Não é o poder militar do Irão que assusta os EUA
A crise que os EUA abriram com o Irão, levada pela quadrilha de Trump
à beira da guerra, não tem nada a ver com o apregoado
"perigo" de os iranianos fabricarem uma bomba atómica.
Não é que eles não desejassem tê-la ou que
não merecessem tê-la (dizemos nós) para mais eficaz defesa
da sua independência, como o caso da Coreia do Norte parece provar. A
sanha dos EUA tem outras razões. O que está em causa é o
facto de o Irão, nos 40 anos de independência que leva já
desde a revolução de 1979, se ter tornado um país livre da
tutela imperialista, quer de norte-americanos quer de europeus. Esse é
que é o óbice.
A independência permitiu ao Irão, graças sobretudo ao
petróleo, um desenvolvimento económico e social que o coloca a
anos-luz do que era o país nos tempos do Xá e apesar da
ideologia confessional do regime a longa distância dos regimes
ditatoriais da península arábica, que norte-americanos e europeus
tanto cuidam de manter.
Todos os relatórios da Agência Internacional de Energia
Atómica órgão de ONU encarregado de vigiar o
cumprimento do acordo firmado em 2015 pelo Irão com os EUA, a
França, o Reino Unido, a Alemanha, a Rússia e a China
atestam que nenhuma violação foi cometida pelos iranianos. Mais:
tirando os EUA de Trump, nenhum outro signatário acusou o Irão de
faltar aos compromissos. A razão da agressividade norte-americana
está pois noutro lado.
A campanha contra o Irão movida pelo governo de Trump, seguido pelo
Reino Unido de Boris Johnson, tem um fito muito concreto: impedir que o
Irão se torne uma potência regional (desde logo, económica)
que altere o chamado "equilíbrio" no Médio Oriente
como já está a acontecer.
[1]
Ora, esse "equilíbrio", historicamente montado pelo Reino
Unido e depois mantido pelos EUA e seus aliados europeus, é na verdade
um desequilíbrio completo de forças para o lado das
potências imperialistas, obviamente com os EUA à cabeça.
Como é sabido, Israel que os EUA dotaram de armas nucleares,
violando todos os tratados sobre a matéria e as ditaduras
árabes, são os principais sicários do imperialismo na
região, encarregados de manter aquele desequilíbrio.
É assim que fontes de energia das mais importantes do mundo se
mantêm sob domínio norte-americano e europeu. E que uma
presença militar esmagadora se eterniza há décadas por
toda a região, em bases terrestres, esquadras, material de guerra de
última geração, milhares de homens.
O Irão, sobretudo depois da ocupação do Afeganistão
e do Iraque pelos EUA, em 2001 e 2003, empenhou-se em romper o cerco de que
estava a ser alvo quer tomando posições num Iraque
destroçado pela barbárie norte-americana, quer estabelecendo
contactos com a resistência Talibã (a ponto de ter sido
recentemente medianeiro entre esta e os EUA).
Por outro lado, a sua postura anti-imperialista e anti-sionista granjeou-lhe
simpatias no Líbano, na Faixa de Gaza e na Síria, estabelecendo
alianças nomeadamente com o Hezbolá, o Hamas e o regime
sírio. O mesmo com os rebeldes Houtis, no Iémen, pela sua
oposição à agressão saudita.
[2]
A somar a isto, os acordos comerciais e a aproximação
política com a Rússia e a China têm ajudado a sustentar a
independência económica e política que o Irão
mantém no panorama internacional, apesar das sanções e da
diabolização a que tem sido sujeito pelas potências
ocidentais.
Esta capacidade de resistência é um quebra-cabeças para os
EUA e um susto para os seus serventuários na zona, que só
se aguentam atrelados ao poderio norte-americano. Preocupação
tanto maior, para uns e para outros, quanto a aliança do Irão com
a Rússia e a China favorece a influência destas duas
potências na região. E essa influência tende a alargar-se e
a consolidar-se por se basear num argumento decisivo: o crescente poder
económico chinês, para o qual nem os EUA nem a Europa mostram ter
antídotos.
O declínio da hegemonia dos EUA no Médio Oriente é parte
do declínio geral do imperialismo norte-americano, facto que não
só abre campo à expansão das novas potências mas
também acirra a disputa entre velhas e novas potências. É
este declínio que explica em grande medida a
"imprevisibilidade" de que os europeus e outros aliados dos EUA
acusam o rumo da política externa da Casa Branca nos últimos anos.
É ainda esse declínio que permite perceber a crescente
agressividade de toda a política de Trump rasgando acordos,
quebrando alianças, procurando novos parceiros, reforçando
laços mercenários com Estados fora-da-lei (como, no caso, Israel
e Arábia Saudita), lançando sem pudor ameaças de guerra e
destruição em todas as direcções. Em limite, o
recurso às armas tende a tornar-se o argumento exclusivo do poderio
norte-americano.
Mas o declínio dos EUA representa também uma abertura para que a
luta dos povos se desenvolva e ganhe novas dimensões. Não
obstante o carácter confessional e reaccionário do regime dos
aiatolás, o Irão, por razões de interesse nacional de uma
burguesia poderosa, enfrenta o imperialismo como poucos têm coragem de
fazer nos dias que correm.
É nessa qualidade de força anti-imperialista, e enquanto assim se
mantiver, que o Irão deve ser inequivocamente apoiado pela esquerda
europeia e mundial, na medida em que a sua luta ajudará a desgastar e a
abater o principal inimigo dos povos na actualidade, o primeiro fautor de
guerra que ameaça a humanidade por inteiro: o capitalismo imperialista
norte-americano.
31/Janeiro/2020
(1) Esse é o alvo das sanções económicas impostas
ao Irão. Sempre capitaneadas pelos EUA, foram iniciadas em 1979,
após a revolução que depôs o Xá. Sob
pretextos vários, foram sendo repetidamente mantidas, re-impostas ou
reforçadas por todos os presidentes norte-americanos desde então.
Em 40 anos, apenas não vigoraram por períodos curtos: de 1981 a
1987, na sequência dos acordos de Argel, que puseram fim à chamada
"crise dos reféns"; e de 2015 a 2018 por força do
acordo multilateral que Trump acabou por rasgar.
(2) Considerando inaceitável esta
influência política,
o governo dos EUA chama-lhe "acção terrorista",
tentando com isso dar cobertura aos seus próprios actos de terrorismo de
Estado como foi o assassinato do general Suleimani.
[*]
Arquitecto.
O original encontra-se em
www.jornalmudardevida.net/?p=5474
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|