Mélenchon, a boiada e a dignidade política
por Jacques Sapir
Desde que se divulgaram os resultados do primeiro turno da
eleição presidencial [na França], quer dizer, desde a
noite do domingo passado, Jean-Luc Mélenchon vem enfrentando uma chuva
de críticas tão indecentes quanto sem justificativa. A causa
é a decisão que anunciou, de não tomar partido no duelo
entre
Mme
Marine le Pen e
M.
Emmanuel Macron. Por isso, Mélenchon está sendo acusado de
todos os males, num movimento de histeria coletiva no qual os fatos são
manipulados de modo vergonhoso.
Mais uma vez, é a boiada de jornalistas contratados para matar. Dessa
vez, ativa com extraordinária falta de vergonha, o que deixa à
vista o seu lado político a favor de todas as escolhas
retrógradas propagandeadas por Emmanuel Macron. Esse
"eu-apelismo"
[fr. "jappellisme"],
para usar uma neologia inventada por alguns jornalistas, faz ver a
transformação massiva, embora, claro, não total, dos
jornalistas em propagandistas. Tivemos o aperitivo, na campanha para o
referendo de 2005.
Várias vezes critiquei Jean-Luc Mélenchon, pela imprensa, ou por
este blog. Continuo e continuarei a criticá-lo numa série de
pontos. Mas sinto-me obrigado a dizer aqui que o apoio, contra aquela boiada
'jornalística' sedenta de sangue, que baba e que quer realmente morder.
Apoio Mélenchon porque defendo o direito dele de recusar a escolha que
lhe foi apresentada. Pode-se criticar sua posição, pode-se
debater muito. Nada porém justifica os ataques odiosos de que é
alvo, nem a campanha de assassinato de reputação que sofrem ele e
seu movimento " France Insoumise " [França
Insubmissa].
Porque, sejam quais forem as críticas que se façam a
Mme
Marine le Pen, e já fiz várias neste blog, a decência
obrigaria aquela mesma boiada a declarar que nada há de
" fascista ", nem no programa dela nem no comportamento de
seu movimento. Não há milícias armadas pelas ruas. E as
que há vêm, já há anos de outro lugar, que
não é a Frente Nacional. Pretender que a Frente Nacional seria
" anti-Republicana " é expor-se a uma evidente
contradição: se esse movimento cria qualquer tipo de
ameaça contra a República, teria de ser proibido, e seus
dirigentes, presos. Se não aconteceu, é sinal de que a Frente
Nacional não ameaça a República.
Ao se fazerem ver 'enrolados na bandeira' e ao tentarem abrigar-se sob a
História, a boiada 'jornalística' e seus muitos teclados alugados
encontram terreno firme a partir do qual atacar.
O programa defendido por
Mme.
Marine le Pen é programa populista, com lados bons e também com
lados ruins. É programa soberanista, ainda que inclua derrapagens, como
a questão do direito do solo e da proteção social. Podemos
contestá-lo. Podemos até reprová-lo. Mas fazer desse
programa um espantalho [para empurrar eleitores na direção de
Macron], e ridículo no mais alto grau. Já não estamos na
Alemanha de 1933. Já não estamos sequer na França de 2002.
Tudo mudou profundamente, exceto, parece, a inconsciência e a
ignorância crassas dessa boiada babenta que aí está,
tocando a mesma velha partitura que já ouvimos quando do referendo de
2005. Quando, vale lembrar, o 'ideário' da boiada 'jornalística'
foi derrotado!
O programa de Emmanuel Macron, por seu lado, não é de causar
inveja a ninguém, para dizer o mínimo. É programa de
rendição e submissão à globalização e
braço armado da globalização, que é a
política do governo alemão. É programa de
destruição do Direito do Trabalho, programa de
uberização da sociedade. Além disso, é programa que
traz um projeto de sociedade no qual os indivíduos seriam completamente
atomizados, entregues a lei do mercado e do " pagamento frio no
guichê ", do acordado sobre o legislado. Esse programa, sim,
provoca graves inquietações. E são
inquietações legítimas. São
inquietações de tal ordem que absolutamente proíbem que se
vote a favor de Emmanuel Macron.
É perfeitamente compreensível que tantos comecem a considerar que
o programa de Macron cria para a França perigo muito mais grave e mais
imediato que o de
Mme
Marine le Pen e, em todos os casos, temos de poder ouvir essas vozes!
Isso absolutamente não converte os que defendem esse direito em
apoiadores de algum fascismo, tanto mais imaginário e fantasiado quanto
mais aparece denunciado com 'fervor' suposto democrático jamais visto.
O candidato Macron, esse sim, finge que seria portador de
" valores " radicalmente diversos dos de sua
adversária. E ao fazê-lo, comprova sobretudo que confunde os
valores e os princípios, e que não sabe (sequer) do que fala. E o
tom berrado histérico dos discursos pró-Macron, também
ele, é altamente inquietante.
Não se trata aqui de manifestar meu voto. Além de o lugar
não ser adequado, não me sinto obrigado a fazê-lo, dado que
não tenho qualquer responsabilidade na vida política, sindical ou
associativa. E, tanto quanto me consta, o segredo do voto é direito
democrático. Esse é um dos
" princípios " da República, não um
" valor " como Emmanuel Macron anda inventado.
Mas, quando um homem como Jean-Luc Mélenchon vê-se injustamente
atacado e ultrajantemente caricaturado, quando a mídia-empresa passa a
operar como serviço de propaganda, há grave risco, muito real, de
totalitarismo. Só que o risco vem, muito mais, do lado dos apoiadores de
Emmanuel Macron, que de Marine le Pen. Então é meu dever apoiar
Jean-Luc Mélenchon. Nada disso apaga as críticas que já
lhe fiz e possa vir a fazer-lhe (e vale a inversa, quanto às
críticas que ele fez a mim e que venha a fazer).
A posição de Mélenchon é posição
digna e corajosa, perfeitamente compreensível, mesmo que não a
adotemos inteiramente. Declará-lo assim, publicamente é
questão de honra política, mas também é
questão de saúde pública. Sem honra política e
insalubres são os comportamentos da boiada 'jornalística'. Essa
boiada é, sim, verdadeiro e grave risco a que está exposta a
democracia na França. Mais dia menos dia, será preciso
limpar os estábulos de Áugias
.
02/Maio/2017
O original encontra-se em
http://russeurope.hypotheses.org/5948
e a tradução de Vila Vudu em
http://russeurope.hypotheses.org/5957
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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