Os romanos estão cercados pelos gauleses

Hugo Dionísio [*]

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Será possível pegar num livro de “Asterix – o Gaulês” e, após uma ávida leitura, chegar ao final e… Ao contrário do que vos tinham dito, ficarem profundamente convencidos de que quem invade são os gauleses e é o império romano quem está cercado?

Se consideram esta conclusão uma impossibilidade em si mesma, então, deixem-me dar-vos uma notícia:   este é nosso prato do dia. Todos os dias, no “jornalismo” de taberna, na “literatura” de supermercado, na “investigação” de pacotilha e “narrativa política” de jardim de infância, somos levados a acreditar que os romanos estão cercados pelos gauleses. E, o mais grave, é que muitos parecem acreditar.

Façamos de conta que, tal como vos omitem as factualidades históricas que antecedem os factos que justificam todas as falácias; Goscinny, ao invés de apresentar Roma como um império e a aldeia de Asterix como resistente, faria o seguinte, daria uma de jornalixo “woke” e contava a história assim:

No final disto tudo, como ficariam a ver os gauleses? Julgo que alguns nem precisariam de tanto. Bastava Uderzo ter pintado as vestes gaulesas de vermelho, dar uma foice a Asterix (já a tem) e um martelo a Obelix e, voilá…. Acudam que vêm aí os gauleses!

Com ou sem foices e martelos, Uderzo e Goscinny contentar-nos-iam com “inspiradíssimas” narrativas, segundo as quais os desonestos, ladrões de propriedade industrial e aldrabões dos gauleses, tinham uma poção cuja receita era “roubada” aos laboratórios romanos, obtendo assim, Asterix e os seus, uma desonesta desvantagem na batalha.

Os desenhos só consagrariam para a eternidade, retumbantes imagens de Asterix e Obelix a massacrar romanos nas batalhas, a “roubar” comida das colheitas dos “pobres” latifundiários romanos, omitindo todas as factualidades romanas que pudessem apontar para um cerco, uma invasão, um massacre e sanções unilaterais para matar a aldeia gaulesa à fome.

Enquanto assolados por sanções e sem bens de subsistência, livro após livro, os Gauleses seriam desenhados como comendo o que não tinham, em devassos banquetes, com javalis comidos à mão, regados a vinho a martelo, bebido directamente da ânfora, ao passo que dos romanos só apareceriam os discursos de Cícero, os banhos públicos e as grandes proezas tecnológicas de Roma… Grandes carroças, templos e praças… Escravos felizes e contentes.

Ou seja, basta imaginarem que Uderzo e Goscinny, tinham, através de um qualquer artifício da física quântica, sido trocados pelo Rogeiro e Milhazes. Colocariam centuriões a fazerem inflamados monólogos sobre como os gauleses, ao abrirem a porta da sua aldeia, tinham ocupado dois metros quadrados de território romano, jamais dizendo que, o que apresentavam como romano, havia, algum tempo antes, sido gaulês. Tal como contam que a URSS, ao combater os nazis, aproveitou para ocupar e controlar o leste europeu, com isso provando que, não fosse a NATO, e já teríamos Putin às portas de Lisboa.

Não contariam, claro, que, farta de ser devastada pelos impérios ocidentais, países como a Rússia, perdendo, uma vez mais, milhões de pessoas com uma invasão que não provocaram, aproveitariam a luta, que foram obrigados a fazer, para garantir que, por aquelas bandas, nunca mais! Tal como, aproveitariam para recuperar territórios perdidos, perante a agressão, que tinha sofrido 30 anos antes. O caso de parte da Ucrânia e três bálticos, que eram russos antes da invasão aliada após a revolução russa.

Claro, Uderzo e Goscinny, travestidos de Rogeiro e Milhazes, também omitiriam o papel que os bálticos tiveram na invasão da URSS, nomeadamente a Finlândia e a Suécia, mas não só. Contariam jamais que, desde tempos imemoriais, a Rússia é uma terra cobiçada pelos impérios ocidentais, tendo sido invadida, pelo menos, por:

Esta listagem, hoje pratica proibida nos corredores imperiais, é substituída por milhares de páginas da invasão da Ucrânia. Nem um texto sobre a contagem (nula) de quantas vezes, o Império Russo, a URSS ou a Rússia, se estenderam para a Europa Ocidental, saindo das suas fronteiras mais próximas, como o leste Europeu (Ucrânia e Bielorrússia, Checoslováquia ou Polónia) ou países bálticos (Finlândia, Estónia, Letónia e Lituânia), relativamente às quais actuaram sempre como resposta e perante situações de ameaça às suas fronteiras…

Claro que, considerando o Asterix ao contrário, Rogeiro e Milhazes também não contariam isto. À falta de invasões ocidentais, premeiam-nos com infindáveis e repetidas invasões da Ucrânia, reiteradas tomadas da Crimeia e “reflectidas” especulações sobre futuras invasões nunca antes praticadas. Tudo para que possam ler a história ao contrário, focando apenas a lente na imagem, no facto, que lhes interessa, fazendo a “ideia” (reaccionária, retrógrada e xenófoba) aderir à realidade.

Apontando a esta forma de idealismo pró-imperialista, Rogeiro e Milhazes, noutra tirada de “os irredutíveis romanos ameaçados pelos gauleses”, gastam horas, pagas com a infindável publicidade que invade todos os conteúdos do nosso tempo, fazem-nos crer que a China está a criar tensões no estreito de Taiwan, omitindo que esta ilha sempre foi chinesa. Tal como, vestindo-se de Uderzo e Goscinny, diriam que, deslocando-se para a batalha, os Gauleses tinham sujado as ruas à passagem e violentado os romanos civilizados que lá iam, apenas, ensinar-lhes as “democráticas” virtudes do Império, apostar na democracia, defender os direitos humanos e proteger as minorias, de preferência, sempre com o cuidado de dizer LGBTQP+.

Nesta dinâmica e aproveitando o embalo, Rogeiro e Milhazes fariam a ponte para o presente, aproveitando para dizer que a China se está a expandir, que nos vai invadir, que é um império… Mas, é claro, teriam de omitir que, em toda a história chinesa, apenas descobrimos uma invasão… O Vietname em 1979 e em resposta às acções do Kmher Vermelho. Fora disso, nada.

E quando estivéssemos já em lágrimas com tanto sofrimento do cidadão aristocrata romano, Rogeiro e Milhazes, qual Geriatrix (o velho que se esquecia do que lhe convinha), nunca nos contariam das vezes em que a China foi, ao invés, invadida por potências ocidentais, como no caso das guerras do ópio, pela Inglaterra, ou da guerra franco-chinesa, ambas no século XIX e com a degradação da dinastia Qing. Proibidos assumiriam estar de fazer qualquer referência ao facto de que, em finais do século XIX e inícios do século XX, a China era já um país extirpado pelos interesses ocidentais, com concessões humilhantes aos EUA, França, Inglaterra ou Japão.

E tal como o bardo “Assurancetourix” insiste em fazer crer que sabe cantar, Regeiro e Milhazes, convidando Ana Gomes ou Paulo Rangel, apresentariam um mapa da Gália, em que a irredutível aldeia de Asterix, teria um tamanho desproporcionado e ameaçador, colocando-o ao lado de um mapa mundi actual, sem as 1000 bases americanas e apenas com as 10 bases russas (9) e chinesas (1). E, fazendo crer que pimba é música clássica, apenas essas míseras e desesperadas 10 bases seriam uma ameaça à paz, significado de Imperialismo e expansão, à escala mundial.

Neste quadro, Asterix seria apresentado como estando a tomar o Egipto, quando lá fosse buscar Cesarion, o filho de Julio César e Cleópatra segundo os autores, para o proteger de Brutus. Entretanto, chamariam o TPI para o prender por rapto e sequestro, quando estaria a afastar uma criança do perigo.

Já quanto a Brutus que queria matar a criança que lhe bloqueava o acesso ao trono, seriamos obrigados a acreditar, através das imaginações de Milhazes e da “inteligência” de Rogeiro, que este era um democrata respeitador do povo. Tal como nos fazem acreditar que, um país que tem 1000 bases a cercar os outros dois, está a ser invadido por estes, os quais, juntos, têm uma dezena de bases fora do seu território e nenhuma fora dos continentes em que se situam o seu território nacional. Aliás, é isto mesmo que acontece quando fazemos uma busca pelo Google. Somos levados a crer que, um país com uma só base no exterior (a China), está a expandir-se rumo à hegemonia global. Ao passo que um que tem mil – os EUA –, está cercado e está a ser atacado.

Recorrendo a uma manobra de ilusionismo mental, Rogeiro e Milhazes, na versão de autores de Asterix, apresentariam Obelix como uma prova viva de que os gauleses exploravam o trabalho forçado, obrigando-o a carregar menires e davam drogas a crianças, quando estas tomassem a poção de Panoramix (o curandeiro), para ficarem mais fortes para se protegerem dos romanos. Focando a atenção do expectador num facto desinserido da sua dinâmica histórica, jurariam, Milhazes e Rogeiro, que os gauleses eram um povo a abater, que, face à sua iniquidade, justificariam todo o tipo de intervenções pelos romanos.

Não se apercebendo desta armadilha mental – que Marx desmontou com o seu materialismo (a matéria é que precede a ideia) –, os expectadores seriam levados para uma dimensão sem adesão à realidade. Quanto mais longe da terra, menos se aperceberiam da contradição.

Tecendo loas a Roma, os “Asterixes invertidos” diriam que o país mais invasor e desrespeitador que existe no mundo é a Rússia, porque invadiu a Ucrânia, omitindo e perseguindo todos os que apontassem Roma por responsável no acirrar este país, para uma vez mais na história humana, o atirar contra o vizinho russo.

Desta forma sim, é possível a um entusiasta e missionário – ou inadvertido – pró-imperialista, ler o Asterix e ficar a pensar que os romanos estão a ser invadidos e cercados pelos gauleses. É tudo uma questão de perspectiva, narrativa, escolha dos factos que validam as ideias pré-concebidas e domínio das emissoras de comunicação.

Eis porque razão não há nazis na Ucrânia, os EUA são um país pacifista e nunca invadiram ninguém, o Staline começou a segunda guerra, a Rússia invadiu o ocidente, os nazis eram de esquerda, quem faz a guerra é Putin, o Churchill era mais democrata do que Washington, a monarquia inglesa respeita os direitos humanos, os migrantes estão a invadir a Europa e os mexicanos os EUA e, o liberalismo é democrático.

Nunca se questionam porque é que todos os “tiranos” designados como tal pelos EUA, são aqueles que protegem, normalmente, os seus povos, dos abusos da oligarquia e, porventura, expulsando as oligarquias ocidentais… Tão bem que Michael Hudson explica isto no seu último livro. A palavra “tirano” é criada pelas oligarquias ocidentais (gregas e romanas), para designar um governante que decidia perdoar as dívidas dos ricos e dos pobres, e não apenas dos ricos, como se faz por cá, ainda hoje. Lapidar!

Acudam-me que estou a ser invadido pelos gauleses!

24/Abril/2023

[*] Jurista, https://t.me/canalfactual

O original encontra-se em canalfactual.wordpress.com/

Este artigo encontra-se em resistir.info

25/Abr/23