Democracia francesa, morta ou viva?

– Os Coletes Amarelos em 2019

por Diana Johnstone [*]

Macron considera-se um novo rei. Democracia Francesa Morta ou Viva? Ou talvez se deva dizer, enterrada ou renascida? Porque para a maior parte das pessoas comuns, longe dos centros do poder político, financeiro e mediático, em Paris, a democracia já está moribunda, e o seu movimento é um esforço para salvá-la. Desde que Margaret Thatcher decretou que "não há alternativa", a política económica ocidental é composta por tecnocratas para benefício dos mercados financeiros, alegando que tais benefícios vão gotejar para a população. O gotejamento secou e as pessoas estão cansadas de ver as suas necessidades e desejos totalmente ignorados por uma elite que "sabe melhor".

O discurso da véspera do Ano Novo, do Presidente Emmanuel Macron à nação, deixou perfeitamente claro que depois de uma tentativa pouco convincente de lançar algumas migalhas ao movimento de protesto dos Coletes Amarelos ( Gilets Jaunes) , ele decidiu endurecer.

A França está a entrar num período de turbulência. A situação é muito complexa, mas aqui estão alguns pontos para ajudar a compreender o panorama geral.

OS MÉTODOS
Os coletes amarelos reúnem-se em lugares ostensivos, onde podem ser vistos: nos Campos Elíseos, em Paris, nas praças principais de outras cidades e nas numerosas rotundas, junto às cidades pequenas. Ao contrário das manifestações tradicionais, as marchas parisienses foram muito soltas e espontâneas, as pessoas passeavam e falavam umas com as outras, sem dirigentes e sem discursos.

A ausência de dirigentes é inerente ao movimento. Todos os políticos, mesmo os amistosos, são olhados com desconfiança e ninguém procura um novo líder.

As pessoas estão organizando as suas próprias reuniões para desenvolver listas de queixas e exigências.

Na aldeia de Commercy, na Lorena, a meia hora de carro de Domrémy, onde nasceu Joana d'Arc, os habitantes reúnem-se para ler as suas proclamações. Seis deles leram em turnos, um parágrafo cada um, deixando bem claro que não querem líderes, nem nenhum porta-voz especial. Por vezes tropeçam numa palavra, não estão acostumados a falar em público como os apresentadores da TV. O seu "Segundo apelo dos Coletes Amarelos de Commercy", convida os demais a irem ali de 26 a 27 de Janeiro para uma "assembleia de assembleias".

AS EXIGÊNCIAS
As pessoas que inicialmente foram às as ruas vestindo coletes amarelos, em 17 de Novembro, protestavam ostensivamente contra uma subida dos impostos da gasolina e do gasóleo, que afectaria mais as pessoas na França rural. Obcecado em favorecer as "cidades do mundo", o governo francês tomou medidas sucessivas à custa das pequenas cidades e aldeias e das pessoas que vivem lá. Esta foi a última gota. O movimento mudou-se rapidamente para a questão básica: o direito do povo de opinar sobre as medidas tomadas que afectam as suas vidas. Democracia, numa palavra.

Durante décadas, partidos da esquerda e da direita, quaisquer que fossem os seus discursos de campanha, uma vez no poder continuavam as políticas ditadas pelos "mercados". Por esta razão, as pessoas perderam a confiança em todos os partidos, em todos os políticos e estão a exigir novas maneiras de as suas reclamações serem escutadas.

O imposto sobre o combustível foi logo esquecido à medida que a lista de exigências se tornou mais longa. Críticos do movimento salientam que é impossível alcançar tantas exigências. Não adianta dar atenção às reivindicações populares, porque as pessoas simplórias exigem tudo e o contrário.

Esta objeção é respondida pelo que surgiu rapidamente como a sendo a exigência máxima e única do movimento: o Referendo da Iniciativa dos Cidadãos (CIR).

O REFERENDO
Este quesito ilustra o bom senso do movimento. Em vez de fazer uma lista de "obrigações a serem cumpridas", os CA pedem, apenas, que as pessoas possam escolher – e o referendo é a maneira de escolher. A solicitação é para que um certo número de signatários – talvez 700 mil, talvez mais – possa obter o direito de convocar um referendo sobre uma questão da sua escolha. O direito a um CIR existe na Suíça, em Itália e na Califórnia. A ideia horroriza todos aqueles cuja profissão é serem os 'sabichões'. Se as pessoas votarem, advertem os 'sabichões', com um arrepio, fá-lo-ão para todo tipo de coisas absurdas,

Um modesto professor de uma faculdade em Marselha, Etienne Chouard, vem desenvolvendo, há décadas, ideias sobre como organizar a democracia directa, tendo o referendo como centro. A sua hora chegou com os Coletes Amarelos. Ele insiste em que um referendo deve sempre ser realizado após um longo debate e com tempo para reflexão, para evitar decisões emocionais do momento. Tal referendo requer meios de comunicação honestos e independentes, que não sejam todos propriedade de interesses especiais. É preciso garantir que os políticos que fazem as leis sigam a vontade popular expressa no referendo. Tudo isto sugere a necessidade de uma convenção constitucional do povo.

O referendo é um pormenor amargo na França, uma poderosa causa subjacente a todo o movimento dos Coletes Amarelos. Em 2005, o Presidente Chirac (insensatamente, de acordo com o seu ponto de vista) convocou um referendo popular sobre a ratificação da proposta de Constituição da União Europeia, certo de que seria aprovada. A classe política, com poucas excepções, entrou em plena retórica, reivindicando um futuro próspero como uma nova potência mundial sob a nova Constituição e advertindo que, caso contrário, a Europa poderia mergulhar, de novo, nas duas grandes Guerras Mundiais. No entanto, os cidadãos comuns organizaram um extraordinário movimento de auto-educação popular, à medida que os grupos se reuniam para analisar os assustadores documentos legais, percebendo o que eles significavam e o que implicavam. Em 29 de Maio de 2005, com uma participação de 68%, 55% dos franceses votou pela rejeição da Constituição. Somente Paris votou fortemente a favor da mesma.

Três anos mais tarde, a Assembleia Nacional – isto é, os políticos de todos os partidos – votaram para adoptar praticamente o mesmo texto, o qual em 2009 se tornou o Tratado de Lisboa.

Esse golpe à vontade popular claramente expressa, produziu tal desilusão que muitos, impotentes, se afastaram da política. Agora estão a voltar.

'. A VIOLÊNCIA
Desde o início o governo reagiu com violência, num desejo visível de provocar respostas violentas a fim de condenar o movimento como violento.

Um exército de polícias, vestidos como robots, cercou e bloqueou grupos de Coletes Amarelos pacíficos, afogando-os em nuvens de gás lacrimogéneo e disparando balas de borracha directamente contra os manifestantes, ferindo gravemente centenas de pessoas (não há números oficiais). Algumas pessoas perderam um olho ou uma mão. O governo nada tem a dizer sobre isso.

No terceiro sábado de protesto, este exército de polícias não conseguiu parar – ou teve ordens para permitir – que um grande número de bandidos ou Black Blocs (quem sabe?) se infiltrasse no movimento e destruísse propriedades, vandalizasse lojas, ateasse fogo a contentores de lixo e carros estacionados, fornecendo aos media mundiais imagens que provam que os Coletes Amarelos são perigosamente violentos.

Apesar de toda esta provocação, os Coletes Amarelos mantiveram-se extraordinariamente calmos e determinados. Mas, é certo que haverá algumas pessoas que perderão a calma e tentarão reagir.

O BOXEUR
No oitavo sábado, 5 de Janeiro, um esquadrão de polícias protegidos por plexiglass atacava violentamente os Coletes Amarelos numa ponte sobre o rio Sena, quando um indivíduo corpulento perdeu a paciência, saiu da multidão e foi ao ataque. Com os punhos, espancou um polícia e fez com que os outros se afastassem. Esta cena incrível foi filmada. Podia ver-se os Coletes Amarelos a tentar segurá-lo, mas o Rambo era imparável.

Descobriu-se que era Christophe Dettinger, um cigano francês, ex-campeão de boxe de pesos pesados da França. A sua alcunha é "o cigano de Massy". Ele afastou-se da cena, mas fez um vídeo antes de se entregar. "Reagi mal", disse, quando viu a polícia a atacar mulheres e outras pessoas indefesas. Aconselhou o movimento a afastar-se em paz.

Dettinger enfrenta sete anos de prisão. Em um dia, o seu fundo de defesa acumulou 116.433 euros. O governo congelou o fundo – sob um pretexto legal que desconheço. Agora circula uma petição em seu favor.

A CALÚNIA
No seu discurso de Ano Novo, Macron repreendeu paternalmente o povo dizendo: "Não podem trabalhar menos e ganhar mais" – como se todos eles quisessem passar a vida a descansar num iate e a observar os preços das acções da bolsa a subir e a descer.

Em seguida, ele emitiu a sua declaração de guerra:

"Nestes dias vi coisas impensáveis e ouvi o inaceitável". Aparentemente aludindo aos poucos políticos da oposição que ousaram simpatizar com os manifestantes, repreendeu aqueles que fingem "falar em nome do povo", mas que são, apenas, os "porta-vozes de uma multidão odiosa, que persegue os representantes eleitos, polícias, jornalistas, judeus, estrangeiros e homossexuais. É simplesmente a negação da França".

Os Coletes Amarelos não estão a "perseguir" ninguém. A polícia é que tem andado atrás deles. De facto, as pessoas falaram vigorosamente contra as equipas com câmaras de gravação de canais que, sistematicamente, distorcem o movimento.

Nem uma palavra do movimento foi ouvida contra estrangeiros ou homossexuais.

A palavra-chave é judeus.

Qui veut noyer son chien l'accuse de la rage . (Provérbio francês).

Como diz o ditado francês, quem quer afogar o seu cão alega que ele tem raiva. Hoje, quem quer arruinar uma carreira, vingar-se de um rival, desgraçar um indivíduo ou destruir um movimento, acusa-o de anti-semitismo.

Então, diante de um movimento democrático em ascensão, era inevitável jogar a carta do "anti-semitismo". Estatisticamente, era algo quase certo. Em quase todos os lotes aleatórios de centenas de milhares de pessoas, pode-se encontrar um ou dois que têm algo negativo a dizer sobre um judeu. Isso é tudo. Os falcões dos media estão à procura. O menor incidente pode ser usado para sugerir que o motivo real do movimento é reviver o Holocausto.

Esta pequena canção ligeiramente irônica, apresentada num dos círculos de tráfego da França, contrasta o "bom" establishiment com a gentalha "ruim". É um enorme sucesso no YouTube. Dá o tom do movimento. Les Gentils et les Méchants.

Não demorou muito para este número feliz ser acusado de anti-semitismo. Por quê? Porque foi ironicamente dedicado a dois dos mais virulentos críticos dos Coletes Amarelos: A estrela de Maio de 68, Daniel Cohn-Bendit e o velho "novo filósofo", Bernard-Henri Lévy. A nova geração não os apoia. Mas esperem, eles são judeus. Ah! Anti-semitismo!

A REPRESSÃO
Diante do que o porta-voz do governo, Benjamin Griveaux, descreveu como "agitadores" e "insurrectos" que querem "derrubar o governo"; o primeiro-ministro, Edouard Philippe, anunciou uma nova "lei para proteger melhor, o direito às manifestações". A sua medida principal é: punir fortemente os organizadores de uma manifestação cuja hora e local não teve aprovação oficial.

Na verdade, a polícia já havia prendido Eric Drouet, motorista de camião de 33 anos, por organizar uma pequena cerimónia de velas em homenagem às vítimas do movimento. Houve muitas outras prisões, sem qualquer informação sobre as mesmas. (Casualmente, durante as férias, bandidos nos arredores de várias cidades realizavam a sua incineração ritual de carros estacionados, sem qualquer publicidade ou repressão. Eram carros de pessoas da classe trabalhadora que precisam deles para ir trabalhar, não eram os carros preciosos dos quarteirões da classe rica de Paris, cuja destruição causou tamanho escândalo.)

Em 7 de Janeiro, Luc Ferry, um "filósofo" e antigo ministro da Juventude, Educação e Pesquisa, deu uma entrevista radiofónica, na mui respeitável Radio Classique em que declarou: "A polícia não tem meios para acabar com esta violência. É insuportável. Escute, francamente, quando se vê indivíduos a dar pontapés a um pobre polícia quando ele está caído, é o suficiente! Deixem que eles usem armas, de uma vez por todas, basta! […] Tanto quanto eu saiba, temos o quarto exército do mundo, capaz de pôr fim a este lixo".

Ferry pediu a Macron para fazer uma coligação com os republicanos, a fim de promover as suas "reformas". No mês passado, numa coluna contra o Referendo da Iniciativa dos Cidadãos, Ferry escreveu que "o actual desconcerto de especialistas e as críticas ao elitismo é a pior calamidade dos nossos tempos".

OS ANTIFA
Onde quer que as pessoas se reúnam, os grupos Antifa podem levar a cabo a sua busca indiscriminada para erradicar "fascistas". Em Bordéus, no último sábado, os Coletes Amarelos tiveram que lutar contra um ataque dos Antifa.

Agora está completamente claro (como de facto sempre esteve) que os "antifascistas" autoproclamados são os cães de guarda do status quo. Na sua procura incansável por "fascistas", os Antifa atacam qualquer coisa que se mova. Com efeito, eles protegem a estagnação. E, curiosamente, a violência dos Antifa é tolerada pelo mesmo Estado e pela mesma polícia que insulta, ataca e prende manifestantes mais pacíficos. Em resumo, os Antifa são as tropas de assalto do sistema actual.

OS MEDIA
Sejam cépticos. Pelo menos em França, os grandes media estão solidamente ao lado da "ordem", significando Macron, e os media estrangeiros tendem a reflectir o que a comunicação mediática nacional escreve e diz. Além do mais, como regra geral, quando se trata da França, os media anglófonos erram muitas vezes.

O FIM
Não está à vista. Isto pode não ser uma revolução, mas é uma revelação da natureza real do "sistema". O poder reside numa tecnocracia ao serviço dos "Mercados", ou seja, do poder do capital financeiro. Esta tecnocracia aspira a refazer a sociedade humana, as nossas próprias sociedades e as de todo o planeta, no interesse de um certo capitalismo. Ele usa sanções económicas, propaganda avassaladora e força militar (NATO) num projecto de "globalização" que molda a vida das pessoas sem o seu consentimento. Macron é a própria corporificação deste sistema. Foi escolhido por esta famosa elite a fim de realizar as medidas ditadas pelos "Mercados", impostos pela União Europeia. Ele não pode desistir. Mas agora que o povo acordou para o que está a acontecer, ele também não pararão. Apesar de todo o lamentável declínio do seu sistema escolar, os franceses de hoje são tão bem-educados e razoáveis quanto se pode esperar de qualquer população. Se forem incapazes de democracia, então a democracia é impossível.

11/Janeiro/2019

[*] Autora de Fools' Crusade: Yugoslavia, Nato, and Western Delusions

O original encontra-se em www.unz.com/article/french-democracy-dead-or-alive/ . Tradução de Luisa Vasconcelos.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
28/Jan/19