"É o povo que resiste!"
Entrevista a Abdul Jabbar al-Kubaysi
[*]
conduzida por Hugo Janeiro
Quando os norte-americanos atacaram o Iraque, qual foi a posição
assumida pela Aliança Patriótica Iraquiana e os grupos que
convosco colaboram?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Quando a guerra foi desencadeada, muitos de nós, que havíamos
sido severamente reprimidos e torturados pelo regime de Saddam Hussein,
percebemos que não podíamos estar ao lado da invasão
anglo-norte-americana. Não era possível capitular perante a
história de soberania do Iraque.
Claro, houve gente que hesitou, que concordava que não era correcto
estar ao lado do bombardeamento e da ocupação do nosso
país, mas... colocavam um mas, e a partir desse momento vacilavam.
Muitos dos que se encontravam no exílio procuraram encaixar no novo
regime, com lugares no governo, nas universidades, como embaixadores, mas com o
passar das semanas, após longas discussões e uma análise
da situação no terreno, fomos ganhando força e
credibilidade, nós os que desde a primeira hora nos opusemos à
guerra. Quando digo nós, falo no comando central dos comunistas e outros
grupos políticos que, embora minoritários, sem dinheiro, apenas
com vontade e um jornal pobre e sem meios, tratámos de dar continuidade
ao movimento político de resistência.
Com o tempo, com a pressão do povo, que também começou a
acordar, juntaram-se alguns militares que nem tiveram possibilidade de
combater. Neste momento, são um dos grupos mais numerosos da
resistência e penso que não decidiram resistir por terem sido
membros do Partido Baas, mas porque assumiram uma posição
patriota.
Mas a ideia que passou para o ocidente foi que a resistência emergiu de
grupos religiosos...
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Não foi assim que as coisas funcionaram no terreno. Inicialmente,
surgiram centenas de grupos que pegaram em armas. Trabalhadores, soldados e
oficiais, jovens, muitos jovens que perceberam o que ia ser a
ocupação e se juntavam por bairro, porque havia um militar que
tomava a iniciativa, sem ligações a partidos ou
facções religiosas, na esmagadora maioria dos casos.
Este movimento de resistência quase expontâneo atacava as
forças ocupantes e regressava às suas casas, voltava às
suas vidas. Só depois surgiram organizações mais
complexas, de comunistas, de ex-membros do Partido Baas, de
inspiração religiosa mas que, mesmo hoje, não fazem das
suas acções nenhuma "guerra santa", ou o que for que os
EUA gostam de lhes chamar.
Com o passar do tempo e o agravar da situação os grupos dispersos
começaram a unir-se, paulatinamente, até que hoje temos cerca de
seis a sete grandes grupos com milhares de guerrilheiros. Entre estes encontras
comunistas, Baatistas, muitas sensibilidades, mas que resistem porque chegaram
à conclusão que esse é o único caminho e o primeiro
objectivo.
Mesmo no interior dos grupos temos diversas "cores" políticas
e religiosas, isto é, se estás na tua cidade ou na tua
região, tens uma determinada opção política ou
religiosa, não te vais deslocar milhares de quilómetros para
integrar um grupo liderado por alguém que pense exactamente como tu. Se
tens vontade de combater, juntas-te à resistência na tua zona,
és aceite tal qual és e continuas livre de pensar como queiras,
de manter as tuas convicções e linguagem. Esta foi a
fórmula para unir toda a gente.
Outra coisa é a Frente Patriótica de Libertação que
formámos há cerca de cinco meses, a qual integra o comando
central do Partido Comunista Iraquiano que é o resultado da
cisão do antigo PCI existente nos anos 60 , a Aliança
Patriótica Iraquiana, os Baatistas e um grupo chamado Patriotas
Democráticos.
Então o fundamental do vosso objectivo passa pela expulsão dos
norte-americanos, e só depois discutirão o futuro do país?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Mesmo agora vamos discutindo o futuro, claro, somos quatro partidos
políticos diferentes. O que pensamos é que a questão
central neste momento passa pela coordenação da
resistência, que também está representada mas que
não é uma força política homogénea.
CRIANDO FALSAS DIVISÕES
E as tensões étnicas que aparentemente violentam o Iraque, que
papel desempenham esses grupos?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Bom, sabemos que essa é a imagem que passa, mas a verdade é que
essas milícias representam os membros do governo, do parlamento, servem
os interesses norte-americanos.
Milicianos sunitas do Partido Islâmico do Iraque,
pró-Arábia Saudita, responsáveis por atentados,
estão no governo, têm dois ministros, estão representados
no parlamento.
Com os partidos políticos xiitas acontece a mesma coisa. É uma
guerra pela partilha do poder. A questão é que, para incendiarem
os ânimos, não se matam entre si, violentam sunitas e xiitas
inocentes.
Acha que o objectivo é criar uma atmosfera de medo?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Absolutamente. Deixar as pessoas aterradas e levá-las a apoiar um
país dividido, sobretudo da parte do xiitas, no Sul, com claro interesse
da parte do Irão.
Quando se diz que a resistência é sunita e que só mata
xiitas é uma mentira que, para milhares de iraquianos, se vai revelando
com mais clareza. Há exemplos de acções da
resistência contra xiitas, sunitas, é indiferente, porquanto que
estejam no poder, na medida em que colaborem com os ocupantes, é o que
realmente os transforma em alvos.
CONSCIÊNCIA CRESCE ENTRE O POVO
Pensa que o povo iraquiano demonstra hoje uma maior consciência da
necessidade de lutar do que nos primeiros meses da ocupação?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Neste momento tornou-se uma cultura. Inicialmente, a resistência
começou por se traduzir muito num sentimento de repúdio pela
presença de tropas estrangeiras no país, mas agora a
consciência é maior, as pessoas, mesmo as mais ignorantes,
praticamente sem instrução, começam a discutir
política e a perceber o que está em causa.
É importante que esta cultura se tenha espalhado entre a gente simples,
entre o povo. Vamos perguntar a um camponês ou a uma mulher o que
é a política? Ela não te sabe dizer o que é, mas
sabe que deve lutar, e se não tem condições para o fazer,
pelo menos percebe que tem que incitar os que conhece a resistirem à
ocupação.
Perderam o medo, mesmo quando sabem que muito provavelmente vão perder
um familiar. Uma vizinha minha perdeu 11 filhos nesta guerra e o que realmente
impressiona é que ela já não pensa que os seus morreram em
vão, antes, tem orgulho.
Na nossa tradição, quando morre alguém da família,
recebem-se os vizinhos em casa e serve-se café forte, sem
açúcar, como sinal da amargura da perda. Ultimamente, quando
morre um rapaz ou uma rapariga na resistência, serve-se sumo, em sinal de
orgulho pelo que fez. A caminho do cemitério, cantam-se músicas
revolucionárias, e todos vêm para prestar homenagem. As mulheres
ululam como quando há um casamento, neste caso, anunciam a união
com a causa da liberdade do seu país. Claro que é uma dor e uma
mágoa só perceptível por quem a sente, mas pior seria se o
filho, a filha, o marido ou o irmão quebrassem perante o invasor.
Qual a importância da solidariedade internacional com o Iraque nesse
contexto?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
É fundamental para que se perceba que a guerra não
é um "choque de civilizações" entre
cristãos e muçulmanos, como quer fazer passar George W. Bush.
Muitos iraquianos pensaram que era essa a razão pela qual os atacavam,
por serem muçulmanos.
Quando ocorreram as primeiras grandes mobilizações mundiais, com
milhões de pessoas nas ruas contra a guerra e a ocupação
do nosso país, começaram a perceber que afinal, gente comum da
Europa, dos EUA, gente como eles, com razões para viver, com
família, com amor pela pátria, também estava contra a
guerra. Isso para o povo iraquiano é ao mesmo tempo um grande orgulho e
uma grande responsabilidade. É isso que também os ajuda e
entusiasma a não desistirem. É o povo que resiste!
Quando eu me encontrava preso, trouxeram-me cartas de gente de Espanha, da
Itália, de França, pessoas que eu não conheço mas
que exigiam a minha libertação. Claro, também levaram as
cartas para os interrogatórios e queriam saber quem eram os amigos, se
eram operacionais, contactos subversivos. No mínimo, são
iniciativas que os fazem pensar e temer pela força que se levanta contra
a ocupação.
CONFIANÇA NO FUTURO
Pensa regressar ao Iraque? Não tem receio de voltar a ser detido?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Para onde vou? É a minha terra. Não sou um soldado, sou
político. O que tento fazer é minimizar as hipóteses de
ser capturado novamente. Arrisco as minhas hipóteses na vida, tenho que
o fazer pelo meu país, tal como o fazem milhares de iraquianos que
também são procurados, também são perseguidos.
Onde vai buscar essa determinação para voltar? O que pensa a sua
família?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Temos a consciência de que é necessário, mesmo que as
nossas famílias, especialmente os filhos, estranhem a ausência. As
crianças fazem muitas perguntas, não é com facilidade que
as enganamos (risos).
Se pensarmos que o mesmo sentimento de revolta é partilhado por outro
iraquiano, qualquer um, que vende tomate na rua para sobreviver, por exemplo, e
ainda assim espera pacientemente pela oportunidade para demonstrar
resistência, percebemos que temos que continuar.
A libertação do Iraque é um objectivo que pensa ser
alcançável em breve?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Não só tenho a certeza, como sei que é inevitável.
Os ocupantes encontram-se em condições terríveis,
têm inimigos em todas as ruas, a imensa maioria dos iraquianos
está contra a sua presença, não são só os
grupos armados da resistência. É essa a nossa força. A
palavra que passa é que eles se encontram numa estrada em
direcção ao inferno.
É sabido, mesmo pelos políticos e comandantes militares no
terreno, que a guerra está perdida. São os próprios que o
dizem, mas não admitem o facto publicamente.
Com isto não se fique a pensar que o que dizemos é que quando
forem embora não terão que compensar o povo do Iraque pelos
estragos que fizeram, pelas vítimas que deixaram. Não! Nós
temos direito a que nos restituam as perdas. Que razão é essa de
invadir, matar, saquear um país e depois ir embora como se nada fosse?
Não vamos aceitar essa condição.
CRIMES DE GUERRA
Pode-nos fazer um relato do que se passou em cidades como Fallujah ou Tall Afar
durante os bombardeamentos dos EUA?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Actualmente, Fallujah parece Dresden após a II Guerra Mundial, as
pessoas vivem em tendas porque quase toda a cidade está em
ruínas. Os jornalistas são impedidos de entrar. Eles não
querem que o mundo saiba a verdade e nem os norte-americanos podem circular sem
autorização do da cadeia de comando.
O que se passou em Fallujah, os bombardeamentos com Fósforo Branco, os
milhares de corpos de homens, mulheres e crianças carbonizados, factos
que estão documentados num filme da RAI, por muito duro que vos possa
parecer, não é nada.
O mesmo tipo de cenário podemos ver se formos a Tall Afar, Ramadi,
Mansur Al Kan, um caso pouco conhecido mas que é igualmente chocante.
Samarra também, embora não esteja exactamente no mesmo estado.
No primeiro ataque a Fallujah, em Abril de 2004, eu estava lá dentro,
é a cidade onde nasci. Morreram mais de 1600 pessoas e outras três
mil ficaram feridas.
Neste último já estava preso, mas as informações
que tenho é que assassinaram cerca de seis mil pessoas.
Qual a razão pela qual este tipo de ataques norte-americanos foram
concentrados no norte do Iraque?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Porque foi nessa zona que a resistência ganhou força mais
depressa. Dentro das cidades as pessoas eram livres, os soldados não
entravam.
É verdade que lá se estabeleciam bases da resistência, onde
trabalhadores, insisto, gente humilde, simples, aprendeu a fazer armas, RPG's,
tudo manufacturado.
À pouco falávamos da resistência e das tais
divergências étnicas. O que é Tall Afar? É natural
que na Europa não saibam, mas é uma cidade de maioria xiita, e
não obstante resiste.
Batota nas urnas partilha o poder
"Um norte-americano, um francês e um iraquiano encontram-se num bar
em Paris depois das eleições no Iraque. O francês, a jogar
em casa, afirma que a tecnologia do seu país é tão
avançada que sete horas após o fecho das urnas já sabiam o
resultado. Pouco dado a ficar atrás dos europeus, com ar sobranceiro, o
norte-americano revela que o feito não é novidade porque nos EUA
ficaram a saber do resultado sete minutos depois do encerramento das
assembleias de voto. Tranquilo, o iraquiano sorri e diz que nada ultrapassa o
avanço registado no seu país. Como pode ser isso?
perguntaram com escárnio os ocidentais. Simples explica o
iraquiano , falámos com os vossos embaixadores em Bagdad e
ficámos a saber do resultado sete dias antes das eleições
se realizarem."
("Um dia depois das últimas eleições, esta anedota
era contada com gosto nos mercados de Bagdad", conta al-Kubaysi)
|
Quanto às eleições, fala-se insistentemente numa fraude. O
que foi que realmente se passou?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Nas eleições constitucionais, apelámos ao povo para que
fosse votar e rejeitasse a proposta. A questão era simples, bastava
dizer sim, ou não, e ainda assim demoraram cinco semanas a contar os
votos.
Eles sabiam que o resultado lhes tinha sido desfavorável, mas insistiram
e apresentaram uma contagem de 55 por cento de aprovação do texto.
Mobilizaram-se milhares de pessoas que contestaram os resultados. Eles
reavaliaram as suas forças e fizeram uma recontagem, mas chegaram
à conclusão... que estavam certos.
Agora vamos dizer o que realmente se passou. Primeiro disseram que bastava que
dois terços dos votos se expressassem pelo não em três das
províncias para a proposta constitucional chumbar. Posteriormente,
quando se viram derrotados, acrescentaram que isso tinha que suceder em cada
uma das províncias, isto é, arrogaram-se a dar a volta à
lei. O comando norte-americano aplaudiu dizendo que aceitava a
deliberação do parlamento.
Mesmo assim, há um segundo dado que foi ainda mais visível nestas
recentes eleições. Al-Zarqawi, que representa um grupo
minúsculo, sem expressão de massas, lançou um apelo contra
as eleições e ameaçou boicotá-las pela
força. O que nós, a resistência, considerámos foi
que durante três dias não iríamos atacar, que cabia
às pessoas decidirem se iriam votar, ou não.
Podíamos ter boicotado o sufrágio pela força, até
porque nos manifestámos contra o embuste, esclarecemos que era
desfavorável aos interesses populares, mas sabíamos que se
optássemos pela violência quem acabaria por colher frutos era
Al-Zarqawi. A verdade é que ele não conseguiu impedir as
eleições em nenhuma vila ou cidade.
Os que foram a eleições, partidos sunitas ou xiitas, dividiram-se
por áreas. Onde são maioria não permitiram que os
oponentes fossem às urnas, por isso ganharam. Os EUA, mais uma vez,
dividiram para reinar e, mais grave, pensaram dar um golpe na unidade
territorial do país, um dos seus verdadeiros objectivos.
Então, como eu dizia, cada partido levou boletins e encheu as caixas
onde e como pode. Quando contaram os boletins, eram mais do que a
população votante, isto não foi falado. A propaganda disse
que a maioria foi votar, mas o povo sabe que tal não corresponde
à verdade.
Um exemplo. Num bairro em Bagdad não existe maioria de nenhuma das
facções, por isso concorreram ambas e controlaram-se mutuamente.
A participação foi de 18 por cento, não de mais de 90 por
cento, como afirmaram em centenas de mesas eleitorais. Os que se lhes
opõem, asseguro, não foram às eleições.
NA PRISÃO DO IMPÉRIO
Esteve detido cerca de um ano e meio. Que condições encontrou na
prisão e como é que os norte-americanos o trataram?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Primeiro temos que esclarecer que no Iraque não existe só Abu
Grahib, mas 30 grandes prisões.
Uma das maiores, a norte de Bagdad, junto a uma pequena povoação
chamada Al-Bagadadi, era uma antiga base do exército iraquiano e
nós sabemos que os EUA têm lá mais de nove mil pessoas e
que as torturam. Outra, em Badush, a norte de Mossul, também tem o mesmo
número de presos, mas a maior de todas fica em Balad, a caminho de
Samarra, dentro de um complexo militar norte-americano.
Com isto quero sublinhar que, na verdade, os EUA mantêm presos mais de 80
mil iraquianos, e antes das últimas eleições eram 192 mil
os encarcerados. Mesmo as mulheres que se encontram presas que
calculámos em mais de 400 foram levadas por duas razões:
ou têm uma relação com alguém pertencente à
resistência, ou quando os soldados chegaram à sua casa e
perceberam que os homens não se encontravam, levaram as mulheres para os
obrigar a deslocarem-se às bases, mesmo sem provas de que
pertençam à resistência. Isto nem nos tempos da ditadura se
fazia no Iraque, era inaceitável.
Também sabemos que os tipos de tortura variam muito, desde choques
eléctricos, queimaduras no corpo, até às coisas mais
bizarras, como fazerem pilhas humanas e dispararem. Penso que pretendem provar
que têm melhor pontaria...
Na prisão onde eu estava ouviam-se muitas histórias, relatos de
muita gente porque é um dos locais que funciona como plataforma para as
transferências. Um preso chega, fica dois, três dias, depois
é levado. Por vezes nem precisavam de falar, nós víamos o
estado em que chegavam e imaginávamos o que lhes haviam feito.
No meu caso, durante cinco meses e meio, fui interrogado todos os dias.
A determinada altura, talvez nos últimos nove meses, recebia cartas
através da Cruz Vermelha Internacional. As duas primeiras linhas, onde
vinham os cumprimentos e as saudades que família escrevia, vinham
intactas, o restante estava completamente rasurado para nos fazer quebrar.
Depois trouxeram-me os desenhos que os meus filhos tinham enviado para um
interrogatório e diziam que era um código.
Bem, eu só podia dizer que o meu filho era um rapazinho de nove anos e
que eles nem isso eram capazes de perceber, que estavam loucos. Vivem no medo.
O que pretendiam saber?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Perguntavam-me sobre a resistência, quem conhecia no Iraque e na Europa,
onde tinha estado, quais os contactos que tinha no mundo árabe.
Acusaram-me de ser o coordenador entre os grupos insurgentes, de ser o
teórico da resistência.
Nos primeiros dez dias, meteram-me numa caixa de madeira com pouco mais de 70
centímetros, de pés e mãos atadas atrás das costas,
com correntes, no escuro. Quando era vencido pelo cansaço e me obrigava
a dormir, não me deixavam por mais de dez minutos, gritavam o meu
número.
Não me davam água nem comida, e quando davam alguma coisa era
quase nada [n.d.r.: pouco mais de um terço de uma chávena de
café, indicou-nos]. De dois em dois dias, davam um pedaço de
pão que era metade de um punho fechado, nem para alimentar um pequeno
pássaro chegava.
Nesse período, mesmo a água que me serviam estava a cerca de 40
graus, e nunca me tiravam a venda nem me indicavam onde estava o copo.
Depois disto, fui transferido para uma cela, mas sempre que me obrigavam a sair
voltavam a tapar-me com uma venda e algemavam-me. Nunca estive sem algemas fora
da cela, penso que por terem medo de serem atacados.
Então pressentiu que mesmo os soldados que o guardavam estavam
amedrontados?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Eles vivem aterrorizados como coelhos! Todos os dias a base onde me encontrava
era atacada por rockets, de noite ou de dia, nunca falhava. Quando o ataque
começava, ficávamos contentes, claro, mesmo que por vezes as
explosões se dessem a escassos cem metros de nós. Os guardas
vinham para junto dos presos, aterrorizados, gritavam, corriam. Julgo que
pensavam que mais perto das nossas celas não corriam perigo.
Muitas vezes riamos da situação e perguntávamos: és
um soldado, porque é que tens medo? Tenho medo de morrer, diziam.
Então percebemos, e alguns começaram a contar que só no
Iraque se aperceberam que foram enganados.
Falou com muitos soldados nessa situação?
Abdul Jabbar al-Kubaysi:
Muitos, pessoas com quem comunicava quando me traziam alguma comida, ou faziam
a ronda.
Certa vez, um perguntou-me: Qual era a tua patente no exército? Eu
respondi que não era militar, era engenheiro civil e estava preso por
razões políticas. Ficou confuso e disse: então era do
governo do Saddam? Eu expliquei que não, que estava exilado, que tinha
combatido Saddam. Porque razão está preso? continuou. Eu
só lhe respondi que fosse perguntar ao seu governo. Depois indiquei
vários presos, uns tinham sido professores, outros médicos,
outros operários.
A determinada altura começavam a falar connosco, mas não é
possível aprofundar muito a conversa porque o sistema não permite
criar laços com o guarda. Todos os dias mudam a escala e de duas em duas
semanas retiram o soldado de uma determinada rotina.
De quando em quando voltam, e nesses momentos alguns revelavam o que lhes
haviam contado. Disseram-lhes que éramos perigosos, que nem sequer
tirassem os óculos de protecção junto de nós porque
éramos de tal forma selvagens que, à primeira oportunidade, lhes
furaríamos os olhos com os garfos de plástico (sorri).
Quando descobriam que não era assim, ficaram com dúvidas.
A um outro soldado tive que contar que me tinha licenciado pela Universidade
Americana de Beirute, e que o tipo da cela ao lado também. Ficou
espantado, a pensar. Quando estes episódios aconteciam, revelavam, por
exemplo, que foram treinados durante pouco mais de seis meses, três dos
quais, numa "formação" sobre o Iraque, na qual lhes
contaram todo o tipo de mentiras. Alguns prometeram que, acabado o contrato,
nunca mais voltariam.
A esmagadora maioria são jovens entre os 18 e os 21 anos que foram
enganados, arregimentados como mercenários, a troco de dinheiro, do
pagamento das propinas da universidade que de outro modo não podiam
pagar, da carta de cidadania norte-americana, uma "moeda de troca"
que deve ser muito comum.
Mais informação&o do Iraque em
http://www.iraqsolidaridad.org/
[*]
Presidente da Aliança Patriótica Iraquiana.
O original encontra-se em
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=13432&area=5
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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