Cunhal e o anti-imperialismo: a propósito da Grécia
por João Vilela
A ideia de que, sob o capitalismo, a única arma de que o proletariado
dispõe é a sua organização, é uma verdade
nunca repetida vezes suficientes. É munido apenas da sua
organização de classe que o proletariado comparece diante da
organização de classe da burguesia, nas suas mais variadas
formas: o Estado da burguesia, os exércitos da burguesia, as
polícias da burguesia, os partidos da burguesia, os jornais e as TVs, as
universidades e as organizações internacionais fundadas,
alimentadas, e montadas com precisão milimétrica para auxiliar o
esforço predatório e explorador da burguesia.
Organizações que, importa realçar, têm sempre um
conjunto assinalável de planos b, c, d, x, y, o que for
necessário, para perpetuarem a sua dominação. A
história dos últimos 40 anos, em Portugal, é aos mais
diversos títulos elucidativa nessa matéria.
O plano b da burguesia portuguesa uma vez derrubado o fascismo e libertadas as
colónias africanas estava de há muito delineado, e foi cedo
apontado por ninguém menos que Álvaro Cunhal. Já em 1964,
no
Rumo à Vitória,
Cunhal escrevia que "há antifascistas que defendem que o movimento
democrático português jogue já hoje na carta do Mercado
Comum, prometendo aos monopólios alemães, franceses, e italianos,
todas as facilidades e vantagens após o derrubamento da ditadura
fascista"
[1]
. A precisão milimétrica com que este plano se cumpriu nos anos
que se seguiram ao 25 de Abril, quando estes tais "antifascistas" se
transformaram no PS e no PPD, é assombrosa. Como assombrosa é a
afirmação, que veio a fazer dois anos mais tarde, de que "a
admitir-se a sobrevivência no essencial do aparelho de Estado fascista,
as liberdades estariam desde o início ameaçadas, e não
deixariam de ser violadas e suprimidas pelo mesmo aparelho de Estado, no dia em
que as classes que efectivamente continuariam a dominar esse aparelho sentissem
ameaçados os seus interesses"
[2]
.
Estes dois ensinamentos de Cunhal têm uma aplicação
evidente ao caso grego. São os dois elementos fundamentais que
constituem o caso grego, sem os quais nada do que na Grécia se passa
seria minimamente legível para quem observa o desenrolar dos
acontecimentos. Por um lado, as "facilidades e vantagens" dadas pela
burguesia grega aos monopólios alemães dentro do seu país,
e a fusão operada entre os interesses da burguesia grega e os do
imperialismo, que reservaram à primeira um estatuto de sócia
menor e a absoluta e definitiva ausência de um papel
histórico a cumprir. A Grécia vive hoje num estatuto em que
"cada dólar, cada libra, cada marco [e hoje em dia, sobretudo, cada
euro] investido no país é mais uma vergonhosa corrente amarrada
à independência" nacional
[3]
e em que a burguesia grega e o imperialismo alemão, os tais
"gémeos siameses unidos não pelas costas mas pela
barriga"
[4]
, na divertida e esclarecedora metáfora de Cunhal, agem concertadamente
para explorar e oprimir os trabalhadores da Grécia. Sendo que o fazem
e aqui estamos no segundo e crucial ponto porque dispõem
de uma organização política, económica,
diplomática, e quando for preciso policial e militar, para vibrar sobre
os trabalhadores gregos as mais violentas agressões. Ainda no
Rumo à Vitória,
Cunhal não podia ser mais esclarecedor sobre este ponto: "o
domínio imperialista estrangeiro (
) cria uma dificuldade
suplementar para a libertação do povo português: é a
força económica, diplomática, e militar, que está
por detrás dos monopólios estrangeiros"
[5]
.
Com essa força económica, diplomática e militar, o
diálogo é de tal modo impossível que a sua proposta
é já ridícula. Não se negoceia com o imperialismo.
Não se conversa com o imperialismo. Não se leva o imperialismo
pela mão, com bons modos e palavras doces, a moderar-se e a portar-se
bem. A mera enunciação desta proposta é já um
disparate que seria cómico, não fosse arrastar atrás de si
o drama e o sofrimento de milhões de pessoas: "Lenine alertava
contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de
realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes
oprimidas se limitasse a tomar conta do aparelho de Estado, cuidando poder
utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão,
indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a
conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado
burguês e a construção de um novo Estado, dum Estado dos
operários e camponeses que, sob a direcção da classe
operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da
burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse
termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a
transformação revolucionária da sociedade capitalista em
sociedade socialista. Tal é a essência da ditadura do
proletariado"
[6]
. A que distância longínqua de compreender esta evidência,
que é válida por maioria de razão para as
instituições internacionais de Estados burgueses tanto como para
os Estados nacionais individualmente consideradas, se encontra o Syriza e o seu
Governo!
É de uma evidência que se mete pelos olhos adentro que a
incompreensão destes dois fenómenos, a natureza de classe da
União Europeia e a necessidade premente da libertação da
Grécia do domínio imperialista, são a base fundamental da
traição do Syriza. Proponente de um programa político
pequeno-burguês, reformista, de UE sim mas menos bruta na agressão
do povo, programa ridículo e materialmente inexequível, Tsipras e
o Syriza (tirando certas fracções do Syriza que começam a
rebelar-se) mostrou precisar, com urgência, de revisitar estes textos de
Álvaro Cunhal. Muito teria a aprender com eles e ainda com um outro,
onde é dito que "esta corrente ideológica do radicalismo
pequeno-burguês manifesta-se, por um lado, na criação de
grupos ou partidos pequeno-burgueses de "opção
socialista" e de verbalismo esquerdista; por outro,
em tendências revisionistas no seio do próprio movimento
operário
"
[7]
. O sublinhado é meu, por esta frase captar como nenhuma outra a
consequência nefasta da influência do Syriza no seio do
proletariado grego: o semear de ilusões reformistas, a revisão
dos princípios centrais da ideologia do proletariado, o desarmamento
ideológico da classe, o seu encaminhar para a derrota. Cunhal seria um
precioso auxílio para os trabalhadores gregos se libertarem da
escória revisionista que o encaminha para becos sem saída. Que o
seus ensinamentos sejam colhidos, na prática da luta, por esses
trabalhadores.
(1) Cunhal, Álvaro
Rumo à Vitória
. 2ª edição, Lisboa: Edições Avante, 1979, p.
93.
(2) Cunhal, Álvaro
A Questão do Estado, Questão Central de Cada Revolução
. Lisboa: Edições Avante,
1977, p. 26. Escrito em 1967, este texto não consta das Obras Escolhidas
do autor relativas ao período de 1967-74.
(3) Rumo à Vitória, p. 93.
(4) Rumo à Vitória, p. 87.
(5) Rumo à Vitória, p. 86.
(6) A Questão do Estado
, p. 12.
(7) Cunhal, Álvaro
O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista
. In Obras Escolhidas, vol. IV, Lisboa: Edições Avante,
2013, p. 462.
O original encontra-se em
peloantimperialismo.wordpress.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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