Democracia Francesa Morta ou Viva? Ou talvez se deva dizer, enterrada ou
renascida? Porque para a maior parte das pessoas comuns, longe dos centros do
poder político, financeiro e mediático, em Paris, a democracia
já está moribunda, e o seu movimento é um esforço
para salvá-la. Desde que Margaret Thatcher decretou que "não
há alternativa", a política económica ocidental
é composta por tecnocratas para benefício dos mercados
financeiros, alegando que tais benefícios vão gotejar para a
população. O gotejamento secou e as pessoas estão cansadas
de ver as suas necessidades e desejos totalmente ignorados por uma elite que
"sabe melhor".
O discurso da véspera do Ano Novo, do Presidente Emmanuel Macron
à nação, deixou perfeitamente claro que depois de uma
tentativa pouco convincente de lançar algumas migalhas ao movimento de
protesto dos Coletes Amarelos (
Gilets Jaunes)
, ele decidiu endurecer.
A França está a entrar num período de turbulência. A
situação é muito complexa, mas aqui estão alguns
pontos para ajudar a compreender o panorama geral.
OS MÉTODOS
Os coletes amarelos reúnem-se em lugares ostensivos, onde podem ser
vistos: nos Campos Elíseos, em Paris, nas praças principais de
outras cidades e nas numerosas rotundas, junto às cidades pequenas. Ao
contrário das manifestações tradicionais, as marchas
parisienses foram muito soltas e espontâneas, as pessoas passeavam e
falavam umas com as outras, sem dirigentes e sem discursos.
A ausência de dirigentes é inerente ao movimento. Todos os
políticos, mesmo os amistosos, são olhados com
desconfiança e ninguém procura um novo líder.
As pessoas estão organizando as suas próprias reuniões
para desenvolver listas de queixas e exigências.
Na aldeia de Commercy, na Lorena, a meia hora de carro de Domrémy, onde
nasceu Joana d'Arc, os habitantes reúnem-se para ler as suas
proclamações. Seis deles leram em turnos, um parágrafo
cada um, deixando bem claro que não querem líderes, nem nenhum
porta-voz especial. Por vezes tropeçam numa palavra, não
estão acostumados a falar em público como os apresentadores da
TV. O seu "Segundo apelo dos Coletes Amarelos de Commercy", convida
os demais
a irem ali de 26 a 27 de Janeiro para uma "assembleia de assembleias".
AS EXIGÊNCIAS
As pessoas que inicialmente foram às as ruas vestindo coletes amarelos,
em 17 de Novembro, protestavam ostensivamente contra uma subida dos impostos da
gasolina e do gasóleo, que afectaria mais as pessoas na França
rural. Obcecado em favorecer as "cidades do mundo", o governo
francês tomou medidas sucessivas à custa das pequenas cidades e
aldeias e das pessoas que vivem lá. Esta foi a última gota. O
movimento mudou-se rapidamente para a questão básica: o direito
do povo de opinar sobre as medidas tomadas que afectam as suas vidas.
Democracia, numa palavra.
Durante décadas, partidos da esquerda e da direita, quaisquer que fossem
os seus discursos de campanha, uma vez no poder continuavam as políticas
ditadas pelos "mercados". Por esta razão, as pessoas perderam
a confiança em todos os partidos, em todos os políticos e
estão a exigir novas maneiras de as suas reclamações serem
escutadas.
O imposto sobre o combustível foi logo esquecido à medida que a
lista de exigências se tornou mais longa. Críticos do movimento
salientam que é impossível alcançar tantas
exigências. Não adianta dar atenção às
reivindicações populares, porque as pessoas simplórias
exigem tudo e o contrário.
Esta objeção é respondida pelo que surgiu rapidamente como
a sendo a exigência máxima e única do movimento: o
Referendo da Iniciativa dos Cidadãos (CIR).
O REFERENDO
Este quesito ilustra o bom senso do movimento. Em vez de fazer uma lista de
"obrigações a serem cumpridas", os CA pedem, apenas,
que as pessoas possam escolher e o referendo é a maneira de
escolher. A solicitação é para que um certo número
de signatários talvez 700 mil, talvez mais possa obter o
direito de convocar um referendo sobre uma questão da sua escolha. O
direito a um CIR existe na Suíça, em Itália e na
Califórnia. A ideia horroriza todos aqueles cuja profissão
é serem os 'sabichões'. Se as pessoas votarem, advertem os
'sabichões', com um arrepio, fá-lo-ão para todo tipo de
coisas absurdas,
Um modesto professor de uma faculdade em Marselha, Etienne Chouard, vem
desenvolvendo, há décadas, ideias sobre como organizar a
democracia directa, tendo o referendo como centro. A sua hora chegou com os
Coletes Amarelos. Ele insiste em que um referendo deve sempre ser realizado
após um longo debate e com tempo para reflexão, para evitar
decisões emocionais do momento. Tal referendo requer meios de
comunicação honestos e independentes, que não sejam todos
propriedade de interesses especiais. É preciso garantir que os
políticos que fazem as leis sigam a vontade popular expressa no
referendo. Tudo isto sugere a necessidade de uma convenção
constitucional do povo.
O referendo é um pormenor amargo na França, uma poderosa causa
subjacente a todo o movimento dos Coletes Amarelos. Em 2005, o Presidente
Chirac (insensatamente, de acordo com o seu ponto de vista) convocou um
referendo popular sobre a ratificação da proposta de
Constituição da União Europeia, certo de que seria
aprovada. A classe política, com poucas excepções, entrou
em plena retórica, reivindicando um futuro próspero como uma nova
potência mundial sob a nova Constituição e advertindo que,
caso contrário, a Europa poderia mergulhar, de novo, nas duas grandes
Guerras Mundiais. No entanto, os cidadãos comuns organizaram um
extraordinário movimento de auto-educação popular,
à medida que os grupos se reuniam para analisar os assustadores
documentos legais, percebendo o que eles significavam e o que implicavam. Em 29
de Maio de 2005, com uma participação de 68%, 55% dos franceses
votou pela rejeição da Constituição. Somente Paris
votou fortemente a favor da mesma.
Três anos mais tarde, a Assembleia Nacional isto é, os
políticos de todos os partidos votaram para adoptar praticamente
o mesmo texto, o qual em 2009 se tornou o Tratado de Lisboa.
Esse golpe à vontade popular claramente expressa, produziu tal
desilusão que muitos, impotentes, se afastaram da política. Agora
estão a voltar.
A VIOLÊNCIA
Desde o início o governo reagiu com violência, num desejo
visível de provocar respostas violentas a fim de condenar o movimento
como violento.
Um exército de polícias, vestidos como robots, cercou e bloqueou
grupos de Coletes Amarelos pacíficos, afogando-os em nuvens de
gás lacrimogéneo e disparando balas de borracha directamente
contra os manifestantes, ferindo gravemente centenas de pessoas (não
há números oficiais). Algumas pessoas perderam um olho ou uma
mão. O governo nada tem a dizer sobre isso.
No terceiro sábado de protesto, este exército de polícias
não conseguiu parar ou teve ordens para permitir que um
grande número de bandidos ou Black Blocs (quem sabe?) se infiltrasse no
movimento e destruísse propriedades, vandalizasse lojas, ateasse fogo a
contentores de lixo e carros estacionados, fornecendo aos media mundiais
imagens que provam que os Coletes Amarelos são perigosamente violentos.
Apesar de toda esta provocação, os Coletes Amarelos mantiveram-se
extraordinariamente calmos e determinados. Mas, é certo que
haverá algumas pessoas que perderão a calma e tentarão
reagir.
O BOXEUR
No oitavo sábado, 5 de Janeiro, um esquadrão de polícias
protegidos por plexiglass atacava violentamente os Coletes Amarelos numa ponte
sobre o rio Sena, quando um indivíduo corpulento perdeu a
paciência, saiu da multidão e foi ao ataque. Com os punhos,
espancou um polícia e fez com que os outros se afastassem. Esta cena
incrível foi filmada. Podia ver-se os Coletes Amarelos a tentar
segurá-lo, mas o Rambo era imparável.
Descobriu-se que era Christophe Dettinger, um cigano francês,
ex-campeão de boxe de pesos pesados da França. A sua alcunha
é "o cigano de Massy". Ele afastou-se da cena, mas fez um
vídeo antes de se entregar. "Reagi mal", disse, quando viu a
polícia a atacar mulheres e outras pessoas indefesas. Aconselhou o
movimento a afastar-se em paz.
Dettinger enfrenta sete anos de prisão. Em um dia, o seu fundo de defesa
acumulou 116.433 euros. O governo congelou o fundo sob um pretexto legal
que desconheço. Agora circula uma petição em seu favor.
A CALÚNIA
No seu discurso de Ano Novo, Macron repreendeu paternalmente o povo dizendo:
"Não podem trabalhar menos e ganhar mais" como se todos
eles quisessem passar a vida a descansar num iate e a observar os preços
das acções da bolsa a subir e a descer.
Em seguida, ele emitiu a sua declaração de guerra:
"Nestes dias vi coisas impensáveis e ouvi o
inaceitável". Aparentemente aludindo aos poucos políticos da
oposição que ousaram simpatizar com os manifestantes, repreendeu
aqueles que fingem "falar em nome do povo", mas que são,
apenas, os "porta-vozes de uma multidão odiosa, que persegue os
representantes eleitos, polícias, jornalistas, judeus, estrangeiros e
homossexuais. É simplesmente a negação da
França".
Os Coletes Amarelos não estão a "perseguir"
ninguém. A polícia é que tem andado atrás deles. De
facto, as pessoas falaram vigorosamente contra as equipas com câmaras de
gravação de canais que, sistematicamente, distorcem o movimento.
Nem uma palavra do movimento foi ouvida contra estrangeiros ou homossexuais.
A palavra-chave é judeus.
Qui veut noyer son chien l'accuse de la rage
. (Provérbio francês).
Como diz o ditado francês, quem quer afogar o seu cão alega que
ele tem raiva. Hoje, quem quer arruinar uma carreira, vingar-se de um rival,
desgraçar um indivíduo ou destruir um movimento, acusa-o de
anti-semitismo.
Então, diante de um movimento democrático em ascensão, era
inevitável jogar a carta do "anti-semitismo".
Estatisticamente, era algo quase certo. Em quase todos os lotes
aleatórios de centenas de milhares de pessoas, pode-se encontrar um ou
dois que têm algo negativo a dizer sobre um judeu. Isso é tudo. Os
falcões dos media estão à procura. O menor incidente pode
ser usado para sugerir que o motivo real do movimento é reviver o
Holocausto.
Esta pequena canção ligeiramente irônica, apresentada num
dos círculos de tráfego da França, contrasta o
"bom" establishiment com a gentalha "ruim". É um
enorme sucesso no YouTube. Dá o tom do movimento.
Les Gentils et les Méchants.
Não demorou muito para este número feliz ser acusado de
anti-semitismo. Por quê? Porque foi ironicamente dedicado a dois dos mais
virulentos críticos dos Coletes Amarelos: A estrela de Maio de 68,
Daniel Cohn-Bendit e o velho "novo filósofo", Bernard-Henri
Lévy. A nova geração não os apoia. Mas esperem,
eles são judeus. Ah! Anti-semitismo!
A REPRESSÃO
Diante do que o porta-voz do governo, Benjamin Griveaux, descreveu como
"agitadores" e "insurrectos" que querem "derrubar o
governo"; o primeiro-ministro, Edouard Philippe, anunciou uma nova
"lei para proteger melhor, o direito às
manifestações". A sua medida principal é: punir
fortemente os organizadores de uma manifestação cuja hora e local
não teve aprovação oficial.
Na verdade, a polícia já havia prendido Eric Drouet, motorista de
camião de 33 anos, por organizar uma pequena cerimónia de velas
em homenagem às vítimas do movimento. Houve muitas outras
prisões, sem qualquer informação sobre as mesmas.
(Casualmente, durante as férias, bandidos nos arredores de várias
cidades realizavam a sua incineração ritual de carros
estacionados, sem qualquer publicidade ou repressão. Eram carros de
pessoas da classe trabalhadora que precisam deles para ir trabalhar, não
eram os carros preciosos dos quarteirões da classe rica de Paris, cuja
destruição causou tamanho escândalo.)
Em 7 de Janeiro, Luc Ferry, um "filósofo" e antigo ministro da
Juventude, Educação e Pesquisa, deu uma entrevista
radiofónica, na mui respeitável Radio Classique em que declarou:
"A polícia não tem meios para acabar com esta
violência. É insuportável. Escute, francamente, quando se
vê indivíduos a dar pontapés a um pobre polícia
quando ele está caído, é o suficiente! Deixem que eles
usem armas, de uma vez por todas, basta! [ ] Tanto quanto eu saiba, temos
o quarto exército do mundo, capaz de pôr fim a este lixo".
Ferry pediu a Macron para fazer uma coligação com os
republicanos, a fim de promover as suas "reformas". No mês
passado, numa coluna contra o Referendo da Iniciativa dos Cidadãos,
Ferry escreveu que "o actual desconcerto de especialistas e as
críticas ao elitismo é a pior calamidade dos nossos tempos".
OS ANTIFA
Onde quer que as pessoas se reúnam, os grupos Antifa podem levar a cabo
a sua busca indiscriminada para erradicar "fascistas". Em
Bordéus, no último sábado, os Coletes Amarelos tiveram que
lutar contra um ataque dos Antifa.
Agora está completamente claro (como de facto sempre esteve) que os
"antifascistas" autoproclamados são os cães de guarda
do status quo. Na sua procura incansável por "fascistas", os
Antifa atacam qualquer coisa que se mova. Com efeito, eles protegem a
estagnação. E, curiosamente, a violência dos Antifa
é tolerada pelo mesmo Estado e pela mesma polícia que insulta,
ataca e prende manifestantes mais pacíficos. Em resumo, os Antifa
são as tropas de assalto do sistema actual.
OS MEDIA
Sejam cépticos. Pelo menos em França, os grandes media
estão solidamente ao lado da "ordem", significando Macron, e
os media estrangeiros tendem a reflectir o que a comunicação
mediática nacional escreve e diz. Além do mais, como regra geral,
quando se trata da França, os media anglófonos erram muitas vezes.
O FIM
Não está à vista. Isto pode não ser uma
revolução, mas é uma revelação da natureza
real do "sistema". O poder reside numa tecnocracia ao serviço
dos "Mercados", ou seja, do poder do capital financeiro. Esta
tecnocracia aspira a refazer a sociedade humana, as nossas próprias
sociedades e as de todo o planeta, no interesse de um certo capitalismo. Ele
usa sanções económicas, propaganda avassaladora e
força militar (NATO) num projecto de
"globalização" que molda a vida das pessoas sem o seu
consentimento. Macron é a própria corporificação
deste sistema. Foi escolhido por esta famosa elite a fim de realizar as medidas
ditadas pelos "Mercados", impostos pela União Europeia. Ele
não pode desistir. Mas agora que o povo acordou para
o que está a acontecer, ele também não pararão.
Apesar de todo o lamentável declínio do seu sistema escolar, os
franceses de hoje são tão bem-educados e razoáveis quanto
se pode esperar de qualquer população. Se forem incapazes de
democracia, então a democracia é impossível.