de 2001, os
socialistas franceses tiraram da cartola a sua "lei
patriótica" e o estilo NSA dois meses depois do ainda muito mal
explicado (em termos de falhanços dos serviços secretos, por
exemplo) atentado contra o Charlie Hebdo.
A nova lei visa combater o terrorismo; por isso, tudo o que se diz sobre
vigilância em massa é abusivo, explicam genericamente os autores e
defensores da lei. "Descobrimos que umas coisas, umas máquinas
chamadas algoritmos, podem ir ver se há ou não terroristas que
utilizam as nossas comunicações criptografadas, e como não
havia lei para enquadrar essa actividade" ela aí está,
explicou François Hollande, o Presidente da República,
dirigindo-se aos concidadãos como se fossem imbecis.
Qual é o "interesse público" definido pela nova lei
como suporte para a acção dos espiões? Segurança
nacional; salvaguarda dos elementos essenciais do potencial científico e
económico de França; prevenção do terrorismo,
criminalidade e delinquência organizados; reconstituição ou
manutenção de grupos dissolvidos; prevenção da
violência colectiva; defesa e prevenção dos interesses da
política externa francesa. Imaginar um comportamento que não seja
passível de caber neste menu, sobretudo conhecendo-se o enviesamento em
que os espiões são peritos quando agem sem controlo, é
pior que descobrir agulha em palheiro.
O esqueleto do projecto de lei é da autoria de um deputado socialista,
Jean-Jacques Urvois, que não esconde a sua repulsa pelo norte-americano
Edward Snowden, "um idiota útil ao serviço de grupos
terroristas". Além do primeiro-ministro Manuel Valls, outro dos
grandes defensores da lei no Parlamento foi o ministro do Interior, Bernard
Cazeneuve. Em sua opinião, a lei é perfeita, não tem os
defeitos que lhe apontam e não atenta contra a privacidade dos
cidadãos. "A vida privada é outro assunto, não se
trata de uma liberdade individual", assegura este ministro, que continua
no cargo apesar de se terem provado as suas mentiras a propósito do
assassínio pela polícia de um manifestante contra a
devastação de uma floresta.
Marc Trevic, um renomado juiz antiterrorista, desmonta os argumentos
governamentais. "Não é uma lei antiterrorista",
garante. "Abre caminho à generalização de
métodos intrusivos fora do controlo dos juízes
judiciários, os garantes das liberdades individuais no nosso
país".
Que métodos intrusivos? De tudo um pouco. Escutas telefónicas
comuns segundo procedimentos "de urgência" que escapam ao
controlo das entidades judiciárias; distribuição pelos
espiões de gadgets muito na moda nos Estados Unidos, como as
"dirtboxes" ou "Imsi-catchers", malas de dimensões
insuspeitas que captam as comunicações móveis num raio de
muitos metros em redor através da detecção dos dados dos
cartões SIM e dos próprios telefones; perseguição
através dos dados GPS de cidadãos que sejam detectados por
quaisquer das sondas de vigilância instaladas em escala industrial pelos
vários serviços de espionagem; vigilância generalizada da
internet através da recolha de dados pessoais e das conexões
entre internautas junto dos operadores dos serviços;
instalação de tecnologia de vigilância nas empresas
fornecedoras de acesso à internet e nas empresas de
telecomunicações, imposição que tem suscitado
protestos destas contra o facto de serem obrigadas a aceitar equipamentos que
lhes são estranhos.
O sistema proporciona, portanto, uma recolha aleatória e em massa de
dados pessoais e de instituições, que confluem para uma imensa
"caixa negra" de que os serviços de espionagem se servem a seu
belo prazer. Assim nasce o Estado policial francês, asfixiando o Estado
de Direito.
O passo é de tal maneira grave que esta lei seria
"inimaginável" na Alemanha, opinião compartilhada entre
sectores da oposição e meios afectos à própria
chanceler Merkel. "Inimaginável" na Alemanha; e em outros
países europeus, sempre tão inclinados a fazer gato-sapato da
vida privada do cidadão? Provavelmente poderão ser
"imagináveis", quando o mau exemplo está dado, é
tentador e parte de uma das "locomotivas" da União Europeia,
aliás bastante ronceira o que não vem ao caso.
18/Maio/2015
O original encontra-se em
mundocaohoje.blogspot.pt/2015/05/franca-estado-policial.html
Este artigo encontra-se em
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